Ah, como eu gosto de ocorrências!

Notícias Magazine

No dia 18 de fevereiro, no condado de Harlan, no Kentucky, Esta­dos Unidos, foi emitido um mandado de captura: «O Departamento de Polícia procura Elsa, a rainha da Neve. A suspeita é loira e foi vis­ta usando uma longa túnica azul e a cantar Let it Go. Como se pode ver pelo tempo, ela é muito perigosa. Não tente prendê-la sozinho.» A temperatura a roçar os 20 graus negativos impunha medidas e a polícia local encontrou o culpado ideal, a rainha nórdica do filme da Disney, O Reino do Gelo, de coração frio e gesto glacial. Harlan, 1700 habitantes e a rua Principal onde à hora de ponta passa uma carrinha de 15 em 15 minutos, vivia uma pasmaceira.

Fechados na delegacia, os polícias dedicavam-se ao humor que é uma das suas atividades preferidas. Aliás, nós sabemo-lo pelas sé­ries e filmes, com eles a aproximar-se com mil cuidados do perigoso bandido e, quando o podem apanhar à unha, previnem: «Police!»

Há dez anos, em reportagem para a revista Sábado, estive na­quela região dos Apalaches, entre vários estados (Kentucky, Ten­nessee, Virgínia…), onde vive um povo, os melungeons, que julga ser português. Os melungeons casam-se entre primos e são mula­tos ¬ além dos portugueses, descendem de negros e índios. O xerife de Hancock, no Tennessee, condado próximo de Harlan, convidou–me para um churrasco no seu quintal. Fui apresentado a supostos compatriotas que me fizeram a prova de consanguinidade.

Sentaram-me numa cadeira e procuraram um remoinho de cabelos no cocuruto, mas, se à época eu ainda tinha cabelo, con­tinuava, como sempre, com a falta do remoinho. «Você é mesmo português?», espantaram-se.

O episódio da Rainha Elsa insere-se no costume dos polícias ame­ricanos escreverem relatórios, que são tornados públicos. Além da útil divulgação local, dão a oportunidade aos jornais de fazerem um best of dos comunicados mais insólitos do país. Há dias, o portal de notícias Huffington Post recolheu alguns. Houve aquela senhora que veio de robe para o patamar e pôs-se a gritar: «Help! Help!» Com tanto grito por socorro, apareceu o carro patrulha que não pôde fazer mais do que o relatório: Help era o nome da gata da mulher.

Aborrece-me que a polícia portuguesa não tenha o mesmo hábito de publicitar as ocorrências. Desenjoavam os portugueses de outro recorde do CR7, e a mim, que sou cronista de todos os dias, tiravam-me do pesadelo da falta de assunto. E não venham dizer que é por não se passar nada que não temos bons relatórios policiais. Tenho melhor do que a gata Help. Conheço dois cunhados portuen­ses que, há anos, quando vão passear para os centros comerciais, se dedicam a gritar pelos nomes das respetivas mulheres, que são ir­mãs. «Piedade!», grita um. «Socorro!», grita o outro. E, apesar de assustarem meio Continente da Senhora da Hora, nunca chegaram aos jornais.

Na verdade, contra mim falo, pois também não previno a polícia como deve ser. No outro dia, tomava café no Balcão do Marquês, na lisboeta rua Duque de Loulé, e lia um jornal. Com uma sensação estranha, de espiado, levantei os olhos e, para lá da vitri­na e das duas vias da rua, uma mulher, sentada ao volante, olhava para mim. Gosto de pensar que isso é habitual e voltei ao jornal. Duas linhas depois, como quem não quer a coisa, voltei a olhar.

Lá estava ela e numa posição esquisita para o pescoço. Ela sa­bia que provocava. Leitura, outra vez. Desvio o jornal para o carro estacionado e decido ser destemido. Olho a mulher nos olhos. Ela era bonita, mantenho o olhar. O suficiente para ver que o carro es­tava vazio e, para lá das janelas, havia um anúncio de teatro colado a um taipal.

Em Rochester, New Hampshire, os pais chamaram a polícia quando souberam que um homem esquisito passava os dias a olhar a escola dos filhos. A polícia deslindou o caso do cartaz de Arnold Schwarzenegger colado numa janela.

[Publicado originalmente na edição de 1 de março de 2015]