A moda atrás da lente

São os mágicos invisíveis que nos mostram as tendências. A fotografia de moda portuguesa é um mundo desconhecido, nem sempre reconhecido, mas é ela que cria os ícones de estilo. Estes são Carlos Ramos, Mário Príncipe, Miguel Ângelo e Pedro Ferreira. Os homens atrás das câmaras chegaram-se à linha da frente.

A Nikon F3X que Carlos Ramos usa para fotografar guarda um património valioso: 1,6 milhões de disparos. Aquela câmara, bem vistas as coisas, conta uma boa parte da história da moda portuguesa. O fotógrafo tem 53 anos de idade e mais de três décadas de carreira – e isso é muito mais tempo do que qualquer manequim ou tendência, é até mais tempo do que algumas marcas ou publicações de moda. Carlos Ramos, como Miguel Ângelo, Mário Príncipe ou Pedro Ferreira, são os homens que nos mostram desde o século passado o que é estilo, que criam ícones e nos explicam a evolução da beleza. Resguardados atrás das luzes, hoje é dia de saltarem para o centro do palco.

 

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Carlos Ramos fotografado por Miguel Ângelo

Não há modelo digno desse nome que não conheça o estúdio de Ramos no Largo do Carmo, em Lisboa. Naquele primeiro andar espaçoso, de pé-direito alto e grandes janelas sobre a praça, há toda a espécie de luzes e tripés, telas em variadas tonalidades de branco. Fernando Pessoa viveu aqui uma parte da sua vida, num quarto alugado, e há uma placa à porta a anunciar tão ilustre residência. As paredes da casa de banho estão cobertas por polaroides de modelos nuas ou seminuas, com atenção conseguem descobrir-se quase todos os grandes nomes do mundo das passerelles. «Fiz estas imagens entre 2000 e 2008. Sempre que alguém vinha ao estúdio para ser fotografado, a sessão terminava ali, era a derradeira imagem», explica o veterano. Com os anos, a divisão tornar-se-ia mito – mesmo que nunca ali tivessem estado, todos sabiam da sua existência. Passados uns meses, já não precisava de pedir a foto, eram os modelos que queriam fazer parte do papel de parede.

É precisamente nessa assoalhada que Miguel Ângelo decide hoje fotografar Carlos Ramos. A proposta partiu da Notícias Magazine: resgatar os fotógrafos à invisibilidade para que se retratem uns aos outros, com todas as honras de figuras do topo do mundo da moda. E aconteceu no inevitável estúdio do Largo do Carmo. Carlos Ramos fotografou Miguel Ângelo junto a uma grande tela e este retorquiu com um retrato na casa de banho. Mário Príncipe fez dupla com Pedro Ferreira. Usaram luzes e pediram poses, todos sabem dar direções a um modelo. Mas verem-se do outro lado da barricada já carregava outro nervosismo, normalmente resolvido em gargalhadas.

Pedro Ferreira tem 50 anos e anda nestas andanças desde 2001. Como todos, a sua primeira praia foi a publicidade, onde se trabalha minuciosamente as técnicas e a luz. «No final dos anos noventa apareceram uma série de revistas de moda em Portugal e eu comecei a fazer alguns retratos para estas.» Máxima, Vogue, Marie Claire, Elle, Cosmopolitan, GQ, Men’s Health. Publicações com uma exigência nova, imagens perfeitas numa impressão cuidada, tanto em entrevistas como nas produções que revelam tendências.

 

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Pedro Ferreira fotografado por Mário Príncipe

Ao contrário do que seria de esperar, não são os fotógrafos de moda que nos trazem os desfiles das semanas de moda e dos fashion shows. «Esses são fotojornalistas, normalmente da área do social», explica Carlos Ramos. Então o que fazem eles? Produções, sobretudo. «O produtor de moda de uma revista contacta-nos porque quer fazer várias páginas que espelhem uma tendência. As fotografias têm de obedecer a uma narrativa, contar uma história», explica Mário Príncipe, 41 anos. O produtor e o fotógrafo decidem o local, a abordagem, todos os materiais necessários para contar a história. Depois acertam com maquilhadores e cabeleireiros o estilo certo e, parte essencial do processo, fazem o casting dos manequins. «Mais importante do que a beleza é a experiência. Há pessoas que podem ter jeito para fazer pose mas não para encarnar uma personagem», segue Mário. Ele não gosta de dar demasiadas instruções, prefere contar o conceito e deixar o manequim expressar-se. Ser fotógrafo de moda também é, em grande medida, fazer direção de atores.

 

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Mário Príncipe fotografado por Pedro Ferreira

As imagens de campanha são outra das áreas de trabalho. «Mas enquanto assistimos a uma ascensão dos criadores nos últimos anos, temos um problema», vaticina Mário Príncipe. «O país produz têxteis e calçado, mas ainda não criou marcas fortes, uma identidade que precise de uma imagem.» É conversa repetida muitas vezes, a dos produtos portugueses que emigram para outros países, recebem uma etiqueta de outra marca e voltam a casa para ser vendidos a preços mais altos. «No fundo, acabamos por ficar circunscritos a um mercado pequeno e com medo de crescer.»

