A que soa Portugal?

Percorreu milhares de quilómetros pelo país todo e anda há três anos a gravar sons, a fazer perguntas, a querer saber como se canta de norte a sul. Tiago Pereira captou a dimensão humana por detrás da tradição oral portuguesa. A curiosidade resultou na série documental O Povo que Ainda Canta, que se estreia esta semana na RTP2.

Não estou a indexar, a cata­logar ou a estudar. Estou a dar a conhecer. Eu faço do­cumentários.» Tiago Perei­ra gosta de esclarecer logo o que faz. Não é antropólogo nem etnomusicólogo. É realizador. E defen­de as facetas menos mediatizadas da músi­ca, dos sons, da cultura tradicional e popu­lar. Por isso as regista – é autor de mais de uma dezena de documentários e centenas de vídeos sobre o assunto. Interessam-lhe os protagonistas, os anónimos que cantam, tocam e dançam sem encenações.

Tiago é filho do músico Júlio Pereira, que tem cerca de uma centena de discos edita­dos, entre trabalhos de autor e colabora­ções com outros artistas, como instrumen­tista, orquestrador ou produtor. Talvez por isso recupere com facilidade memórias da infância e da adolescência, viagens cons­tantes em que assistiu à construção de ca­vaquinhos, contactos com cancioneiros, a música de Zeca Afonso, figura que lhe era tão familiar, entre outras personalidades do panorama musical português. Concer­tos, ensaios e estúdios de gravação fazem parte das suas vivências de criança. Mas a herança paterna não aprisionou o realizador de 42 anos. «Sempre tive outros interesses musicais.» Talvez tenha sido ela a plantar em Tiago o interesse nas noções de «tradicional», «popular» ou «raízes».

Quando começou a estudar cinema, em 1995, com 23 anos, levava na bagagem o mundo que o pai lhe mostrou. Foi também por essa altura que descobriu a importân­cia do som e das paisagens sonoras. Recor­da as visitas, de câmara em punho, que fa­zia à avó, num lar de idosos. Queria fazer um filme. Num dos dias em que lá estava, ouviu a uma velhinha cega: «Todas as aldeias têm a sua igreja e têm o seu sino. O sino serve pa­ra avisar as pessoas quando são horas de al­moçar e de jantar e de rezar. Aqui não se ou­ve um sino que seja.» Foi neste momento, garante, que o som ganhou para ele uma no­va dimensão. Nunca chegou a concluir o di­to filme, mas percebeu o que queria fazer da vida. A avó, o lar e aquela dimensão humana provocaram-no. Mas os sons sempre foram importantes. «Em miúdo, ia para os cafés ver quantas conversas conseguia ouvir ao mes­mo tempo e tentar percebê-las do início ao fim, sem perder a história.»

«Tenho necessidade urgente em docu­mentar», descobriu mais tarde na faculda­de. «Depois construo temas como o da vio­la campaniça, da polifonia, danças tradicio­nais, etc., a partir da base de dados. Tudo o que gravo são células vivas que podem ser misturadas com outras.»

Tiago grava, divulga os registos e depois remistura e faz música com o material re­colhido. «Quem conta um conto acrescen­ta um ponto» e é aí que se dá a mistura. Em 2013, na ilha de Santa Maria, nos Açores, te­ve um exemplo disso. Mas sem samplers ou meios artificiais. Estava tudo preparado para começar a gravar um senhor a tocar violino, com a paisagem montanhosa em fundo. Antes de iniciar a «atuação», o homem surpreendeu todos, dizendo: «Agrupamento ABBA.» E começou a tocar, à sua moda, uma música da banda sueca.

Tiago rejeita as comparações frequentes que fazem entre o seu trabalho e o de Michel Giacometti, que nas décadas de 1970 e 1980 percorreu o país a recolher sons de cantores e músicas tradicionais. Até por causa da con­vicção generalizada de que, depois do traba­lho exaustivo do etnomusicólogo francês, já não havia mais música popular portugue­sa para gravar. «Há tendência para se achar que já foi tudo registado, mas não é verdade. Estamos sempre a ser surpreendidos pela dimensão humana…»

Tiago Pereira acredita que há uma gran­de falta de conhecimento sobre a músi­ca popular portuguesa e essa é uma das ra­zões por que tem corrido o país a recolher e a documentar todos estes sons. Tudo te­rá começado em 2008, quando realizou o documentário A Tradição Oral Contemporâ­nea, com a participação de B (Bernardo) Fa­chada. O músico foi para Trás-os-Montes e aprendeu uma música, centenária, tradicio­nal da região. Mais tarde, interpretou-a em Lisboa – o público do concerto pensou que fosse da autoria do cantor. «Provavelmente, a viagem que a canção centenária fez da al­deia até à capital, usando a voz e a interpre­tação do B Fachada, contribuiu para huma­nizar um território tão perto de Lisboa e, ao mesmo tempo, tão longe. Serviu para apro­ximar pessoas e deu a conhecer.»

«Alfabetização da memória» é o que lhe chama. O que ocorre sempre que conver­sa com as idosas que, de forma espontânea, «atuam» nos palcos rurais. «Gosto de velhi­nhas porque são sinceras, pragmáticas. Não têm máscaras.» E gosta de as ouvir cantar, so­bretudo as que desafinam mais: justamente porque a câmara de Tiago quer o real, o es­pontâneo, o popular. Mas também gosta dos mais novos, dos instrumentos, da panóplia de sons que contribuem para a riqueza cultural de um Portugal que tarde viveu a Revolução Industrial, o que de certa forma contribuiu para que fossem conservadas algumas prá­ticas e instrumentos, património que ainda está vivo apesar de desconhecido da maioria dos habitantes das cidades. O que é popular é bom e não há que ter vergonha das origens, ainda que estejam longe, «atrás do sol posto».

Existe ainda algum preconceito em re­lação ao rural e ao que a ele está associado, acredita o realizador. Mas «são essas origens humildes que tornam Portugal rico em prá­ticas musicais». O Povo que Ainda Canta, pro­grama de rádio, na Antena 1 e documentário na RTP, é a prova disso. O «ainda», no título da série representa uma espécie de resistên­cia. Ainda há quem resista aos olhares de sos­laio e solte a voz. «Toda a gente cantava neste país. Agora, se alguém canta na rua é maluco ou vai com os copos.»

Os 26 episódios do documentário, que se estreia nesta quinta-feira, dia 8, na RTP2, mostram os protagonistas que contam e can­tam música portuguesa. A tradição e a identi­dade, os cantores e tocadores. As danças e os instrumentos. Para o realizador, contribuir para dar espaço à gente anónima, mostran­do-a e dando-lhe voz, foi a forma que encon­trou de agradecer e «honrar esta herança», de retribuir os ensinamentos de vida que recebe e o privilégio de viver «perante uma dimen­são humana maior que montanhas».

A MÚSICA PORTUGUESA A GOSTAR DELA PRÓPRIA
A produção da série O Povo que Ainda Canta resulta do projeto A Música Portuguesa a Gostar dela Própria, de que Tiago Pereira é mentor, e que começou em 2011. «Se calhar devia chamar-se A Música Portugue­sa a Conhecer-se a Ela Própria. Trata-se de um canal/arquivo com quase dois mil vídeos para celebrar a variedade da música feita em Portugal. São sempre filmados em espaços exteriores ou inóspitos, aproveitando os sons ambientes e criando intimidade com os músicos.» Está disponível aqui.