Catarina Martins

De 4 de outubro a 26 de novembro: caíram tabus, forjaram-se alianças improváveis, a política voltou ao dia-a-dia dos portugueses. Catarina Martins, protagonista do processo que muitos chamaram de histórico, escolhe os momentos decisivos dessas sete semanas e meia que mudaram o rumo do país, enquanto passa em revista a sua própria vida.

13 de setembro de 2015, vésperas do debate com António Costa na TVI24, em plena campanha eleitoral para as eleições legislativas. Catarina Martins, porta-voz do Bloco de Esquerda (BE), está preparada para lançar o desafio ao socialista. É a prova dos nove à disponibilidade para derrubar «o arco da governação», anunciada pelo líder do PS no congresso do partido. Naquele domingo, com o corpo a resistir ao cansaço, está segura mas ansiosa, tentando adivinhar a reação do adversário. «Porque não se entendem?» A pergunta que tantos eleitores do Bloco lhe dirigem na rua não pode ficar sem resposta.

A semana anterior fora de intenso debate dentro do BE. Ficara decidido: depois de vincar as diferenças programáticas, Catarina Martins teria de lançar o desafio. Retrospetivamente, a porta-voz elege este momento como o decisivo, o primeiro dos 53 dias que abalaram a política e o país, consubstanciado em dois minutos televisivos de política dura: «Se o PS estiver disponível para abandonar esta ideia de cortar 1600 milhões nas pensões, abandonar o corte na TSU e abandonar esta ideia do regime compensatório, no dia 5 de outubro cá estarei para conversar sobre um governo que possa salvar o país.» Continuou, a voz pausada, deixando ouvir cada palavra: «Se me disser que sim, ou que vai pensar, já valeu a pena o nosso encontro. Se me disser que não, os portugueses vão saber que pretende telefonar a Rui Rio ou a Paulo Portas, que os pensionistas vão perder dinheiro.»

Mais de dois meses depois. Dia 25 de novembro, vésperas da tomada de posse de António Costa como primeiro-ministro, Catarina Martins solta uma gargalhada. «Pela primeira vez desde o nascimento do partido, o Bloco de Esquerda vai a uma tomada de posse de um governo.» Recebe-nos na sala de reuniões do grupo parlamentar, agora com 19 cadeiras. Completa: «É a primeira vez que um governo toma posse incluindo no programa pontos que são fruto de uma negociação connosco.»

Ao longo do processo, Catarina temeu – por vezes muito – que o plano ruísse. «Até à assinatura, receei todos os dias que o acordo não fosse para a frente. Não por sentir que estivéssemos todos pouco empenhados, eu em particular, mas porque se tratava de um trabalho muito difícil.» Dias compridos, «em que de manhã achávamos que estava feito e à tarde percebíamos que faltava qualquer coisa, tal a complexidade das questões. Quando li na imprensa uma notícia extemporânea que anunciava uma data para a assinatura do acordo, preocupei-me a sério e pensei: “Isto assim não vai lá”», diz, aludindo à tendência mais formal do PCP.

O MOMENTO EXIGIU, DE FACTO, PREPARAÇÃO À PROVA DE GAFE. Não houve debate em que os adversários de direita não tentassem arrancar-lhe uma palavra menos clara, uma hesitação sintática, um sinal de contradição que pudesse deitar a perder o equilíbrio negocial com os socialistas. Nova gargalhada: logo a ela, especialista em linguística, licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, doutoranda em Didática das Línguas. «O Bloco é um partido feito de gente livre, com poucas frases feitas, mas sabíamos que tínhamos de ter muito cuidado.» Por isso, anunciou em tempo devido, numa afirmação de liderança curta e clara: «Quem fala pelo Bloco sou eu.»

