A culpa é do salmão

Junta-se um escritor, um chef e um peixe, envolve-se tudo em várias viagens e obtém-se uma experiência inédita, que dá em livro. A propósito do lançamento de A Viagem do Salmão, José Luís e Henrique recordam, em discurso direto, as aventuras que viveram entre a Noruega e o Japão. Dos mercados de rua às melhores mesas, conhecer o mundo através do palato.

Lisboa é uma cidade onde as pessoas se cruzam com facilidade, se por acaso têm estilos próximos e se inclinam a refletir sobre eles, como é o caso de José Luís Peixoto e Henrique Sá Pessoa. O escritor é convidado amiúde para uma série de eventos. O chef não lhe fica atrás e juntos chegaram, inclusive, a participar no concurso de televisão O Elo Mais Fraco (a 7 de fevereiro de 2012), em que Henrique foi o primeiro a sair e Zé Luís perdeu no final para a blogger A Pipoca Mais Doce.

«Existe descontração entre nós, o aspeto geracional, temos amigos comuns. Quando a Norge – Conselho Norueguês das Pescas me lançou o desafio de A Viagem do Salmão, dizendo achar interessante que fosse mais do que um livro de cozinha, sugeri logo incluir alguém que escrevesse bem e que naturalmente não seria eu», conta o chef. Aí entrou o nome de Peixoto, tão cheio de histórias, e o de Nicolas Lemmonier, fotógrafo de alimentação e lifestyle que já colaborava com a Norge, além de fotografar comida para revistas de culinária, catálogos, rótulos e livros como este.

«A história da alimentação tem evoluído em direta proporção à história da cultura, a sofisticação de uma é exatamente paralela à sofisticação da outra», diz o escritor. Do princípio ao fim, A Viagem do Salmão levou quase dois anos a ficar pronto, com cerca de um mês em viagens pela Noruega e o Japão e muito trabalho de fundo feito em Portugal. «O nosso exemplo, ponto de partida e de chegada, era esse animal nobre, que hoje mesmo está no menu de milhares de restaurantes em todo o mundo, em milhões de pratos.» O salmão.

José Luís Peixoto (JLP): O que é que este livro devia ser para ti, ainda em Lisboa, e no que é que se tornou realmente, depois de tudo o que estava à nossa espera?
Henrique Sá Pessoa (HSP): Acho que foi sendo construído, não sentes isso? Na altura ainda não sabia que receitas faria e tu não sabias que pessoas íamos conhecer. Eu já tinha ido à Noruega e muita experiência de andar em mercados e cozinhas, tu não… mas por outro lado tens muito mais viagens em cima e tanto a Noruega como o Japão são mundos fora do meu contexto gastronómico. Claro que isso foi desafiante para ambos e teve impacto no resultado final.

JLP: Além do encontro com as pessoas e os espaços, havia esse encontro com o próprio país…
HSP: Especialmente no Japão.

JLP: Sim, o Japão foi bastante intenso. Tinha uma imagem nítida na minha cabeça, julgava eu. Mas estar lá e termos que resolver as situações que iam surgindo foi, por vezes, mais difícil do que esperava.
HSP: Se pensares bem, aconteceu tudo muito assim na base do improviso. Em Tóquio chegámos a ir almoçar a casa do embaixador, que soube que estávamos lá e nos convidou.

JLP: E nem tiveste tu que cozinhar nesse dia…
HSP: Pois não. Deram-me folga.

JLP: Também houve coisas que nos correram francamente bem, não foi? O tipo de pessoas que encontrámos, que muitas vezes se desdobraram para ajudar-te com ingredientes especiais…
HSP: Para fazer um prato é quase preciso montar uma cozinha, que queres? E fomos uns sortudos por visitarmos o maior mercado de peixe do mundo em Tóquio, atualmente fechado aos turistas. Senti-me privilegiado não só por termos assistido ao leilão do atum, que é o peixe mais tradicional e emblemático do Japão, como por o dono ter feito questão de nos conhecer, de chinelos e sem meias, vindo diretamente do trabalho. Oportunidades dessas não acontecem todos os dias.

