A democratização da decência

Notícias Magazine

E se de repente vídeos com cenas de que não nos orgulhamos começassem a aparecer por aí… isso seria… sim, isso mesmo, a internet. Uau. Pessoas do meu país, apresento-vos: a internet. Net, sabem, claro, quer dizer rede, em inglês. Inter, numa tradução muito liberal, quer dizer entre todos nós. A rede a que todos temos acesso, para explicar melhor. Querem saber como funciona? Imaginem um café gigante em que nos juntamos todos, ao fim de tarde, calor manso e conversamos, rimo-nos, zangamo-nos, coscuvilhamos. Tudo o que acontece à volta de uns tremoços e uma imperial/fino, tudo isso pode acontecer na internet.

Só com uma diferença. No café nós temos acesso à conversa que decorre ao pé da nossa orelha – o máximo que conseguiremos em relação à conversa do vizinho do lado é ir espreitando, tentando escutar clandestinamente o que não pode ser escutado de forma aberta. Na internet não é assim. Está tudo ali, escancarado para quem quiser ouvir, ler, ver. Como se cada lapela tivesse um microfone.

Ora perguntemo-nos: quantas das nossas conversas de café, mexericos de corredor de escritório, telefonemas íntimos ou até, quiçá, pensamentos mais secretos aguentariam a divulgação pública? Ou antes, quanto é que nós aguentaríamos dessa divulgação? No outro dia, a série americana The Good Wife mostrou um escritório de advogados em que os mails tinham sido pirateados e as conversas entre os seus sócios foram divulgadas… Pois… Isso mesmo: não ficou pedra sobre pedra naquela empresa. E ninguém continuou a olhar para ninguém com os mesmos olhos.

A internet, esse enorme – gigantesco, mesmo – café onde nos encontramos todos mudou as nossas vidas. E tornou público o que dantes era apenas privado. O que era exceção passou a ser a regra. Se vamos de férias com um amigo temos de pedir-lhe que não publique fotos nossas no Facebook. Porque, se não o fizermos, a reação muito natural dele pode ser colocar-nos no seu mural e ainda por cima identificar-nos. E porque é que havemos de querer que toda a gente conheça a praia, o hotel ou a cidade onde passamos férias? Porque esse é o standard a que o Facebook nos habituou. Vais de férias, «postas». Comes um prato especial, «postas». Vês um por do sol lindo, «postas». E já nem é por causa daquilo que queres que se pense de ti. Nem pela imagem que pretendes transmitir. É porque sim.

Este é, porém, um tema com dois gumes. Por um lado, pode incluir-se numa certa decadência de valores como a decência e o decoro. Mas, por outro lado, e porque não ver as coisas de um ponto de vista positivo, o escancarar de tudo o que fazemos pode acabar por dar mais responsabilidade a cada gesto que temos. Quantos dos males da humanidade não seriam mitigados se se anulasse aquele ditado pernicioso dos hábitos privados, públicas virtudes? Essa é, no fundo, a raiz de tantos comportamentos desviantes, ou seja, que fazem mal ao próximo, e ao bem comum, da traição à corrupção.

Muito provavelmente, o próximo grupo de miúdas parvas que decidir atacar um rapaz indefeso, ofendendo-o e dando-lhe estaladas – há lá forma mais humilhante de bater em alguém do que dar-lhe uma chapada na cara –, pensará duas vezes antes de o fazer, se souber que esse ato pode vir a ser divulgado na internet. Assim como fará o mesmo o próximo polícia a quem ocorrer bater num cidadão indefeso, por mais ofensas que este lhe tenha feito. Sem conversas sobre raças, cor de pele ou origem geográfica. Veem? Já ganhámos qualquer coisa com tudo isto. A democratização da decência.

[Publicado originalmente na edição de 24 de maio de 2015]