Ainda a 25 de novembro, o 52º dia de crise, o presidente da República finalmente cede. Catarina Martins recosta-se na cadeira, sorriso vitorioso. Tem com Cavaco Silva um caso antigo. Combateu-o nos tempos da PGA, a prova geral de acesso obrigatória para o 12.º ano, no início da década de 1990, aluna da Escola Secundária José Estêvão, em Aveiro. De esquerda por herança familiar e convicção, a jovem Catarina, amante de chapéus coloridos e sapatos bizarros que uma prima lhe mandava de Londres, aluna brilhante a ciências e a humanísticas, «péssima executante» de piano, no entanto com a música a correr-lhe no sangue (neta de uma professora de piano e filha de uma licenciada em Música), fugia deliberadamente a formatos e a filiações partidárias. Já em Coimbra, em 1992, onde cursou Direito – que acabaria por abandonar desiludida com as «leis», apaixonada pelo teatro, determinada no empenho cívico – reagiria, desta vez contra as propinas, «o autoritarismo de Cavaco e as cargas policias ordenadas por Dias Loureiro». Acrescenta, com satisfação no olhar e na voz: «Ao longo destes dois meses recebi muitas pressões. Chegavam recados, diziam que o trabalho que estávamos a fazer iria servir de nada. Que ele [Cavaco Silva] não cederia. Mas eu sabia: fizesse as birras que quisesse, no fim seria obrigado a cumprir a Constituição.»

Primeiro objetivo atingido, Catarina faz contas: «Foram dias muito duros, de centenas de sms, de muitas reuniões. No Bloco, com os outros partidos, e pelo país, à noite e aos fins de semana, para explicar às pessoas o que se estava a passar. Era importante contrariar a desinformação e a chantagem.» Regresso à complexidade do longo processo negocial, enunciando as dúvidas duras, que incessantemente atacavam: «Vamos aceitar isto? O que podemos e não podemos aceitar? Perguntei-me várias vezes, muitas vezes.» Revela: «O momento em que fomos confrontados com a intransigência do PS em relação ao IVA da eletricidade foi muito complicado. Falávamos de luz, um bem essencial. Fiquei com muitas dúvidas.»

Aos 9 anos, percebeu que a professora primária batia sobretudo nos meninos mais pobres da turma. Reagiu, denunciou em casa o que se passava na escola. Nunca mais esqueceria a senhora, marcou-a para o resto da vida. Considera este «o primeiro momento de que tenho memória enquanto pessoa de esquerda. A incapacidade de aceitar a injustiça é a primeira marca de esquerda».

Crianças sem água e sem luz, não admite. Indigna-se, comove-se. Descreve a miséria que viu num bairro social da cidade do Porto e os olhos ficam mais verde-água do que nunca. Poderia, pois, deixar passar a intransigência do Partido Socialista na matéria que tanto lhe diz? «Fui para casa pensar. Pensar muito. As dúvidas martelavam. Não foi fácil. Mas ao longo dos dias fui recebendo mensagens de amigos, pessoas sem ligação à política e que dentro do meu círculo mais próximo transmitem o sentimento popular, e a todas ouvi o mesmo: isto tem de ser feito.» Fez-se. Com ela a protagonizar um momento histórico. «Teve essa noção. Entre muito cansaço, muitos cafés e algumas dores de cabeça.»

Aceitaria um lugar no governo? «Nunca pensei nisso. Mas as pessoas sabem bem que nunca deixei de fazer nada que tivesse de fazer.» Não tem, anote-se, qualquer incompatibilidade com o poder e o seu exercício, «mas para isso preciso de força e legitimidade». Sobre o que agora foi conseguido, «é preciso dizer a verdade às pessoas, este é o acordo que a nossa força permitiu negociar, e é por ser assim que é sério». Adverte: «Não desisti, não desisto daquilo em que acredito. Mas para o implementar preciso de mais força.»

