Charlie Brown

Os fiéis podem ficar descansados. A estreia da animação mais aguardada do ano é um regresso, sem cedências, ao universo Peanuts, desenhado por Charles M. Schulz ao longo de cinquenta anos. É a garantia do filho, Craig Schulz, que nesta entrevista fala da ideia do argumento escrito em família, do trabalho solitário do pai, das brincadeiras que passavam para as tiras e de como Charlie Brown merece mais protagonismo do que Snoopy.

Certo dia, do alto dos seus 2 anos, Alex Davis apontou para o desenho que o pai acabara de fazer e exclamou «Snoopy!». Tudo estaria de acordo com as melhores regras do incentivo familiar, não fosse o caso de o pai de Alex ser Jim Davis, o criador de Garfield. A culpa de toda esta confusão, contada pela revista Time, é de Charles M. Schulz (1922‑2000), Sparky para os amigos. Ao longo de um ininterrupto meio século – entre 2 de outubro de 1950 e 13 de fevereiro de 2000 –, o cartoonista norte‑americano publicou mais de 17 mil tiras sobre Charlie Brown e companhia. E que companhia: Snoopy, Woodstock, Peppermint Patty, Sally Brown, Lucy, Linus, Franklin, entre tantos outros. A banda desenhada de Peanuts espalhou‑se por páginas e páginas de 2600 jornais de 75 países, traduzida em 21 línguas para 355 milhões de leitores. O sucesso rapidamente atingiu a escala planetária, abrindo portas a adaptações sucessivas de livros, jogos, brinquedos, televisão, teatro, música e cinema.

Cinema, eis a questão. Snoopy e Charlie Brown – Peanuts: o Filme, com estreia marcada para 24 de dezembro em Portugal, mês e meio após o lançamento nos Estados Unidos, é realizado por Steve Martino, mas o argumento e a produção são assinados, quase por inteiro, por duas gerações da família Schulz: o filho Craig e o neto Bryan. Pretexto suficiente para a entrevista telefónica com Craig Schulz, a partir do Charles M. Schulz Museum and Research Center, na Califórnia.

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A estreia mundial de Peanuts: o Filme, em Los Angeles, contou com a presença do realizador Steve Martino, do produtor Paul Feig, da viúva Jean Schulz e do filho Craig Schulz.

Podemos esperar um Charlie Brown fiel às origens, sem nunca conseguir ganhar um jogo de basebol?
_Claro. Mantém‑se o mesmo Charlie Brown.

O filme foi uma ideia sua?
_Sim. A ideia surgiu há cerca de oito anos quando estava a ouvir Snoopy’s Christmas, música em que o Snoopy luta contra o Barão Vermelho. Imaginei como seria passar tudo aquilo para um grande ecrã de cinema. Comecei então a construir a história. Mais tarde, o meu filho também foi envolvido no processo. Trabalhámos a ideia e transformámo‑la num filme.

Enquanto argumentista, qual foi o desafio mais difícil que enfrentou?
_Para mim, foi criar a estrutura do filme, por isso acabei por trazer o meu filho Bryan [Schulz] e o seu parceiro na escrita, Neil [Cornelius Uliano]. São ambos argumentistas profissionais e ajudaram‑me a criar a estrutura da história. Eu tive a ideia, escrevi todas as falas e a parte humorística. Cada um teve diversas tarefas e dedicámo‑nos a partes diferentes do filme.

Trabalhou com o seu filho, tanto no argumento como na produção.
_Sim, esse terá sido o aspeto mais especial de toda a experiência. Trabalhámos durante quatro anos neste projeto, todos os dias, e isso é algo que nunca esqueceremos.

Em que medida é que este filme é diferente de outros baseados na banda desenhada criada pelo seu pai?
_A história é mais aprofundada do que a de outros filmes. Tem um enredo mais forte, que se vai desenvolvendo. É quase como se tivéssemos de ver o filme duas vezes para conseguirmos captar todos os pormenores. Foi construído de acordo com o verdadeiro «padrão» Peanuts. Tem muito do sentimento e da alma das tiras de banda desenhada, tem muitas referências que são homenagens ao que está publicado nas tiras, por isso há muita coisa para ver e tentar entender. Na verdade, existem duas histórias. Há a história de Charlie Brown – um ano inteiro no seu mundo – e depois a outra metade do filme é a vida de fantasia de Snoopy – aquilo que se passa no interior da sua mente.

Surgem todas as personagens de Peanuts?
_Sim, estão praticamente todas as personagens no filme, incluindo as das primeiras tiras. Em 1950, as primeiras personagens eram a Patty (não a Peppermint Patty, só Patty), o Shermy e o Charlie Brown. E temos todas as outras personagens, a Violet, a Frieda, o Pig‑Pen…

De que modo o filme respeita o trabalho criativo do seu pai?
_Desde o primeiro dia um dos objetivos era respeitar aquilo que o meu pai fez ao longo de cinquenta anos. Pretendíamos que o filme se mantivesse fiel à tira de banda desenhada, fiel ao trabalho dele. Havia que tomar decisões em relação ao que achávamos que não se adequava ao verdadeiro universo Peanuts. Por exemplo, houve alguém que disse «E se colocarmos um iPad nas mãos do Charlie Brown?», ou um computador numa secretária, ou qualquer coisa assim. Decidimos que não iríamos por aí. Tudo o que está veio das tiras de banda desenhada.

Quis, acima de tudo, proteger o legado Peanuts?
_Absolutamente.

