«Ainda queria fazer muitas coisas»

Maria de Jesus Barroso não para. Aos 87 anos, a sua vida continua cheia de compromissos e projetos, sobretudo na fundação que dirige, a Pro Dignitate, dedicada aos direitos humanos, com fortes relações nos PALOP. Uma entrevista em que fala do quotidiano por detrás dos holofotes, a propósito do relançamento da sua biografia, Um Olhar Sobre a Vida, de Leonor Xavier.

Como é neste momento um dia normal na vida de Maria Barroso?
_[Folheando a agenda] Na segunda-feira tive várias coisas para fazer, às terças e às quintas faço fisioterapia porque parti um ombro aqui há tempos. Ontem fui a um almoço de trabalho no Grémio Literário, e depois tive uma reunião, do que eu chamo as minhas conselheiras, cinco amigas que convidei para virem uma vez por semana para conversarmos sobre os problemas. Hoje fui assistir a uma conferência na Católica sobre aquele livro do Popper, A Sociedade Aberta… Depois fui a correr a casa almoçar com o meu marido,  foi quando soube que a minha empregada tinha caído lá da casa, e agora vim para aqui. À tarde tenho ainda uma sessão na Academia Internacional da Cultura. Quem vai falar sobre a figura de um grande franciscano é o padre Milícias, de quem sou muito amiga também.

Isto é o ritmo normal?
_Não paro. Venho aqui (à Fundação Pro Dignitate, na Estrela, em Lisboa) de manhã, de tarde, e é um ritmo verdadeiramente infernal. Depois tenho muitos convites para coisas, e eu aceito aquelas a que gosto de assistir. Por exemplo, costumo ir às conferências que o Dr. João Carlos Espada organiza na Católica. Tenho convites para falar aqui, para falar ali, dentro e fora do país.

E nunca lhe apetece descansar?
_O povo diz que parar é morrer…

Não vai reformar-se nunca…
_Não… Vou-me embora e não me reformo… Tenho aqui a fundação e interessa-me muito que isto continue, pelas pessoas que trabalham aqui e pelos objetivos que temos. Mas também tenho bolseiros, jovens que estudam porque eu os apoio, sobretudo africanos de língua portuguesa… Olhe, o vice-reitor de uma universidade em Luanda, a quem chamo de Fernandinho, o Dr. Fernando Macedo, foi aqui meu bolseiro. Gosto imenso dele. Dar a jovens esta possibilidade de estudar é para mim uma grande satisfação. Teria pena se tivesse de acabar com isso.

Nestes tempos difíceis, o que é que ainda lhe dá esperança?
_Que possam aparecer figuras que encontrem caminhos que nos conduzam a outro tipo de sociedade e de mundo. Como tenho bastante idade, conheci o Olof Palme na Suécia, o Willy Brandt na Alemanha, o Helmut Schmidt, o Helmut Kohl, o Mitterrand, tudo homens que conseguiram equilibrar as sociedades a que pertenciam e encontrar um rumo para a Europa. Seria muito importante que não puséssemos um ponto final neste caminho que começámos quando criámos a União Europeia. É muito importante para o mundo inteiro.

Depreendo das suas palavras que não confia nesta geração de políticos europeus…
_O Sarkozy era muito fraco, a Merkl não é nada de especial. Há agora o Hollande na França, que não conheço pessoalmente. Acabei agora de ler um livro dele, Changer de Destin. Se ele conseguir colocar tudo aquilo em prática, acho que pode ajudar a tirar a Europa da situação em que se encontra. E o Obama também é outro elemento que pode ajudar a equilibrar as coisas. Precisamos muito. Não podemos querer que os nossos filhos, netos, vivam numa selva. Queremos que vivam numa sociedade mais justa, tolerante, igualitária, pacífica e solidária. Tem de se encontrar um outro tipo de sociedade… Se estamos só dependentes dos mercados, estamos muito mal…

Alguém que lutou para fazer este tipo de sociedade em que vivemos, o que é que dá por si a pensar? Aquilo em que acreditei afinal não é possível…
_Eu apesar de tudo não perco a esperança de que é possível, apesar de ser velha. Vivemos momentos difíceis e não perdemos a esperança, apesar de sermos demitidos, de sermos interrogados na polícia, de sermos presos… Não quero é que as coisas se agravem de tal maneira que tivéssemos de dar muitos passos atrás. Isso é que não, porque chegarmos a uma situação semelhante à que vivemos…

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Está a falar de política ou de economia?
_Estou a falar de política. Acho que é possível.