PERCEBERAM A MENSAGEM OS ELEITORES DO BLOCO, OS AMIGOS. E a família? «Ao longo destes longos 50 e tal dias, as minhas filhas fizeram perguntas. Todas, e sobre tudo. Quiseram saber da vida concreta das pessoas, quiseram saber quando acabariam os exames. Houve dias em que me pareceram cansadas, mas o que iam dizendo de mim à avó demonstra algum orgulho.» À provocação «custava-lhe muito ter uma filha de direita?», atira sem hesitar: «Muito.»

A mais velha, 13 anos, desarma-lhe a irascibilidade. «Porque tem mesmo muita piada. É tramada, muito boa a fazer humor. Imita-me e desconcerta-me.» A mais nova, 9 anos, quis saber se a mãe seria ministra. «Isso não é importante», ouviu, em resposta.

Os dias de Catarina começam às seis da manhã, tempo de silêncio, necessário para preparar alguns dossiês. O pequeno-almoço em família é há anos uma rotina sagrada. E sempre que pode leva a filha mais nova à escola (a mais velha já não aprecia o esforço materno). Em contrapartida, terminam tarde, «tardíssimo, de madrugada», nos últimos meses. Com Catarina «estourada», muitas vezes com dores.

É uma resistente temível. Aos 16 anos, no liceu, representou sozinha uma peça de Bertolt Brecht, assumindo um longo e insólito monólogo, tendo percebido em cena que os colegas não decoraram o texto. Na Visões Úteis, companhia de teatro portuense que fundou em 1994, aguentou duas horas em palco, depois de ter caído sobre um tijolo que transportava nas mãos. «No final, tinha a cara num bolo», diz o irmão João, que é músico. Catarina, a dramaturga, a encenadora, a atriz, a gestora, a produtora cultural soma endurance com teimosia, polivalência com determinação sem limite. Aguenta enxaquecas – das muito violentas – sem dar o menor sinal de cansaço, suportou por inteiro, orgulhosa, a carga de trabalho que Francisco Louçã e Luís Fazenda lhe confiaram em 2011, apenas três anos depois de ter entrado para o partido e quando o grupo parlamentar do Bloco encolheu para metade. «Se é preciso fazer, faz-se.» Ao longo destes 54 dias, cedeu apenas um. Desmarcou a agenda, ficou um dia inteiro em casa. «Teve de ser. Estava a ficar irascível.»

Defensora e promotora do debate, não permite desvios depois de traçado o caminho. Do pai Arsélio Martins, reconhecido professor de Matemática e fundador do Bloco, herdou a disciplina de aço, a necessidade da preparação exaustiva. Tal como o progenitor, perante a adversidade, Catarina entrincheira-se nas convicções, convoca a notável capacidade de trabalho e não deixa nada pela metade. Quem bem a conhece, soube sempre que a anunciada morte do BE, com ela ao comando, fora manifestamente exagerada.

Não tem diário nem regista estados de alma. As notas que faz para as intervenções, em letra indecifrável, vão para o lixo. «Fica tudo na minha cabeça.»

Sem hesitação, Catarina Martins escolhe o segundo momento-chave destes tempos de crise e de quebra de tradição parlamentar: «O momento em que a comissão permanente do Bloco, na tarde de dia 4 de outubro, decide que, permitindo o cenário, deveríamos repetir o desafio a António Costa nessa mesma noite.»

Dia das eleições. A porta-voz do BE votou às dez da manhã numa escola de Vila Nova de Gaia. A cidade é-lhe cara. Nascida no Porto a 7 de setembro de 1973, viveu parte da infância na margem esquerda do Douro, antes de partir com os pais, professores, para São Tomé e Príncipe, primeiro, e Cabo Verde depois, ao abrigo de um programa de cooperação com as ex-colónias. Em Gaia, dividiu o quarto com Catarina Reis, amiga querida e primeira, que ainda hoje conserva, filha do casal que partilhava casa com os pais. De Gaia são as recordações mais antigas, uma delas especial: em cima de uma arca, Catarina, 3 anos, espreita por detrás de uma porta quase fechada a proibida Gabriela Cravo e Canela.