Reconhece traços da personalidade do seu pai em alguma personagem?
_Oh, sim, vejo no meu pai muito do Charlie Brown, provavelmente também de Lucy. Na verdade, havia nele um pouco de todas as personagens.

Como foi crescer com a presença de Snoopy em casa?
_Cresci durante o início da década de 1960. Nessa altura, os Peanuts ainda não eram muito conhecidos. Só se tornaram famosos a partir de meados dessa década, depois do filme Feliz Natal, Charlie Brown. O meu pai esteve sempre presente, trabalhava em casa, por isso podíamos interrompê‑lo quando queríamos, e ele podia sair e vir brincar connosco. Foi ótimo. Não trocaria isso por nada.

O seu pai sempre trabalhou sozinho?
_Sim. Ao longo de cinquenta anos, todo o trabalho foi feito por ele. Desenhava as personagens, desenhava as letras das falas em cada uma das tiras… E não aceitava ideias de outras pessoas. Eram sempre ideias dele.

Também não aceitava as eventuais ideias dos filhos?
_Não, todas as ideias eram exclusivamente dele.

Era normal a vida da família Schulz estar retratada em Peanuts?
_Claro que sim, sobretudo na década de 1960. O meu pai teve cinco filhos. A minha irmã, por exemplo, fazia patinagem no gelo. Eu fazia corridas de moto, praticava surf, voava em helicópteros… Tudo isso surge de certa maneira representado nas tiras, quando o Snoopy está a fazer esse tipo de coisas. Todos nós jogávamos ténis e hóquei. O meu pai também, por isso desenhou não só a sua própria infância como aquilo que nos via fazer quando brincávamos.

Uma vez que parte da sua infância está representada no universo de Charlie Brown, qual é a personagem em que mais se revê?
_Se tivesse de ser alguma, seria o Snoopy, mas Pig‑Pen é uma das personagens de que sempre gostei. Embora ele seja um miúdo desleixado e sujo, cheio de poeira, gosta de si tal como é e está perfeitamente feliz. É bastante descontraído. De certo modo, eu sou assim.

É verdade que o seu pai, no início, não gostou do título Peanuts?
_Ele nunca gostou do nome Peanuts. Nem de início nem no fim. Originalmente chamou‑lhe Li’l Folks, mas o nome já estava a ser usado por outra tira. Ainda teve esperança de lhe poder chamar Good ol’ Charlie Brown.

Quem teve então a ideia desse título?
_Foi em Nova Iorque que o escolheram, no United Features Syndicate, durante a década de 1960. Gostaram da tira, mas como o nome Li’l Folks já estava atribuído, reuniram umas quantas pessoas a uma mesa e uma delas, cujo nome desconheço, lembrou‑se de Peanuts e foi esse o nome que escolheram usar. Uma vez que a propriedade da tira era do Syndicate, podiam fazer com ela o que quisessem.

Após a morte do seu pai, em 2000, alguma vez a sua família considerou a hipótese de continuar a banda desenhada recorrendo a outros autores, como aconteceu com Astérix?
_Nunca. A família decidiu que a tira jamais viria a ser desenhada por outra pessoa.

Há material inédito do seu pai por publicar?
_Que eu saiba não. Todos os desenhos que recuperámos estão no museu [Charles M. Schulz Museum and Research Center]. O meu pai fazia esboços em blocos quando estava de férias, desenhava personagens quando andava à procura de ideias. Esse material nunca foi visto pelo grande público, mas não existe nada por publicar, de que eu tenha conhecimento.

Snoopy tem uma estrela, perto do seu pai, no Passeio da Fama, em Hollywood. Charlie Brown está a caminho?
_Não sei. Julgo que o Snoopy é uma das cinco personagens de BD a ter o seu nome no Passeio da Fama. É algo muito especial.

Justifica‑se que Snoopy seja hoje mais global do que Charlie Brown?
_É uma pena que assim seja. Em muitos países, como o Japão, as pessoas não conhecem as tiras tão bem. Conhecem apenas as personagens através de produtos de merchandising, como brinquedos ou T-shirts. Por isso, o Snoopy é mais conhecido.

Tem alguma objeção à comercialização desse tipo de merchandising?
_Bem, todos os países são diferentes… Adoraria que houvesse mais gente a ler as tiras e que ficasse a conhecer o grupo todo, o Charlie Brown, a Lucy ou o Linus. No fundo, é essa a minha maior esperança em relação ao filme: que se apercebam de que há mais em Peanuts do que apenas o Snoopy. E talvez voltem atrás e comecem a ler a banda desenhada, chegando à conclusão de que a personagem principal é o Charlie Brown. O Snoopy é bem divertido, mas as tiras são mais sobre o Charlie Brown.

Que papel está reservado a Peanuts na história da BD?
_Desde o início que esta foi uma tira pioneira, que apresentava mensagens intelectualmente profundas ditas por crianças. Julgo que a ideia foi inovadora e, na verdade, já lá vão 65 anos e ainda ninguém conseguiu voltar a fazer o mesmo. Por isso, penso que esta será recordada como a melhor tira de banda desenhada de sempre.

Há planos para voltar a trabalhar com o seu filho num segundo filme Peanuts?
_Não sabemos ainda. Teremos de esperar para ver qual é a reação do público. Até agora foi ótima, e se as pessoas quiserem muito, mesmo muito, um outro filme, nesse caso vamos sentar‑nos e discutir o assunto. Mas neste momento não há quaisquer projetos nesse sentido.

O filme estreia-se em Portugal a 24 de dezembro. Com ou sem a sua presença?
_Em dezembro estarei no Dubai, mas adoraria ir a Portugal. Deve ser maravilhoso.

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