E essa não poderá ser uma utopia hoje, como foi naquela altura?
_Muitos pensavam que era uma utopia, e por isso não se metiam na luta. Mas houve alguém que disse que a utopia é amanhã, e nós podemos transformar essa utopia em realidade. Mas temos todos de dar uma ajuda, cada um no seu quadrante.

No tempo em que a sua biografia, recentemente lançada, começa, a vida era muito diferente da de hoje…
_Eu entrei na Faculdade no ano de 1944/45, veja como sou velha… E para o Teatro Nacional em simultâneo.

Numa família muito numerosa e muito interessada na política?
_Um irmão meu que era professor da Faculdade de Ciências foi demitido por causa da política, o meu pai foi preso várias vezes… A última vez foi na véspera de fazer 74 anos, e foi festejá-los à polícia política com a tortura do sono, teve uma síncope, ia morrendo. E esteve nos Açores deportado, com sete filhos em casa, esteve um ano no forte de Angra do Heroísmo. Mas todos tínhamos fé de que era possível mudar as coisas, e todos ajudávamos de alguma maneira. A família era muito unida, tínhamos todos um grande sentido de solidariedade. Costumo dizer que foi ali a minha primeira grande escola. Aprendíamos a descobrir os grandes valores humanos, a solidariedade, o respeito pelos mais velhos, todos os valores eram ali descobertos com os meus pais, a minha avó, os meus seis irmãos. Agora vejo muitos meninos a terem tudo e mais alguma coisa sem fazerem muitas vezes um esforço para o conquistarem.

Essas facilidades foram também aquilo por que a sua geração lutou.
_Pois foi, mas com a conquista das coisas. Lembro-me de dizer, «mãezinha, ou paizinho, vi uns sapatos que gostava muito de ter», e eles respondiam que se tivesse boas notas compravam. Agora não. Os miúdos têm tudo, roupa de marca, tudo, sem sequer pedirem. É preciso também tentar ensinar aos mais novos que se deve fazer esforço para conquistar as coisas e merecê-las.

Acabou por ficar à frente do Colégio Moderno, que era do seu sogro. Desse ponto de vista privilegiado, como foi observando as alterações nas gerações ao longo dos tempos?
_Foi importante. Fui para o colégio em 1949, quando me casei, e o colégio ainda tinha internato de rapazes. Eram muitas vezes filhos de africanistas, gente que ia para África, ou então da província, que não tinha colégios como hoje há por todo o lado. Tive muitas dificuldades no colégio, nem consegui ser professora. Fui durante dois anos, enquanto não vinha a resposta ao diploma do ensino particular. Depois, ligaram ao meu sogro e disseram: «Sr. João Soares, a sua nora não pode ser professora, porque o governo não quer.» Trabalhei então desalmadamente no colégio e fiz tudo. Ia três vezes por semana à praça para comprar o peixe, a fruta e tudo o mais, por volta das cinco e meia ou seis horas da manhã, para ser mais barato.

Houve muitas coisas que quis fazer na vida e que não fez por ter sido impedida. O que teria sido se tivesse conseguido ser o que queria?
_No antigo sexto ano, escrevi que queria ser advogada para defender os que precisam, os mais pobres, e queria ser atriz porque gostava muito de representar. De facto queria ir para Direito, mas acabei o conservatório e a minha professora de Filosofia convenceu-me a seguir para Ciências Histórico-Filosóficas. A quem queria ser ator, não era exigida grande sabedoria, bastava a quarta classe para entrar no Conservatório. Na faculdade fui colega do Luís Filipe Lindley Cintra, do Sebastião da Gama, o poeta da Arrábida; da Matilde Rosa Araújo… Havia também o grupo dos políticos, com quem também me dava muito e me interessavam. Lá em casa ouvíamos a BBC e a Rádio Moscovo na Segunda Guerra Mundial, estávamos muito atentos. Tive dois irmãos que foram professores de operários. O ambiente era muito politizado em minha casa.