Mais tarde, já separadas, Catarina escreveria a Catarina longas cartas, relatos pormenorizados do dia-a-dia, as brincadeiras com os legos ou com as bonecas «barriguitas» que primas lhe faziam chegar a África, com guarda-roupa completo. Cartas, quase sempre rematadas sem cerimónia. «Por hoje não tenho mais nada a dizer. ass: Casoma», o nome construído com as iniciais do nome próprio e apelidos.

VOLTANDO A 4 DE OUTUBRO: CATARINA VOTOU ENTÃO EM GAIA. Logo depois regressou a Lisboa com o marido, Pedro Carreira, físico de formação também ligado ao teatro, uma das filhas, a mãe e a eurodeputada Marisa Matias, que os esperava na Mealhada. «A Mealhada foi sugestão da Marisa. Almoçara ali com Miguel Portas nas eleições europeias de 2009. E o resultado foi muito bom. Por isso, mesmo não sendo supersticiosa, achei que mal não faria.» Na capital participa na reunião da comissão permanente, agendada durante a viagem. «Só depois fui para casa. Precisava de um banho, de disfarçar as olheiras. Eram sete da tarde e já estava ansiosa. Nesses momentos, o melhor é deixarem-me em paz. Maquilhei-me (não o faria se soubesse que a minha aparência não se tornaria um assunto) e regressei ao São Jorge. Já com alguns votos contados, foi preciso tomar uma decisão, daquelas que se tomam em dois minutos: «Desafiamos já todos os partidos? Se sim, tínhamos de saltar por cima do protocolo e sermos os primeiros a falar.» Assim foi: Catarina Martins abre a noite eleitoral: «Estou aqui para vos falar de futuro.»

Gostou da resposta de Jerónimo de Sousa. Ao ouvir António Costa, contudo, «temi que o PS desistisse de ajudar a abrir o caminho». Propícia à insónia, passou a noite em claro, a traçar cenários atrás de cenários. Medos? «Sim. Medo de que o PS ou o PCP não estivessem disponíveis. Por vezes digo à minha filha para viver o momento e não pensar no que vem a seguir. Mas na verdade sou como ela.»

Quatro dias depois, a 8 de outubro, foi tomada uma das decisões mais importantes deste processo, considera Catarina Martins. «A decisão teve interpretações extraordinárias, mas quando pedimos ao PS um adiamento da reunião de 8 para 12 de outubro tínhamos em mente um único objetivo: levar para a reunião política as contas já feitas. Para isso, precisávamos daqueles dias. Queríamos dar um passo em frente e, quando se quer de facto concretizar algo, não se arranjam desculpas. Começa-se imediatamente a caminhar e foi o que fizemos. O adiamento permitiu-nos levar à reunião com o PS um trabalho sério.»

A reunião de duas horas correu de tal maneira que, no final, Catarina Martins pôde declarar alto e bom som: «No que depende do BE, fica hoje claro que o governo de Passos Coelho e Paulo Portas acabou.»

Ao longo do caminho respirou fundo e contou até três várias vezes. Ignorou provocações, a comunicação social, a espuma dos dias. «Antes de reagir colocava a mim mesma esta pergunta: como vai estar o país daqui a seis meses? E esta pergunta encerra aquilo que para mim era essencial.»

Não nega a empatia com o socialista Pedro Nuno Santos. Elogia-lhe o esforço nos bastidores e o acerto das declarações públicas. Sobre Costa, «nem empatia nem falta dela. Apenas negociação pura e dura».

De camisa branca, homenagem às vítimas dos atentados terroristas de Paris ocorridos na noite anterior, na sexta-feira 13 de novembro, Catarina Martins abre a apresentação da candidatura de Marisa Matias à Presidência da República. No Porto, o auditório da Biblioteca Almeida Garrett está cheio. Em palco uma atriz e contudo não se vislumbra um gesto ensaiado nem encenação teatral. A líder do Bloco cita Miguel Portas, em «Viragem», um texto de 2001 sobre os atentados do 11 de Setembro. «Estuporados. Assim estamos, vendo e revendo as imagens. Como foi possível? Foi.»

