Do filho de Dostoiévski ao robot

Notícias Magazine

Nesta semana, soube-se que o jornal francês Le Monde fez um notável trabalho: numa só noite eleitoral, publicou 36 mil tex­tos. É certo que a esmagadora maioria foi de pequenos textos, cada um reduzido ao nome duma das comunas que votou (mais de 30 mil), os nomes dos candidatos, os votos e as percentagens – mas 36 mil textos?! Explicação: quem trabalhou foi um robô-jor­nalista, municiado de software que lhe permitia disparar para o público logo que o Ministério do Interior francês lhe fornecia os resultados. Ainda coisa muito automática e seca, mas, é oficial, já há robôs-jornalistas.

A coisa apanhou-me com o mais inadequado dos livros na mão. Nesta semana eu cumpria uma das minhas obrigações a que me imponho: voltar a um livro de Nelson Rodrigues. O brasi­leiro tem peças de teatro, mas a penitência é exclusiva para as su­as crónicas – «A cabra vadia», «O reacionário», «À sombra das chu­teiras imortais»… Agora eu relia O Óbvio Ululante. Quando se é cro­nista profissional dói ler Nelson Rodrigues (1912-1980). É como revolver um cilício na carne em cada página que se vira. Fico a compreender Santa Teresa de Ávila, que se mortificava e extasia­va ao mesmo tempo. O maior cronista da língua portuguesa faz-me esse efeito. Partilhar, numa mesma semana, o nascimento do árido robô-jornalista com o pessoalíssimo Nelson Rodrigues foi uma experiência.

Nelson Rodrigues entrou para um jornal ainda garoto. O pai, Mário Rodrigues, era o patrão, um irmão, Mário Filho, tra­tava do desporto (o nome oficial do Maracanã é Estádio Mário Fi­lho), Roberto, outro irmão e artista, ilustrava as peças, e Nelson fazia a tarimba de repórter policial. Num dia de 1929, sem assun­to, o jornal publicou uma manchete sobre um divórcio de famo­sos. A senhora invocada foi à redação, pediu para falar com o di­retor, que não estava, e, em substituição, o jovem Roberto levou um tiro e morreu. Nelson viveu a obra completa de Dostoiévski. Quando já era o mais popular cronista brasileiro, nas décadas de 50 e 60, ele fala dos dramas humanos com um talento que lhe per­mite driblar o dramalhão.

Não gosta dos jornais que ignoram o crime ou a morte do pobre. Ele jura que o atropelado, morto junto ao passeio, fica guardado por um círio (há sempre uma piedosa mulher que acen­de uma vela) – não contar esse drama nas páginas dos jornais é fa­zer a figura fria do vento que tenta apagar a vela… Ele conversa com o leitor e assim o agarra. Ele diz que, na hora da morte, o es­critor João Guimarães Rosa telefona a uma amiga e diz: «Socorro. Socorro.» Dito isso, logo na frase seguinte, Nelson chama a atenção para o pormenor: «Mas era um apelo sem ponto de excla­mação.» O leitor faz o que eu fiz. Voltei os olhos para a frase ante­rior. Não, não tinha pontos de exclamação. Fiquei enternecido pe­lo cuidado do cronista. Se Picasso me dissesse: «Repara no verde do chapéu do Arlequim, é igual ao do cadeirão», eu não ficaria mais comovido.

Numa crónica de 1968, Nelson fala de Aída Cury. Ele escrevia da mania da glorificação do jovem, o jovem que é bom porque é jovem, e interroga: «E se for um pulha? Sim, se for um desses que atiram Aída Cury pela janela?» Ele falava dum episó­dio trágico do Rio de Janeiro, de dez anos antes. Uma moça de 18 anos, órfã e estudante, foi arrastada para um prédio, na avenida que orla Copacabana, violentada e morta por três jovens. Eu lem­bro-me do caso. Em minha casa, em Luanda, liam-se as revistas brasileiras Cruzeiro e Manchete – e, sim, também nos meus cinemas tinham passado os filmes de James Dean, o suficiente para os nossos pais pensarem que usar jeans levava à juventude trans­viada. Eu sei que Nelson Rodrigues se enganou: foi dum terraço que Aída se atirou. Mas, mais uma vez, dei-me conta do robô que ele nunca foi. As suas personagens são gente. E a história das cida­des é feita disso, gente.

[Publicado originalmente na edição de 29 de março de 2015]