Se tivesse escolhido não teria sido professora ou política, teria sido atriz?
_Eu gostava de ter sido atriz, mas quando ao fim de quatro anos a Amélia Rey Colaço transmitiu, com grande e sincera pena, que o governo não deixava mais que eu fosse contratada, passei a acabar o curso e…

Uma pessoa tem o seu sonho arrasado por um governo… fica com uma enorme raiva, não?
_Eu representei, no ano de 1948, duas peças de que gostei muito: Benilde ou a Virgem Mãe, do José Régio, e fiz A Casa de Bernarda Alba, de Lorca, que era uma peça com um poder mobilizador extraordinário. Mas os censores, alguns deles, eram pouco cultos e não se aperceberam disso. Deixaram passar. Quando fomos representar A Casa de Bernarda Alba a Coimbra, não faz ideia do que aquilo foi. Eu estava no segundo ano da faculdade, devia ter 18 ou 19 anos. Estava lá o diretor do TEUC, o Joaquim Namorado, o Carlos de Oliveira, enfim, toda a intelectualidade de Coimbra estava lá em peso a ver a peça. No fim do segundo ato começaram a chamar pelo meu nome. Eu era muito tímida, estava lá atrás, mas a Palmira Bastos, que fazia de Bernarda Alba, veio buscar-me e levou-me para a frente, para onde atiraram uma pasta com as fitas da Faculdade de Letras, e uma capa. Uma colega de Coimbra entrou pelo palco e colocou-me a capa às costas. Foi só aí que eles deram com o poder mobilizador daquilo e já não nos deixaram representar no Porto. Meteram-se as férias grandes e, no fim fui ter com a Amélia Rey Colaço , e ela disse-me: «Mariazinha, tenho de dar-lhe uma triste notícia. Fiz tudo para que isto não acontecesse, mas não consegui, o governo não deixa mais contratá-la.» Respondi-lhe, com muita pena: «Dona Amélia, vou representar outros papéis.» E pronto.

Qual era a sua ideia na altura?
_Estava a acabar o curso. Casei, no ano seguinte.

Quando aceitou essa interdição a ideia era ser atriz mais tarde?
_Ainda representei, já depois de casada fiz uma coisa com o Jacinto Ramos, à tarde. Mas pronto, pensei «acabou-se, faço o curso, vou fazer outras coisas ». Quando veio o 25 de Abril, disse ao Augusto Figueiredo que ia ter com a Amélia Rey Colaço, porque tinha a certeza de que algumas pessoas que lhe deviam muito, agora para fingirem que eram grandes revolucionários iam voltar-lhe as costas. E alguns fizeram-no. Fui ter com ela e disse-lhe que continuaria a ser sua amiga sempre. E fui, até ela morrer.

E esqueceu essa faceta na sua vida…
_Poesia é que continuei a dizer sempre. Ia muito com o grupo do Lopes-Graça, ao outro lado do rio, ao Seixal, a Almada, eles cantavam numa primeira parte, numa segunda eu dizia poemas, e na terceira parte canções revolucionárias. Púnhamos aquilo tudo em alvoroço.

Quando a poesia era uma arma.
_Sim. O Joaquim Namorado não tinha aquele… como era? «Abafai meus gritos com mordaças, maior será a minha ânsia de gritá-los! Amarrai meus pulsos com grilhões, maior será minha ânsia de quebrá-los! Rasgai a minha carne! Triturai os meus ossos! O meu sangue será a minha bandeira e meus ossos o cimento duma outra humanidade. Que aqui ninguém se entrega – isto é vencer ou morrer – é na vida que se perde que há mais ânsia de viver!»

Como é que consegue ter isso tudo na cabeça?
_Tenho e muito bem… Aquilo era tudo revolucionário… Foi uma época dura mas que valeu a pena ser vivida. Agora não podemos voltar para trás.

Houve outra coisa que acabou por não ser, política ativa. Foi candidata, acabou por ser eleita…
_Fui candidata antes do 25 de Abril pela oposição.

E depois do 25 de Abril foi eleita…
_Fui. Ainda estive um tempo na Assembleia, mas depois não podia, tinha o colégio e não dava.