JLP: Por todo o lado se diz que um pequeno-almoço de sushi naquele Mercado de Tsukiji é imperdível. Nós perdemo-lo, mas pelo menos deu para ver que ali o atum e o salmão são os dois peixes mais populares. Cerca de 500 mil toneladas de salmão são consumidas no país por ano…
HSP: Antes, o peixe mais procurado era o atum, embora hoje em dia o salmão tenha alcançado as mesmas quantidades. Foi introduzido até mais para cativar o consumo de sushi nos jovens, por ser um peixe sem espinhas, com gordura, uma cor apelativa e fácil de comer.

JLP: O salmão chegou ao sushi em meados dos anos 80 e é curioso porque nós, no Ocidente e nomeadamente em Portugal, associamos tanto uma coisa à outra. E no entanto o salmão só tem esta história e esta presença recentes no sushi. Aliás, ainda hoje, no Japão, alguns mestres de sushi mais tradicionais recusam o salmão.
HSP: Quanto mais alto o nível do restaurante, menos entra o salmão. Não tem a ver com a qualidade do peixe, nem nada. Eles são é muito obcecados com a zona aonde vão buscar os produtos. Tem que ser tudo muito próximo do restaurante, por uma questão de respeito pelas tradições e os cerimoniais.

JLP: A mim impressionou-me muito imaginar, quando fui a uma fábrica em Narita, no Japão, que o peixe ali preparado tinha estado poucos dias antes no mar que eu tinha visto em Stavanger, na Noruega. É uma ligação direta e tanto! O salmão chega fresco ao aeroporto e então tiram-lhe a pele, as espinhas e a carne, cada trabalhador na sua área de especialidade. Isso é muito interessante e uma história do nosso tempo. Acontece com o salmão, nesta viagem feita entre a Noruega e o Japão, mas também com muitos outros produtos que consumimos diariamente e atravessam o mundo para chegarem às nossas mesas. Faz parte da globalização.
HSP: Embora a experiência do peixe seja muito mais intensa no Japão do que nos restaurantes de sushi ocidentais.

JLP: Foi a primeira vez que estivemos no Japão, a primeira vez que consumimos sushi num restaurante de sushi genuinamente japonês, e notámos diferenças grandes entre o que nos era oferecido ali e fora do Japão, apesar de esses outros lugares também serem de qualidade e apresentados como bastante genuínos.
HSP: O nosso sushi é ocidentalizado, foi isso que sentimos. Tem a ver com a grossura a que o peixe é cortado, com a falta de ingredientes que cá disfarçam muito o sabor – lá nunca iremos ver um queijo Philadelphia ou um sushi de fusão, é impensável. Para os japoneses é peixe cortado bastante grosso, arroz, wasabi e molho de soja – que não vai para a mesa, é servido na quantidade certa quando eles entendem que a peça deve ser comida com molho. Há todo um preceito que nós não temos, não concordas?

