«Bond não é um herói. Nunca foi.»

Samuel Alexander Mendes, 50 anos, inglês de Berkshire, realizador premiado com um Óscar em Beleza Americana, descendente de uma família madeirense que se refugiou em Port of Spain, não fala do seu passado. Nesta entrevista – exclusiva para Portugal – conversa sobre homens frágeis, mulheres bonitas mas sobretudo inteligentes e o risco de transformar um herói num tipo normal…

Spectre é o seu último James Bond?
_Não, isso foi o que eu disse da última vez. E depois fiz uma triste figura ao voltar atrás na minha palavra. Vou esperar uns seis meses e depois logo vos digo.

O que o levou a mudar de ideias depois de terminar a realização de Skyfall?
_Estava exausto, tinha um projeto no teatro, nem sequer queria pensar num novo James Bond. Além do mais, eles [Michael G. Wilson e Barbara Broccoli, produtores da saga 007] queriam que este filme se estreasse neste verão. Teria de começar a trabalhar imediatamente. «Não pode ser, não consigo», disse-lhes. Mas depois perguntei a mim mesmo se não ficaria com inveja de um outro realizador. E a resposta foi «sim». Sentia-me possessivo em relação às personagens, ao novo M [Ralph Fiennes], ao novo Q [Ben Whislaw] e à nova Moneypenny [Naomie Harris] que eu escolhera. Por isso, senti que queria contar – e tinha ideias – para outra história.

O que lhe agrada tanto nas histórias e no mito de Bond? É também o regresso à sua infância?
_São várias coisas ao mesmo tempo, mas sim, é um pouco isso. Tenho um filho com a idade que eu tinha quando vi o Bond pela primeira vez. Quis fazer um filme que o meu filho pudesse ver, com que pudesse identificar-se, pois todos os meus filmes são para maiores de 18 anos. Essa foi uma razão forte. Senti-me também ligado ao Bond do Daniel [Craig], especificamente o do Daniel. Os realizadores têm como que avatares nos seus filmes, versões de nós mesmos, e nem sempre têm de ter o nosso aspeto. Em Beleza Americana, em particular, diria que a filha é uma «espécie de mim», tal como a criança em Caminho para Perdição. Por vezes, não é a pessoa mais óbvia, não é a estrela. Identifico-me bastante com aquilo com que Bond está a tentar lidar. Isso nem sempre acontece noutros filmes.

Acredita que Daniel Craig estará no próximo filme de 007?
_Não sei, terá de perguntar-lhe. Acho que ele está como eu. Em Inglaterra, a estreia de um novo Bond é um acontecimento em grande. Agora, como da última vez, é como se o país inteiro estivesse a apresentar o filme. Devemos distanciar-nos de todo este alvoroço e do ruído que rodeia a estreia, antes de conseguirmos ter noção daquilo que se acabou de fazer ou de ter uma ideia clara sobre a possibilidade de voltar a fazê-lo.

Em Spectre, como que voltamos à essência de Bond. Concorda?
_Bem, acho que no último filme o levámos num sentido muito negro e rancoroso, que eu adorei. Estou orgulhoso de Skyfall e não queria abandonar todo o trabalho que fizemos no que toca a conferir-lhe algum sentido de realidade emocional. Mas não queria voltar a fazer o mesmo filme. Pretendia fazer um mais romântico, mais malicioso, mais variado em termos de tom e, ao mesmo tempo, queria talvez retirar dele mais algum gozo.

Como foi escolher o vilão?
_Ele escolheu-se a si mesmo. O Christoph Waltz fez a melhor audição possível para um vilão de um filme de Bond, a melhor que jamais foi feita, chamada Sacanas sem Lei [filme de Quentin Tarantino, 2009]. É um excelente ator. Sorte a minha. Não foi muito difícil imaginá-lo naquele papel [Franz Oberhauser]. Tanto o Javier Bardem, em Skyfall, como o Christoph Waltz, agora, aceitaram de bom grado a ideia. São ambos atores distinguidos com Óscares. Na verdade, é interessante que o prestígio destes filmes seja tal, hoje, que a presença de um grande ator num 007 não é considerada pouco apropriada. Talvez em anos que já lá vão houvesse um pouco mais a sensação de que isso não seria possível.