E do colégio, gostava?
_Muito, muito. Segui miúdos… Criei a infantil, a creche, e portanto os miúdos passaram a entrar no colégio com 4 meses e só saíam de lá para a faculdade. Era muito agradável seguir a evolução. Não queria políticas no colégio.

É preciso não esquecer que esteve toda a vida ao lado de Mário Soares. Houve coisas que não fez por causa disso, certamente.
_Sim, com certeza. Dava com gosto o lugar a outro.

O colégio foi a paixão na sua vida profissional…
_Sim, gostei muito de trabalhar lá e tínhamos uma equipa de professores muito boa, como hoje, e nunca houve problemas no colégio, mesmo quando veio o 25 de Abril. Nunca deixei que lá entrassem as lutas partidárias, o colégio era um terreno neutro.

Hoje em dia o colégio continua a ser um bom negócio?
_É uma boa atividade, e a minha filha tem uma paixão imensa por essa atividade, é ela que lá está a tomar conta. Começou a trabalhar quando eu ainda estava na direção. Foi ganhando interesse pelo colégio e seus valores, e tem feito um trabalho admirável. No outro dia disse numa entrevista que dei, e citando aquele soneto de Camões «Se lá no assento etéreo, onde subiste, Memória desta vida se consente, Não te esqueças daquele amor ardente, Que já nos olhos meus tão puro viste», que isso serve ao meu sogro. Deve estar radiante por ver a neta fazer um trabalho extraordinário no colégio.

Apesar da atividade política, o casal Barroso Soares foi sempre muito dedicado à família, a família gravita à vossa volta…
_Sobretudo a minha, e alguma do meu marido.

Quem foi o cimento dessa relação?
_O meu marido chegava a dizer: «Os teus irmãos são muito mais solidários comigo do que os meus irmãos.» E era verdade. Como os meus irmãos tinham aquela fibra política interessavam-se imenso e mostravam a sua solidariedade para com o meu marido.

E a família uniu-se à volta desse empenhamento político…
_Sim, sim. O meu irmão Virgílio, pai do meu sobrinho Alfredo, a certa altura foi demitido da Faculdade de Ciências – ele era um grande matemático. E depois passou por uma semi-ilegalidade, foi lá que nessa casa conheci o autor de Esteiros, o Soeiro Pereira Gomes, e também o José Magro, por exemplo, que também era grande figura do PCP, que estavam na ilegalidade.

A política também contribuiu para aumentar essa união…
_Sim, com certeza. Tinha na faculdade um grande amigo, o Sebastião da Gama, com quem me dava muito bem. O Sebastião, por causa do grupo da política, dizia-me assim: «Não deixes, não deixes! Eles querem fazer de ti uma bandeira!» [risos] Como eu estava no Teatro Nacional…

A sua rede familiar foi o que a manteve nas ausências prolongadíssimas do seu marido, na prisão, no exílio?
_Sim… Contei sempre com os meus irmãos, os meus pais, os meus familiares. Éramos dez à mesa e havia sempre lugar para mais um, dois ou três.

Na sua biografia há uma frase interessante. Diz-se que a sua desgraça foi ter casado com o Mário Soares…
_Foi o Mário Castrim que disse isso. Quando eu era jovem, tínhamos uma grande simpatia pelo Partido Comunista.

Estava a falar de política, então. Pensei que era uma questão de personalidade…
_Quando fui para o Conservatório conheci o Castrim. Estávamos ligados a um grupo muito politizado, ele sabia disso. Mas depois que comecei a ler Os Processos de Moscovo fiquei espantada, e também quando comecei a ver as críticas dos comunistas a amigos meus e mesmo ao meu marido – comecei a ficar alarmada. E li O Tacão de Ferro, de Jack London.

Acha que se não fosse o seu pai e o seu marido, teria encontrado Deus mais cedo?
_Talvez… O meu pai casou-se pela igreja, mas a certa altura ficou descontente. Viu que havia muitos afilhados de padres e afastou-se com a desilusão. Mas disse-me sempre: «Se Deus existir, Deus há-de compreender-te se trabalhares de acordo com certos valores e há-de compensar-te…»

Viveu afastada da igreja…
_Sim, mas nunca guerreando. Quando o meu filho teve aquele desastre, fiquei muito abalada. Tinha um médico em Pretória, onde o meu filho estava, que dirigia a equipa e todas as manhãs perguntava como estava o meu filho. «Está um bocadinho melhor, mas continua muito doente. Peça a Deus.» Todas as manhãs era assim. Foi isso que me aproximou. Eu tinha uma avó que me levava à igreja em Setúbal, ensinava-me as orações, o credo, a salve-rainha… Depois esqueci.