Todos estes fotógrafos têm portfólios internacionais, trabalhos que foram editados lá fora. «O que nos falta, e nesse aspeto somos quase caso único na Europa, é uma agência que nos gerencie», diz Miguel Ângelo, 40 anos. A partir do momento em que o mais novo do grupo passou a ser agenciado em Barcelona e na Índia, os trabalhos começaram a aparecer. «Estive na Índia quatro meses e fiz uma produção para a Harper’s Bazaar, que é uma das principais revistas de moda do mundo.» Deram-lhe quatro dias para uma sessão no Sul do país, algo inimaginável em Portugal. «Quando chegámos, o meu assistente apanhou salmonelas com os ovos que comeu, fiquei sem assistente. Nos dois dias seguintes choveu a cântaros, o que me permitiu fazer um número limitado de imagens. Depois, na manhã do último dia, lá consegui fazer tudo.» Pode parecer piada, mas mostra bem as diferenças. «Aqui tendemos a fazer as coisas em cima do joelho, muitas vezes é o fotógrafo que faz a pré-produção e a pós-produção, porque os recursos não dão para mais. Assim será difícil conseguir um nome de grande alcance entre os fotógrafos nacionais.»

 

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Miguel Ângelo fotografado por Carlos Ramos

Isso e o facto de, apesar de alguns sinais animadores, o mercado ser ainda bastante limitado em Portugal. Mario Testino, um dos maiores nomes da fotografia de moda da atualidade, é peruano, mas tem base em Londres. Steven Meisel, que é americano, mudou-se para Itália e revolucionou a Vogue local, tornando- a a referência para todas as outras revistas do mundo. Mario Sorrenti fez o percurso oposto, de Itália para Nova Iorque. A dupla que mais entusiasmo tem provocado nas revistas da especialidade é Mert and Marcus, respetivamente um turco e um galês que se instalaram em Paris. «Em Portugal há qualidade, mas precisaríamos de passar muitos meses num dos grandes centros de ação da moda para um de nós se conseguir impor internacionalmente», explica Miguel Ângelo. «Infelizmente, Lisboa e Porto não são estão na mesma liga, ainda que os designers portugueses tenham progredido muito nos últimos anos. Só que o resto da Europa corre de Porsche e nós de Opel Corsa.»

Se a moda segue tendências, a fotografia de moda também o faz. Pedro Ferreira fala do fim dos anos perfeitos, em que a procura agora é pela normalidade. «É como se a imagem de moda estivesse a fazer um upgrade muito organizado da foto de telemóvel», e explica que essa é uma técnica muito difícil, a de tentar criar cenários produzidos como se não fossem produzidos. O tempo do cenário imaculado acabou, nisso todos parecem concordar. Miguel Ângelo acredita que isso se deve a um cansaço do Photoshop, das técnicas de retoque que permitem transformar uma má foto numa imagem sem erros. «Sou um purista, ainda acredito que no estúdio, ou no cenário da produção, deves ter a luz certa, o cabelo e a maquilhagem afinados, tudo como tem de estar.»

A democratização do acesso à fotografia veio simplificar a vida aos fotógrafos de moda, mas também complicá-la. «Há muita coisa que podes resolver na pós-produção, depois de o trabalho estar feito», diz Carlos Ramos. «Mas também há muita gente que passou a trabalhar à borla para as revistas, desvirtuando o mercado porque tem uma máquina e consegue fazer uns bons retratos.» A imprensa estabelecida, de melhor qualidade, não abdica, claro está, dos profissionais. Mas reduziu os preços, piorou a qualidade do papel e da impressão, tenta fazer uma produção em metade do tempo e com metade do dinheiro. «O pior é que deixou de se arriscar. Tivemos experiências na imprensa fantásticas, como a revista Kapa, que era capaz de rasgar com tudo e ser realmente inovadora», diz o decano dos fotógrafos de moda portugueses. «Agora está tudo muito estabelecido, muito igual, sem génio.»

Pedro Ferreira aborda a mesma questão, mas do lado dos manequins. «Às vezes tenho a sensação de estar sempre a fotografar as mesmas modelos. E, ao contrário do que se possa pensar, em oitenta por cento dos casos elas não são portuguesas.» A explicação é mais simples do que parece. Se há área onde a moda nacional tem triunfado é nos modelos, eles e elas. Portugal tem vários nomes de topo, que são agenciados nos grandes mercados, e cuja base de trabalho é inevitavelmente Paris, Nova Iorque ou Milão. «Então as agências fazem os seus manequins rodar e muitos estrangeiros, sobretudo mulheres, estabelecem-se em Portugal.» Também há um crescimento de nomes africanos, explica, sobretudo pela quantidade de revistas que aparecem nesses mercados e fazem as suas produções em Portugal.

O país é uma das mecas europeias para as grandes produções de moda. Duzentos dias anuais de sol garantem que grandes nomes da fotografia de moda venham até cá para produzir artigos e campanhas. «A diferença é que agora tu consegues ter acesso ao que o resto do mundo está a fazer, podes inspirar-te e reinventar-te constantemente», diz Carlos Ramos. Como o mercado não lhes garante sempre o espaço de que precisam para exercer o génio, vão criando projetos próprios que depois se convertem em livros ou exposições. Longe vão os tempos em que o fotógrafo veterano comprava uma revista de moda por dia numa tabacaria do Rossio. «Às tantas tinha mais de uma tonelada de papel em casa, o que não devia fazer muito bem às fundações do edifício.»

Nas fotografias que tiraram uns aos outros, os fotógrafos não quiseram usar adereços de maior, o trabalho foi sobretudo de luz. Miguel Ângelo e Pedro Ferreira usaram luz contínua, Mário Príncipe e Carlos Ramos preferiram usar o estúdio, e por isso dispararam flashes. «Uma boa parte do trabalho do fotógrafo de moda é apanhar uma atitude, um modo de estar da pessoa», dizia Pedro. Então é isso que temos aqui.