Choque geracional

Notícias Magazine

A diferença de idades entre as duas personagens da capa desta edição é exatamente de 81 anos. Uma vida bem vivida, portanto, separa a fadista Celeste Rodrigues, de 92 anos, do bisneto, Gaspar Varela, de 11. As rugas bem marcadas dela contrastam com a pele de anjo dele. Mas é só essa a dessintonia. De resto, quem os vê juntos por essas casas de fado de Lisboa fora, ela a cantar e ele a tocar guitarra, bem percebe a cumplicidade que há entre os dois. A que já é habitual entre uma voz e uma guitarra, à qual se acrescenta a familiaridade do sangue. Gaspar trata a bisavó por tu como se não atreveria se uma senhora da idade dela fosse outra fadista consagrada. E lá vão eles pelo fado fora, pela vida fora – a que começa, de Gaspar, a que resiste, a de Celeste.

Esta dupla merece que se lhe conte a história, antes de chegarmos à moral dela. Celeste é irmã mais nova de Amália Rodrigues – que, curiosamente, teria feito 95 anos nesta semana, no dia 1 de julho, no tempo das cerejas como ela gostava de dizer. É notável a sanidade mental que conseguiu manter, tendo feito grande parte da sua carreira na sombra da maior fadista portuguesa, mesmo apelido, mesmos bairros, diferentes apenas no estilo – Amália intelectualizou-se, Celeste manteve-se popular, até hoje. Celeste é garrida como os seus lábios, e a alegria que põe na vida fê-la nunca ficar amarga…

O fado corre nas veias da família e Gaspar é o último a quem tocou a sério. É um menino-prodígio: começou a tocar guitarra cedo, desde praticamente os 2 anos que pedia ao pai uma guitarra. Diz a bisavó – que ele trata por avó – que ele quis começar a tocar por causa dela, para a acompanhar. Agora isso aconteceu muitas vezes, sobretudo quando acabam as aulas e Gaspar já pode ficar até tarde por Alfama, quando calha, na Mesa de Frades, aos domingos na Viela do Fado.

E aqui reside um dos pontos-chave desta história. Este choque de gerações dá… vida. A Celeste, que garante que é andar entre os mais novos e nunca se questionar sobre a sua idade que ganha longevidade. A Gaspar, que aprende assim com uma das melhores entre os melhores – e, sem idade para se importar que o acusem de ser privilegiado, assume-se como um privilegiado, ganhando, por isso mesmo, imensa graça.

Em princípio, a moral desta história teria que ver com famílias. Como a sua estrutura é boa base para uma vida feliz – mesmo que elas sejam um bocadinho disfuncionais, é sempre melhor o carinho que encerram do que o vazio de quem não as tem. Exemplo prático de como os mais novos deviam tentar aprender com os mais velhos, e tanto que tinham a ganhar se, pelo menos, apreendessem com eles.

Mas não é só. Escrevo-vos de uma redação em que sou praticamente a mais velha – e olhem que sou menos do que indiciam os cabelos brancos. Onde as referências e a memória se perderam e estamos praticamente entregues ao esclarecimento de dúvidas no Google e nos telefonemas que fazemos a quem já deixou o nosso convívio diário. Num mercado em que os rookies são mais bem-vistos do que os botas-de-elástico – e as mudanças tecnológicas avassaladoras fizeram perder a noção de que a base do jornalismo é sempre a mesma: a cultura. É saber muito que nos faz perceber bem, escolher melhor, avaliar com justiça. Ter memória é fulcral nesta área que vive da transmissão do conhecimento. E isso está a perder-se.

[Publicado originalmente na edição de 5 de julho de 2015]