O seu marido gostou dessa ideia?
_Não se importou. Cada um é como é, segue as opções que tem…

Quando estava na luta política, diz na sua biografia, que os homens segregavam as mulheres e queriam reduzi-las à condição caseira.
_A maioria dos homens era assim. Havia um grupo de amigos meus, um deles professor universitário, outro de filosofia, e o Álvaro Salema era alvo das críticas deles , eles faziam muita troça do Álvaro Salema, porque ajudava a mulher a dar os biberons aos filhos e muitas vezes a mudar as fraldas. Eu dizia-lhes que eles eram uns machistas incríveis, a começar pelo meu marido. Na política eles também não beneficiavam as mulheres, elas é que conseguiram, com o esforço que fizeram, conquistar as posições que hoje ocupam. Hoje não há discriminação.

Se tivesse nascido uns anos mais tarde, a sua história era diferente…
_Não sei… Fiz aquilo que gostava. Uma vez, estava o meu marido a acabar o segundo mandato, a rainha de Espanha veio cá para um congresso. Estávamos a jantar em Cascais, e ela disse-me assim: «A dona Maria tem de suceder ao seu marido.» E eu disse: «Oh majestade, isto não é uma monarquia…»

Sentiu que influenciou o seu marido em decisões que ele tomou?
_Não, ele tinha muita segurança nas coisas que decidia. Dei a minha opinião nalgumas coisas de que me dava conhecimento, mas não era isso que ia influenciá-lo, porque ele tinha uma determinação muito grande em relação aos atos políticos. Sempre lhe disse que é um animal político, e é verdade. Dedicou a vida toda à política, e eu fiz outras coisas… Fui mãe, fui atriz… Não foi a mesma coisa. Mas sempre com a preocupação de tomar atitudes políticas também. Nunca fui presa. Fui chamada à polícia, mas nunca presa.

Foi por sorte?
_Não sei. A primeira vez que fui, tinha estado em Santarém a fazer um recital, convidada por um grupo de coordenação cultural, que tinha muitos advogados da oposição e até comunistas. E eu, claro, disse poemas revolucionários. No dia seguinte tinha uma convocatória para a PIDE e durante cinco dias seguidos fui à PIDE de manhã e de tarde.

Houve um tempo em que pensou que não ia haver revolução?
_Não, eu tive sempre esperança de que pudéssemos conquistar a democracia, sempre tive.

E depois, pensou que seríamos uma nova Praga?
_Não… Eu disse na altura ao meu marido: «Não foi por isto que nós lutámos, Mário.» E é verdade. Cheguei a ter medo que eles pudessem vencer.

Quando é que sentiu mesmo que Portugal ia ser um país livre, democrático e sem influências totalitárias?
_Depois disso, claro, o Eanes deu um apoio grande, e havia vários militares que eram homens democratas, que não eram comunistas e portanto conseguiram segurar a democracia. A partir daí ficámos com a certeza de que não íamos para trás. E é por isso que agora digo que não podemos ir para trás.

Já disse isso três vezes nesta entrevista.
_Temos de segurar a democracia para não voltar atrás.

Durante o tempo todo, nunca vos passou pela cabeça ir lá para fora?
_Não. Gostava de viver cá, o meu marido também. O meu marido ainda esteve lá fora, em exílio, mas sempre numa perspectiva temporária. Um sobrinho meu, que é cineasta, Mário Barroso, fugiu para Bruxelas na altura da Guerra Colonial. Mas todos tinham vontade de voltar. Agora as coisas estão tão difíceis, que muitos, para terem uma profissão, estão a ir lá para fora, para o Brasil, para o Japão, até para a China! Tenho a filha de uma amiga que está em Xangai.