JLP: Mas isso tem a ver, mais uma vez, com o facto de a comida ser uma forma de comunicação. Naquele caso em particular, temos ali o mestre de sushi a preparar as peças para nós. Tu, quando estás a cozinhar, também tens em consideração as pessoas para quem estás a fazê-lo, como um ritual. Por outro lado, essa fusão acontece noutros aspetos da culinária japonesa. Tive oportunidade de ver isso em coisas como o caril, por exemplo, que no Japão não tem qualquer ligação com o caril da Índia. Ou seja, quando importam alguma culinária de outros lugares, eles também fazem essa adaptação. Acontece o mesmo com os restaurantes que confecionam comida portuguesa, a que eu fui e tu não. Para nós, que conhecemos tão bem os pratos, comer aquele bacalhau à Brás é completamente diferente.
HSP: O mesmo com o pão-de-ló deles, a que chamam castella ou kasutera, uma especialidade tradicional de Nagasaki. Seja como for, esse preceito tem ainda a ver com um respeito pelos produtos e pela natureza que nós não temos, pelo menos não da mesma forma. Tem a ver com a cultura deles. Fomos ao mercado às cinco e meia da manhã e nunca na minha vida – e olha que eu já estive em muitos mercados de peixe pelo mundo fora – tinha visto um como aquele, sem escamas no chão, os peixeiros todos limpos, as caixas com peixes simetricamente guardados em gelo. Existe uma obsessão pela perfeição incrível, quando cá é perfeitamente normal haver peixes a rebolar no chão e gente a empurrá-los ao pontapé. O peixe é fresco na mesma, atenção! Só difere o trato. Mas é um tipo de rigor que faz diferença, não só no resultado final como na própria perceção que mostras sobre o respeito que tens pelos produtos. E por tudo na vida, de resto. Como é aquela palavra de agradecimento?

JLP: Itadakimasu. À mesa, antes de comer, é habitual dizer-se uma prece pelas vidas que se perderam para dar continuidade à nossa através daquela refeição. É outro hábito muito japonês. Mesmo noutros países da Ásia não existe esse tipo de etiqueta tão rigorosa…
HSP: Estivemos nas caves dos armazéns comerciais de Tóquio, uma espécie de El Corte Inglés, e vimos uma meloa embalada numa caixa que mais parecia um iPhone. Ou caixas com seis morangos perfeitamente polidos, como se fossem diamantes. Tudo o que a natureza lhes dá eles valorizam, pagam e são obcecados por isso. O próprio culto do comer cru também exige esse rigor: com a quantidade de comida crua que ingerem, se não tivessem cuidados especiais estavam constantemente contaminados. É diferente comprar um peixe que andou a rolar pelo chão, mas a seguir vai para a grelha e é cozinhado durante 25 ou 30 minutos, de comer um polvo ou uma lula crus, ainda a mexer como eles muitas vezes os servem. Ao fim do terceiro dia tive dificuldade em comer algumas coisas, tu não?

JLP: Confesso que não tenho muita dificuldade em comer nada, mas é verdade que o sushi, em certos momentos, já ultrapassava ali aquela fronteira da quantidade de peixe que conseguimos comer. Também porque o tempo que este livro demorou a ser feito foi um período em que comemos bastante mais peixe do que é habitual, e peixes a que não estamos acostumados.
HSP: Nós valorizamos o sabor pela intensidade, pelo calor, o picante, o salgado; eles valorizam pela textura. E enquanto as gelatinosas e rijas são sinónimo de um prato com muito requinte, para nós é quase ao contrário: rejeitamos texturas demasiado esponjosas ou borrachosas. A mim, comer polvo cru sobre um bocadinho de arroz custa-me, e no entanto adoro polvo e a cozinha japonesa. A própria sardinha deles, em alguns momentos, me enjoa. Mas acho que teve muito a ver com o ritmo a que fizemos as coisas: quando almoças e jantas sushi num dia, e no dia a seguir almoças e jantas sushi, ao fim do terceiro ia sempre às casas de ramen, que já é algo que sou capaz de comer sempre. É sopa, quente, massa, nutritivo, saboroso… Enfiei-me em casas de ramen quase todos os dias.