Lembra-se de quando leu o primeiro livro de Ian Fleming, o criador de James Bond?
_Sim, tinha 16 ou 17 anos. Julgo que comecei por ler Vive e Deixa Morrer, porque foi o filme que realmente me atraiu para o fenómeno de Bond. Notei as diferenças, sobretudo a diferença entre o Bond de Fleming e o Bond de Roger Moore. Porque o de Fleming é uma personagem muito mais sombria. As pessoas falam muito a respeito de Bond como herói, mas na verdade ele não é um herói, nunca o foi. Bond é um anti-herói, e isso é muito diferente. É um homem repleto de falhas e que reconhece as suas próprias falhas, bebe e fuma demasiado, é mulherengo, mente, não obedece à autoridade, é taciturno, depressivo – por isso, continua a ser para mim extraordinário o facto de esta figura perdurar há cinquenta e tal anos. A mitologia em seu redor é algo por que ansiamos, de que vamos à procura, queremos fazer parte dela. Este é o meu capítulo, ou os meus dois capítulos, dessa mitologia de Bond. É a minha contribuição.

O sexismo é agora também muito menos evidente.
_Sim. Julgo que existiam coisas que eram um pouco… Trata-se de tentar criar mulheres que estejam ao mesmo nível de Bond, que tenham a autoridade, a sabedoria, a história de vida, a aura de mistério que ele tem. Temos três atrizes fantásticas [Monica Bellucci, Léa Seydoux e Naomie Harris]. Não está ninguém a quem lhe tremam os olhinhos e que diga «Oh, meu Deus, estou aqui junto do James Bond», que ande por ali em biquíni, porque simplesmente estou muito mais interessado em contar uma história de… Não quer dizer que não sejam sexy e todas incrivelmente belas e inteligentes. Só que são também outras coisas. E isso é bom, julgo eu.

Bond e Madeleine Swann estarão juntos no próximo filme?
_Não sei. Tem inteiramente que ver com o facto de o Daniel querer fazê-lo de novo, ou se terão outro Bond diferente. Direi apenas que tenho muito orgulho em ter-lhes deixado o M, o Q, a Moneypenny, um supervilão e o seu homem de confiança. Nada mau. Parece-me que até me saí bem nesse aspeto. Entreguei-lhes uma quantidade de gente com quem se pode fazer um filme inteiro.

A abertura de Spectre, na Cidade do México, sobretudo com os planos longos e demorados, lembrou-me Orson Welles.
_Em Skyfall, eu não tinha ficado inteiramente satisfeito com os primeiros dez minutos. Faltavam mudanças de ritmo, momentos de pura criação de atmosfera. Não entendam mal o que estou a dizer, tenho muito orgulho naquele filme, é como um dos meus filhos, mas senti que se estava a correr o tempo todo. Num filme de Bond temos certas liberdades que não existem em filmes normais. Uma delas é o facto de se saber muito bem quem é a personagem principal, não é necessário apresentá-la. Durante dez minutos, há a liberdade de lançarmos o público no meio de qualquer coisa e não explicar nada. Sabe-se que irá haver ação, que muito provavelmente irá ser bastante emocionante, mas não tem de ser ação em estado puro. E isso é irónico porque talvez se esperasse que um filme de Bond fosse uma camisa-de-forças criativa. Quis, portanto, lançar o público bem no meio da ação, para seguirem o Bond, dizendo-lhes «Isto vai ser em tempo real». O plano demorado é, na verdade, para atrair o público – espero que sim – para algo explosivo e imprevisível… Fiquei bastante orgulhoso desses dez minutos, não pela realização a nível técnico, mas por causa do ritmo que possui e do modo como vai mudando.

Spectre foi já interpretado como sendo um filme a favor de Edward Snowden e contra o clima de vigilância permanente.
_Quando Bond começou, não havia dúvida de que trabalhava para os tipos bons. Havia o MI6 e a Guerra Fria, nós éramos os bons, nem sequer era preciso explicar para quem ele trabalhava. Atualmente, quando se olha para as manchetes dos jornais a respeito do MI5 e do MI6, diria que noventa por cento são manchetes negativas. Não há maneira de fazer de conta que não existe. O que temos de fazer é criar e animar o debate em torno da questão da vigilância e situar Bond no que considero ser o lado certo. Há que pôr os argumentos contrários na boca de outra personagem [Denbigh], que Andrew Scott representa, favorável à vigilância e à guerra travada por meio de drones. Provavelmente, no filme consegue-se detetar quais são as minhas opiniões a respeito destes assuntos. Julgo que é válido, porque há que ver qual a posição assumida por Bond, como o velho integra o novo, e o «novo» resume-se ao facto de não ser necessária a presença de homens no terreno. É o próprio M que faz a defesa de Bond quando diz «Uma licença para matar é também uma licença para não matar», e não é de todo um acidente o facto de o filme terminar com Bond a olhar Oberhauser nos olhos e a não o matar. É uma escolha algo ousada para se fazer num filme de Bond. Há um público em peso a clamar pela morte do supervilão. Deixá-lo vivo e transformar esse ato numa vitória é algo complicado. Mas conseguimos fazê-lo.

A ENTREVISTA DECORREU COM OUTROS TRÊS JORNALISTAS, ESTRANGEIROS