Isso desgosta-a?
_Não, mas gostaria que as pessoas pudessem ir para lá contactar com outras culturas, mas depois pudessem regressar ao nosso país, estar aqui e contribuir para o enriquecimento do país, de todos os pontos de vista…

Consegue distinguir, na sua vida, a Maria Barroso da mulher de Mário Soares?
_Sempre gostei de manter a minha personalidade.

Até manteve o seu nome…
_Tive sempre um grande orgulho e satisfação de ser a mulher de Mário Soares, porque gosto muito dele, mas sempre gostei de ter a minha personalidade. Quando olhamos para outros casos… Olhe, o Fernando Henrique Cardoso. Era casado com uma grande senhora, que era a Rute Cardoso, uma mulher cultíssima, interessantíssima, mas que ficou muito na sombra. Ela já morreu.

A fase da sua vida em que foi primeira-dama foi complexa para si?
_Não… Eu fiz a minha vida perfeitamente e até costumo dizer que não fiz nada de especial. Às vezes as pessoas abordam-me na rua para me darem um beijinho, dizem que gostam de mim. Aquilo que as pessoas sentiram foi a sinceridade das minhas ações, porque isso foi uma linha de continuidade na minha vida…

O que recorda mais desses tempos?
_O que foi muito interessante nesses tempos foi a possibilidade de conhecer figuras mundiais, inesquecíveis. O Sakharov, que eu conheci quando íamos fazer a viagem oficial à União Soviética. O meu marido chegou a casa e disse-me: «Olha, Maria de Jesus, vou dar-te uma grande alegria! Consegui que tivéssemos um encontro com o Sakharov!» E ele não estava ainda em liberdade… Foi na Embaixada de Portugal em Moscovo, só os dois casais com o jornalista, o Carlos Fino. Foi inesquecível, era uma pessoa encantadora, de uma inteligência e finura extremas. Fiquei tão impressionada que quando acabámos o pequeno-almoço com eles, fomos à porta acompanhá-los. E eu fiquei a vê-lo a ir para o carro, com os vidros foscos, e a pensar para comigo: vou para um país livre e este homem vai ser aprisionado. Outro que gostei muito de conhecer foi o Mandela, a cuja cerimónia de tomada de posse assisti. Depois fizemos uma visita oficial passado pouco tempo à África do Sul. Ele não estava já com a Winnie, nem estava ainda com a Graça, e foi uma neta dele que andou mais comigo, que era filha de um português. Foi uma parte boa da minha vida. Já não havia perseguições, vivíamos em liberdade e democracia e tive a possibilidade de conhecer gente muito interessante, instituições interessantes.

Como é que uma menina que se achava tímida se confrontou com uma vida pública tão intensa?
_Eu era tímida, mas nessas coisas tinha força.

As luzes, os holofotes, não a incomodaram nunca?
_Não, fui sempre igual a mim própria, portanto não tinha preocupações de parecer isto ou aquilo, nem tinha, sobretudo quando era mulher do primeiro-ministro ou do presidente, nem me passava pela cabeça que eu era uma mulher diferente das outras. Estava apenas numa determinada posição que, claro, é privilegiada por ter melhor possibilidade de conhecer os problemas. Sou uma mulher como as outras, uma cidadã como fora até aí.

Nunca teve nenhum truque para enfrentar multidões? A sua carreira de atriz não ajudou nisso?
_Antes do 25 de Abril gostava muito de fazer os comícios, em Santarém, Alpiarça, no Couço… E tínhamos polícia lá dentro e cá fora. Mas eu gostava daquela luta, interessante, sem violência, mas com força e ânimo. E isso aprendi lá em casa, com a minha família. Foram eles a minha primeira grande escola política, os meus irmãos, o meu pai… Tenho uma fotografia em que tenho apenas dois anos e estou pela mão do meu pai na penitenciária, não por ele ter roubado mas porque tinha havido uma revolta militar. Tinha 2 anos e a minha irmã 4, ela também lá estava.

O que é que mais lhe custou na exposição pública?
_Eu não me importava nada. Fazia as coisas sempre com naturalidade e simplicidade. Às vezes o que era cansativo era estar nos cumprimentos, por vezes horas. Mas eu aprendi, tinha ouvido que a rainha de Inglaterra se apoiava ora numa perna, ora noutra, e eu fazia isso também. Era engraçado.

