Encontraram-me a Winchester 73

Notícias Magazine

A minha mãe reconheceu o Tony Curtis e o Rock Hudson, este a fazer de índio, apesar de ambos aparecerem em papéis menores. O filme, Winchester 73, realizado em 1950, exibiu-se de novo em Luanda, mais de meia dúzia de anos depois, em reprise no Tropical, sala elegante onde se via cinema sentado à volta de pequenas mesas de tampo redondo. Naquele sábado foi o meu pai que insistiu em ver aquele filme. A minha mãe não se importou, o filme era de
James Stewart. Naquele tempo os filmes ainda não eram dos realizadores. Quando regressaram o meu pai vinha sonhador.

«Viste a arma, Maria?», perguntou o meu pai, já a meio do almoço de domingo. Não a deixou responder: «Uma Winchester 73…», disse, nostálgico. «A do prémio?», perguntou a minha mãe, porque no filme armas tinha havido muitas, mas aquela, além de vir no título, tinha sido perdida por James Stewart durante um concurso. O meu pai fez que sim e continuou com olhar ausente… «A nossa também é dessas, não é, pai?», tentei meter-me na conversa. A nossa era a caçadeira de dois canos que eu limpava e oleava duas vezes por semana quando o meu pai ia ao mato. Sabia lá a marca da caçadeira, o meu pai! Ele não ligava, o seu interesse por armas, contou depois, era pelas Winchester 73.

Em 1874, o meu bisavô, rapazola de Ribeira de Pena, imigrado no Porto, leu uma brochura já velha, da corrida ao ouro na Califórnia. Dezoito páginas de Informações e Sugestões Extraídas de Documentos Oficiais sobre a Califórnia e as Suas Minas de Ouro. Não faltavam avisos sobre as dificuldades da vida naquele Novo Mundo – «o mais comum dos remédios custa três ou quatro vezes o seu peso em ouro» –, mas das palavras prudentes o meu bisavô só leu a que mais brilhava: ouro. Semanas depois, embarcou de Leixões para Glasgow, onde arranjou lugar no porão do vapor Moneta que, quatro meses depois e o Equador duas vezes atravessado, o deixou no porto de São Francisco.

O meu bisavô nunca disse o que fez nos dez anos que passou na América. Isto é, disse, mas em três frases que creio resumirem uma derrota: «Andava sozinho nas montanhas Snake, no Nevada, parei para descansar, encostei a espingarda a uma árvore e adormeci. Acordei numa carroça de mórmons que disseram ter-me encontrado nu e desmaiado. Perguntei pela Winchester 73, mas eles não sabiam de nada.» Entretanto, já estavam num território vizinho, o Utah. Foi lá que o meu bisavô decidiu voltar ao Porto com a quimera do ouro apaziguada. Foi isso que contou ao filho e este ao seu filho e este, depois dum filme, a mim. Suspeito que a opção por África que o meu avô e o meu pai vieram a fazer, em vez da América, foi para não acordarem de mãos a abanar. Os Fernandes não acertam com os destinos.

No passado fim de semana, fui ver a minha filha a Londres. Comprei o Daily Telegraph de sábado, embora não o costume ler em Lisboa. Foi assim que soube que Eva Jensen, uma arqueóloga, andava por uma floresta, na Snake Mountain, Nevada, com os olhos aguçados para encontrar artefactos índios. Ali, as árvores são zimbros e cedros, podem ser centenárias. Foi então que Eva a viu, encostada a uma Juniperus osteosperma de tronco dramaticamente rugoso. Como um camaleão a imitar a árvore – a madeira da coronha e do apoio do cano seca e enrugada, o metal do cano e da caixa da culatra com o tom de pedra que o ferro velho ganha –, lá estava, de pé e encostada, uma Winchester 73. O número de série dizia ter sido feita em 1882.

Por estes dias, a Nasa fotografou algures em Marte a nave espacial Beagle 2, que foi dada por perdida há uma dúzia de anos. O editorial do Telegraph juntou as descobertas, Beagle 2 e Winchester 73, e concluiu que as coisas perdidas acabam sempre por se encontrar. Os homens perdidos é que não há meio de se encontrarem. Vou confirmar o que o meu bisavô andou a fazer pela América e, se for caso disso, reclamar o que é dos Fernandes.

[Publicado originalmente na edição de 25 de janeiro de 2015]