Antártida: reserva de ciência e de paz

No continente gelado há mais do que pinguins. Há um imenso ecossistema. Sem habitantes fixos, os humanos vão até esta bússola do mundo no que toca às alterações climáticas para explorar e fazer ciência. 

JOSÉ XAVIER é biólogo marinho, doutorado pela Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e investigador da Universidade de Coimbra e da British Antarctic Survey. É representante de Portugal nas reuniões do Tratado da Antártida e em vários comités do Scientific Committee for Antarctic Research (SCAR). Ganhou o prémio internacional Marta T. Muse pelo trabalho de excelência na ciência e política na Antártida.

O que é que está a acontecer na Antártida que o mundo deva saber?
_Estamos a falar, por exemplo, de perdas de gelo que podem levar ao aumento do nível do mar, de mudanças na circulação das corren­tes do oceano Antártico e de alterações na circulação atmosférica. Tudo situa­ções cujo impacto tem efeitos na vida dos animais que lá vivem, mas também no resto do planeta. As regiões polares são dos melhores locais para estudar as alterações climáticas: se o planeta está a aquecer, é nestas regiões mais frias que as anomalias vão ser mais visíveis inicialmente.
O que é que estas alterações significam para os seres vivos que lá habitam?
_As mudanças no oceano Antártico, como o aumento de temperatura, a menor salini­dade da água e os ventos mais fortes que mo­dificam as correntes oceânicas, podem vir a provocar alterações a nível da cadeia ali­mentar no oceano. Um dos nossos mais re­centes estudos sugere que, no futuro, algas e pequenos crustáceos começarão a distri­buir-se mais para sul, em direção ao conti­nente, à medida que as águas mais a norte aquecem. Quanto aos predadores de topo, como pinguins, focas e albatrozes, depen­derá da sua flexibilidade para se moverem à procura de alimento, caso este fique mais longe das suas colónias de reprodução. Com as alterações climáticas há espécies que claramente vão ser afetadas e outras que tal­vez consigam adaptar-se. O nosso objetivo é perceber quais as espécies que conseguem essa adaptação, entender como o fazem e avaliar as consequências que isso terá na es­trutura e no funcionamento do oceano no futuro. Será que daqui a cem anos ainda ire­mos pescar o mesmo peixe que apanhamos hoje no oceano Antártico?
Mas o problema da Antártida não é só da An­tártida… Como é que o degelo vai afetar o res­to do mundo e os outros seres vivos?
_O derreter do gelo das regiões polares po­de ter um impacto muito grande no planeta. Por exemplo, se todo o gelo que cobre a An­tártida derretesse, o nível do mar aumenta­va cerca de 60 metros. As estimativas para 2100 do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas são de que o nível do mar possa aumentar entre 15 e 95 centíme­tros. O impacto disso vai verificar-se na nos­sa zona costeira, tal como em todos os países que possuem costa oceânica.
A origem deste problema é responsabilida­de nossa?
_Eu creio, tal como a maioria da comunida­de científica, que nós, seres humanos, con­tribuímos para estas mudanças que esta­mos a registar. É extremamente provável que a influência humana seja a causa domi­nante no aquecimento observado desde o século xx.
E o que é que temos de alterar se quisermos pôr um travão nesta situação?
_A nível pessoal ter uma vida normal, mas com o menor impacto ambiental possível. A nível governamental é importante tomar decisões políticas que estimulem a redução de emissões de dióxido de carbono (CO2) à escala global.
Em agosto de 2014, 75 cientistas e decisores políticos de 22 países reuniram-se para defi­nir as prioridades da investigação na Antárti­da nas próximas duas décadas. Esteve lá. Que conclusões saíram do encontro?
_Esta foi a primeira vez que a comunidade internacional formulou uma visão coletiva, através de discussões, debates e votações. Sendo o único português nesta reunião foi um grande privilégio. As conclusões, refe­ridas no artigo da Nature, evidenciam seis grandes áreas de prioridades científicas. Al­guns exemplos são a necessidade de conhe­cer os processos subjacentes às mudanças atmosféricas na Antártida e como elas im­pactam o resto do planeta, o que controla a taxa de aceleração de perda de gelo nos man­tos e qual a estrutura da sua costa terrestre. Para responder a questões como estas é im­portante ter financiamento para a ciência polar a longo prazo, promover o crescimen­to das colaborações internacionais e fortale­cer a comunicação para o público em geral sobre a importância da Antártida.
Uma das áreas em que trabalha é a educacio­nal e de divulgação da importância dos polos.