E na educação dos seus filhos que efeito essa exposição teve?
_O período em que o meu marido esteve fora foi doloroso, difícil, eles sentiram bastante. E eu gostava de ter tido mais disponibilidade para eles do que tive. Eu vivia para eles, para o colégio, para o trabalho, mas podia ter sido melhor. Até uma vez disse «agora que sou avó é que estava pronta para ser mãe». Isto porque me lembrava de uma médica que conheci em Boston, que uma vez disse: «É preciso tirar um curso para ser engenheiro, para ser professor é preciso estudar, fazer e acontecer; para se ser pai ou mãe quaisquer dois juntam-se e têm os filhos.» E não estão preparados muitas vezes, o que é verdade. Só depois vamos ganhando experiência e aperfeiçoando.

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Qual era a sua maior preocupação quando estava cá sozinha com eles, ainda pequeninos?
_Que estudassem e não sentissem muito a falta do pai, compensá-los com a minha ternura e interesse.

Havia alguma revolta deles?
_Não, eram bonzinhos. Passaram algumas fases, daquelas em que são mais difíceis, mas nunca tive problemas com eles.

Às vezes os filhos acham que os pais são egoístas…
_Isso não, isso não. Percebiam. Eram afetados com certeza porque lhes fazia falta a figura do pai, porque eu não lhes prestava tanta atenção quanto devia…

Quando o seu filho foi também para a política gostou da ideia?
_Achei muito bem, achei que era natural que ele se interessasse pela política. Achei muito bem quando se candidatou à câmara, e achei que ele trabalhou muito bem. Fiquei até admirada não ter sido reeleito… Bem sei que ele não fez campanha nenhuma. Enfim, eles saíram muito boas pessoas, tenho muito orgulho neles, são dois seres muito bem formados e eu estou muito satisfeita.

Surpreende-lhe que algum dos seus netos não tenha seguido esse caminho, ou é mais um sinal dos tempos?
_Os meus netos mais velhos não queriam – são filhos do primeiro casamento do João, uma é arquiteta, outra médica e outra formada em História –, nunca queriam que eu dissesse que eram netos do presidente, ou filhos do presidente da câmara. Nada disso… Queriam ser eles próprios. Quando a minha neta, Inês, que estudava arquitetura, chegou a casa um dia e disse que ia inscrever-se no Erasmus com uma colega, eu disse-lhe que ela devia ir para Itália, porque eu conhecia o Scalfari e a filha, este e aquele… Ela disse que não queria ajuda. Dei-lhe a palavra de honra que não pedia nada. Eles são assim. Não são pedinchões. São pessoas simples e bem formadas.

Ainda lhes lê poesia?
_Agora já não, porque não tenho tempo e eles já são muito crescidos. Quando a Inês era pequenina, em torno dos 3 anos, comecei a ler-lhe poesia, e ela chegava a decorar poemas, sem eu dar por isso… Uma vez ia no carro com ela e o meu marido, e ela pediu «aquela do Camões, com a Leonor». Comecei a dizer «Descalça vai para a fonte, Leonor pela verdura»… E ela pegou naquilo e levou até ao fim. O meu marido até me disse: «Dás-lhe tantas doses de poesia que ela fica a detestar.»

Hoje pouca gente imagina o que é viver com uma pessoa durante 63 anos?
_Passou num instante, infelizmente passou rapidamente.

É uma osmose?
_É… Entendemo-nos bem, continuamos, é bom para os filhos, para os netos e vivemos tranquilamente, o que é muito agradável.

Nunca lhe apeteceu libertar-se e ter outra vida?
_Não… E agora estou à espera da chamada….

Que horror, porque diz isso?
_Porque já tenho 87 anos…

E então?
_É muito ano…

Pensa muito nisso?
_Agora sim, penso que não me resta muito tempo e que ainda queria fazer muitas coisas. Vamos ver se consigo…

Diz isso com um ar tão pragmático…
_Pois claro… Amanhã é quinta, não é?

O que quer fazer que ainda não fez?
_Continuar a trabalhar aqui. Promover atos de solidariedade para aqueles que precisam. Cada vez precisam mais neste mundo fora…