E, de repente, saudações nazis

Notícias Magazine

As recentes fotos de Isabel II, criança, em poses embaraçosas, despertaram em mim pesadelos antigos mas não pela saudação nazi. Quando comecei a ir ao cinema não havia profissão mais perigosa do que a de sentinela alemã. Ela tinha frio, olhar adormecido, o casacão e a espingarda Mauser pendurada ao ombro tolhiam-lhe os movimentos – e nunca via chegar o herói nem o punhal ao pescoço. Morria sem dar um grito, o que é a pior vergonha duma sentinela. Remédio santo para ensinar uma criança a não ser nazi. Frequentemente Hollywood foi uma grande escola. Assim, o meu pesadelo continua o mesmo: terei sido apanhado com o dedo no nariz?

Isso, confesso, pratiquei. Não me importo de o dizer, as palavras desmentem-se, o que me custa é saber que as fotos andem por aí. Do passado, elas ficam e mordem-nos, no futuro, o presente. Por isso nunca meti o dedo no nariz sem ter deitado um olhar à roda. Mas como garantir que não tenha havido uma máquina fotográfica a espreitar para o pátio da minha escola? Ou, parado num semáforo, estando eu encostado no banco de trás (em miúdo, não há lugar que nos pareça mais ninho do que o banco traseiro do carro paterno), terei sido filmado pela Kodak Super-8 do carro vizinho? As imagens de Isabel extraídas dum filme de 17 segundos vieram espicaçar-me o medo: ainda pior do que foto comprometedora são imagens em movimento, elas expõem-nos até à náusea.

Isto para vos dizer que, republicano dos quatro costados, por estes dias me tenho sentido compassivamente monárquico. Gostava que os jornais de todo o mundo fossem durante esta semana como durante décadas foi o Diário de Notícias: «Suas majestades e suas altezas passam sem novidade em suas importantes saúdes», dizia o velho jornal, todos os dias, na primeira página. Porém, o inglês The Sun achou melhor mostrar aquelas imagens do relvado no Palácio de Balmoral, em 1933. Por trás, instigando, o tio Eduardo; no primeiro plano, a cunhada dele, então duquesa de York, que viria a ser a rainha-mãe, e as duas filhas, Isabel e Margarida. Na imagem mais forte, a duquesa parece resoluta com o seu braço direito estendido, Isabel, convicta, Margarida, semiescondida, e o tio sorridente.

Em outros fotogramas, todos farão a saudação nazi. Margarida, de 3 anos, atrapalha-se com os braços, não sabe qual erguer, e Eduardo levanta alto o seu. Claro que Isabel, porque é hoje rainha e é a única sobrevivente daquele grupo, protagoniza as atenções. Eu que gosto de ir direito ao essencial (caramba, trata-se de uma menina de 6 anos!) comecei por notar que pela primeira vez a vi tão solta – ela que sempre está tão contida, tão raptada pela sua condição histórica. Pareceu-me feliz e presumida, como um menino depois de marcar um golo. Que mais há para dizer sobre Isabel, naquele dia, naquele relvado?

Sobre os dois adultos, há. Desde logo, o que legitima a divulgação das imagens: há um interesse público em conhecê-las. Ilustram uma época. Em 1933, o nazismo ainda não era o mal supremo que viria a ser (campos de concentração, genocídios…), embora já desse vários sinais desse horror. As classes altas – as que viviam em Downton Abbey, nos aposentos de cima (upstairs) e, por maioria de razão, a realeza de Balmoral – não viam no nazismo o perigo. A assunção de que as pessoas no passado veem ou devem ver o que vai ser o seu futuro é um erro. A duquesa de York podia até estar a gozar com o ridículo (esse já então notório) dos nazis. O facto é que ela, chegada a guerra, soube qual era o seu lado e o do inimigo – portou-se bravamente ao recusar abandonar Londres bombardeada.

Já para Eduardo, entronizado rei em 1936 e que vai abdicar ainda nesse ano, as imagens são premonitórias. A simpatia pelos nazis, ele confirmou-as até pela guerra dentro. A alma penada dele deve andar por aí, em pânico por um dia aparecerem imagens que o confirmem como traidor.

[Publicado originalmente na edição de 26 de julho de 2015]