_Sim, os meus projetos focam-se a três ní­veis: ciência, diplomacia e educação. Cien­tificamente, eu e a minha equipa investi­gamos como a cadeia alimentar antártica funciona como um todo em relação às alte­rações climáticas, sobre as mudanças que pode vir a sofrer, as consequências que pode causar aos animais que lá vivem e ainda ten­tar perceber o que pode acontecer noutras partes do planeta. Diplomaticamente, atra­vés da representação de Portugal nas reu­niões do Tratado da Antártida que regulam as relações internacionais em relação à An­tártida. Do ponto de vista educativo, os nos­sos projetos estão focados em levar o conhe­cimento das regiões polares e a importân­cia da ciência que lá se faz a todos. Fazemo-lo através de iniciativas junto das escolas, ins­titutos e universidades portugueses, exposi­ções, filmes educativos e produção de mate­rial didático em português. Estas iniciativas envolvem também muitos colaboradores de outros países e organizações internacionais, de modo a mostrar o que Portugal faz ao ní­vel científico – através do Programa Polar Português PROPOLAR –, mas também dar a conhecer aos nossos estudantes o que de melhor se faz lá fora.
Quanto tempo ao todo já passou na Antártida?
_Já realizei sete expedições à Antártida des­de 1997. Passei mais de dois anos e meio na região. A maior que fiz, em 2009, está docu­mentada no livro Experiência Antártica, em que pretendi, em crónicas semanais, ilustrar o que estava a descobrir, explicar a impor­tância das regiões polares e levar um pouco do sentimento de viver rodeado de pinguins.
E os pinguins são animais tão simpáticos co­mo habitualmente são retratados?
_São por natureza simpáticos e muito curio­sos, mas depende da espécie. Os gentoo são os mais simpáticos, é fácil trabalhar com eles porque relaxam quando lhes pegamos e estão sempre a olhar para nós, são muito curiosos. Os rei também e tenho inúmeras aventuras com eles. Uma vez, ia a sair de uma colónia de 200 mil pinguins-rei e, minutos depois, percebo que tenho uns dez a segui­rem-me em fila indiana. Mas há outros, co­mo os barbicha, que são engraçados mas nunca param quietos, e estão sempre a ten­tar dar-nos bicadas. Todas estas diferentes personalidades tornam o nosso trabalho co­mo cientistas ainda mais interessante.
O que é guarda de mais marcante?
_O que mais marca na Antártida, ainda ho­je, é a sensação de estar noutro planeta, on­de tudo é muito diferente e fascinante. Os pinguins vêm até nós, as equipas científicas trabalham e colaboram entre si de um mo­do exemplar. Temos uma região quase do ta­manho da Europa que não pertence a nin­guém: toda a Antártida é regida pelo Trata­do da Antártida que defende que esta deve ser uma reserva natural internacional dedi­cada à ciência e à paz. Fantástico, não é?
E essa paz sente-se quando se está lá?
_A paz sente-se sobretudo através do com­portamento das pessoas, dos nossos colegas. A ciência é a prioridade de tudo que se faz e todos colaboram entre si, numa perspetiva geralmente altruísta, que raramente se vê hoje em dia. Estamos longe da civilização e as condições extremas ajudam as pesso­as a aproximarem-se e colaborarem ain­da mais entre si, particularmente no inver­no austral, entre junho e setembro, quando existem apenas cerca de mil pessoas em to­do aquele território.
O que é que se vê na Antártida?
_Eu julgava que só havia gelo, uns pinguins e pouco mais. Estava errado! O que mais me impressionou foi, na chegada às águas frias da Antártida, começar a ver os primeiros icebergues, primeiro do tamanho de carros e depois maiores do que estádios de futebol. Depois temos um ecossistema a transbordar de vida, com os albatrozes no ar, os pinguins e as focas na água. Durante o verão austral, entre dezembro e março, temos a maioria dos animais marinhos a reproduzirem-se. Na ilha onde passei nove meses em 2009, a Bird Island, eram mais de 700 mil animais… e quatro pessoas! É como estar num jardim zoológico, mas são os cientistas que estão a ser observados.
E o que é que se ouve?
_Quase não há sons, é fascinante. Não exis­tem árvores, apenas vegetação rasa, assim, nos dias sem vento, só se ouve o som dos nos­sos pés a pisarem a neve ou os pinguins a «fa­larem» entre si…
Há momentos em que se esquece que se é cientista e que se está a trabalhar? Não dá por si apenas a olhar espantado?
_Por mais incrível que pareça, muito rara­mente esqueço. Cada expedição demora normalmente dois ou três anos a planear, en­tre obter o financiamento e tratar de todos os detalhes. Por isso, cada dia tem um grupo de tarefas planeadas e a pressão para recolher as amostras ou os dados necessários a tempo é bastante grande. É uma viagem inesque­cível e uma aventura, mas resulta de muito trabalho e dedicação diáriae, num ambiente extremo, para que tudo corra bem.