Marisa dedica toda a intervenção aos atentados da véspera. Também veste de branco. Estivessem presentes as duas irmãs Mortágua – Joana e Mariana – e ficaria completo o quarteto registado por Paulete Matos, numa bela fotografia de campanha de que Catarina Martins gosta particularmente: quatro mulheres convergem na pose, cúmplices, partilham talvez um segredo. A porta-voz bloquista escolhe o título, faz a legenda: «As camaradas.» Dado o mote, desenrola o novelo do preconceito sexista: «Há sobre as mulheres dois estereótipos: primeiro, que as feministas concordam com qualquer mulher que exerça o poder só por isso, por ser mulher. Segundo, que quando uma mulher atinge determinado cargo seca todas as outras. Nada mais falso. O facto de gostar de ver Assunção Esteves na presidência da Assembleia da República não anula as muitas discordâncias que tivemos; é igualmente falsa a ideia feita de que faz parte da natureza das mulheres competirem entre si. No Bloco já provámos o contrário em abundância.»

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Catarina Martins com Marisa Matias [Fotografia de Pedro Granadeiro/Global Imagens]

NÃO ESPERAVA DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA UM OÁSIS DE RESPEITO. Mas foi com algum espanto que enfrentou o descaramento do deputado que se achou no direito de a abordar em tom de flirt. «Devo dizer que estive vai-não-vai para lhe despejar o copo de sumo pela cabeça abaixo. Não podemos ficar como se não fosse nada.» Mais ou menos disfarçadamente, as ideias feitas e o sexismo abundam pelos corredores parlamentares: «Se uma mulher é de esquerda e está a liderar um partido, ou é lésbica ou má mãe. Um dia disseram-me que alguém não podia participar numa tarefa comigo porque tinha filhos. É importante obrigar esta gente a pensar duas vezes, reagindo na hora, com veemência e indignação.»

Sim, reage muito mal quando lhe perguntam de onde saiu a «nova Catarina» – a que levou de vencida os debates, e o BE a um resultado histórico – e a quem deve a preparação. «Tem de haver sempre um homem por trás de uma mulher que se destaca. Não lhes passa pela cabeça que uma mulher pode preparar-se, aprender, crescer, andar pelo próprio pé.»

Há muito que Catarina deixou de temer as dores de crescimento. «Comecei cedo a crescer depressa. Uma das minhas amigas teve uma doença que eu acompanhei. Éramos pré-adolescentes. Acompanhei tratamentos delicados, aprendi a lidar com o hospital, com a morte, com a perda. Cresci e de que maneira.»

Está preparada para o futuro. «Não há quem não reconheça ao BE a capacidade de estudar devidamente os dossiês que tem em mãos. Mas agora, se possível, temos de estar ainda mais bem preparados do ponto de vista técnico. São muito difíceis os tempos que aí vêm. Há que traçar bem o caminho, medir cada passo, de forma a que não nos percamos. Temos, sempre e cada vez mais, de manter uma relação muito clara e verdadeira com os portugueses. Queremos uma democracia muito transparente.»

Mantém o que sempre disse: não fala de nada que não entenda, não defende o que não perceba. É, definição de uma amiga, «control freak». Aos que menorizam por ser atriz, diz que fazem mal. «Tive uma formação abrangente e isso deve ter ajudado. Não é mau ter aprendido economia com Avelãs Nunes e estudado Shakespeare na universidade. Ter aprendido Direito Constitucional com Canotilho e ter ensinado crianças do Lagarteiro.»

DE VOLTA A LISBOA. A CONVERSA CONTINUA NO TERRA, restaurante vegetariano ao Príncipe Real, escolha da entrevistada. «Fui uma criança gorda, e se não tivesse algum cuidado seguramente já rebolava.» Contudo, excluído o marisco – a que é alérgica – Catarina não perde muito tempo a pensar em dietas. «Claro, tudo correria melhor se fizesse algum exercício. Mas não tenho vida para isso.» Ao jantar, aborda pela primeira vez a novela da assinatura dos acordos. Pessoalmente preferia um texto conjunto, estaria até disponível para uma fotografia de grupo. Mas a partir de certa altura deixou de se ralar com minudências. «Não sabia sequer que ia assinar naquele dia. Confesso, perdi a paciência para os formalismos. Limitei-me a dizer que fizessem como quisessem.» Espeta o dedo e sorri: «Evidentemente, desde que ficassem consignadas as medidinhas.» Antes de assinar, cruzou-se no corredor com Jerónimo de Sousa. Conversaram durante uns minutos. Nessa noite não festejou mas tem celebração marcada com os amigos mais próximos.

Em noite de dor de cabeça e de ainda muito trabalho pela frente, confessa ter sido surpreendida pela agressividade excessiva vinda, desde o primeiro minuto, da coligação de direita. «Foram para lá do imaginável, sobretudo quando falamos de quem diz defender a estabilidade, a imagem externa do país e os cumprimentos dos prazos europeus.» Tempos efervescentes, que trouxeram – «e ainda bem» – a política para a ordem do dia, mas também «um pouco assustadores». Há quem pense que a democracia é uma espécie de jogo de partido único. «Finalmente, as pessoas perceberam que as eleições legislativas não elegem o primeiro-ministro.» No Parlamento continua a ver a direita exaltada. «Há-de passar-lhes.»

A abrir dezembro, o jornal online Politico escolheu 28 personalidades políticas que em cada um dos Estados membros poderão fazer a diferença. Em Portugal, Catarina Martins, «O rosto da esquerda».

Ter-lhe-ão trazido estes dias, e a viabilização do acordo com António Costa, maior peso institucional do que tinha antes? «Estes dias retiraram-me sobretudo liberdade. Neste momento tenho uma agenda pública intensa. A certa altura até eu própria andava enjoada de mim.» Depois destes dias, continua sem «plano de vida». Porém, «do ponto de vista ideológico, ainda falta muito para pôr o país onde gostaria. Acredito no entanto que lá chegaremos. Uma mulher com responsabilidades políticas é a primeira a perceber que o mundo se faz com a concretização de impossíveis».

AFINAL, A TRADIÇÃO AINDA É O QUE ERA
Não há passagem de ano sem arroz de pato e pinha de Natal. «É sagrado», revela Marta Rocha, amiga antiga: «Por volta das seis da tarde do dia 31 de dezembro, a Catarina vem para minha casa, com a família, traz o pato, a célebre pinha, receita da sogra, e celebramos juntos a data com todas as tradições.» Passas à meia-noite, desejos de felicidade, o pedido mais acertado ensinou já à filha mais velha. «Da mesma forma, não há verão sem piquenique», contrapõe Catarina Reis, amiga desde sempre, que vive em Coimbra. «Todos os anos, no verão, as famílias juntam-se para um piquenique em que vão participando amigos novos. A marcação está agora a cargo das nossas filhas mais velhas, praticamente da mesma idade.»

O ALFINETE DE GRAVATA QUE VIROU ANEL
Adora colares mas raramente usa anéis. Quando usa, escolhe invariavelmente o mesmo: uma jóia que fora em tempos alfinete de gravata de um tio-avó, herdada da avó materna, professora de piano. «Essa minha avó foi educada por um tio. E quando ele morreu achou por bem transformar o alfinete de gravata em anel, homenagem a quem a criara. Muitos anos mais tarde, na morte da minha avó, a minha mãe pediu às netas que escolhessem uma recordação. Escolhi esta. Não vale nada mas gosto dele. Nem sempre o uso, mas é o único que uso.»