JLP: Uma descoberta curiosa para mim, uma vez que não tinha contactos prévios com este mundo da gastronomia, foi a de provar as comidas das receitas. Tu cozinhavas, o Nicolas fotografava e depois comíamos. Normalmente há a ideia de que essas receitas são feitas para a fotografia, mas eu constatei que não. São ótimas para comer. [risos]
HSP: Para mim foi conhecermos figuras fabulosas, no Japão até menos do que na Noruega. Lá estivemos com um senhor, Frode, fornecedor de algas e ervas aromáticas, que nos convidou a visitarmos a quinta dele numa ilha completamente paradisíaca, Brimse, num domingo, com um sol brutal. E então fizemos um barbecue em casa dele: levámos um salmão, fomos colher legumes diretamente da horta e foi assim uma refeição completamente improvisada e espetacular…

JLP: Pois foi. Lembras-te das crianças loiras a assarem marshmallows?
HSP: O Frode é um indivíduo muito interessante, enorme especialista em ervas que numa fase inicial chegou a fornecer o Noma [em Copenhaga, considerado o maior restaurante do mundo]. Também montou uma cave em casa com vinhos portugueses. Não é deste mundo, ele.

JLP: Enquanto andámos por lá tínhamos que ter cuidado, não podíamos provar tudo porque havia lugares onde tinha as suas experiências, algumas venenosas. Mas era muito impressionante ele arrancar uma folhinha de alguma coisa, dá-la a provar e saber a cebola, limão ou pepino.
HSP: E tudo em sítios lindos, do género de irmos num barco, ele parar a meio do lago, entrar na água e sair com uma braçada de três quilos de algas verdes, de sabor superintenso. Na Noruega também existe aquele cuidado com a natureza, o respeito pelo produto. É das semelhanças mais fortes com o Japão, além de serem ambos países hiperdesenvolvidos. Mas enquanto Tóquio impressiona pela densidade populacional de 13 500 pessoas por quilómetro quadrado, o dobro de São Paulo, Stavanger, na Noruega, é como uma pequena aldeia. Não se passa grande coisa, havia alturas em que quase nem víamos gente na rua. E essa simplicidade nórdica inspirou-me a fazer pratos que fossem ao encontro da sazonalidade e do que encontrei localmente, como tártaro de salmão e vieira com maçã e ovas de truta, ou gaspacho de ruibarbo e morango com salmão marinado. Mais tarde, nas receitas que fiz em Lisboa, tentei adaptá-lo um bocadinho ao nosso receituário, incluindo um salmão à Brás e uns pastéis de salmão. Não sei se tens noção, mas já é o peixe mais consumido em Portugal.

JLP: Eu sei, e até sei que a grande expansão mundial do consumo de salmão se deveu ao desenvolvimento da sua produção na aquacultura. Mas recordo-me bem de em miúdo ser um peixe muito caro, quase inacessível no país. Hoje é raro faltar salmão fumado no meu frigorífico…
HSP: Isso é porque tem pouca espinha, é muito recomendado em termos nutricionais e houve um crescimento técnico na forma de produzir salmão, precisamente para dar resposta às exigências do mercado mundial. Os dois viveiros que visitámos na Noruega mostram que eles são muito japoneses nesse aspeto da produção, muito rigorosos, e isso nota-se no peixe: posso dizer que numa prova cega com chefs de cozinha, 80 por cento falharam a detetar a diferença entre um peixe de viveiro e um peixe selvagem. Aquele salmão é o mais fit e saudável possível, em parte por não ser alimentado com farinhas, em parte porque os noruegueses conseguem ter viveiros em alto-mar, com profundidades até 150 metros e fiordes a protegerem-nos das tempestades. O peixe está sempre em movimento, como se passasse o dia no ginásio, além de as águas geladas enrijarem a carne – o nosso peixe também tem a qualidade que tem por as nossas águas serem frias comparadas com as do Mediterrâneo. O Chile era outro grande produtor, mas teve um problema com contaminações há uns anos que lhe retirou muita reputação.

JLP: No caso do Japão, consome cerca de 500 mil toneladas de salmão por ano – 30 por cento de toda a produção de salmão da Noruega. São eles o seu maior cliente, o que diz muito da qualidade do peixe na medida em que os japoneses são uns consumidores muito criteriosos.
HSP: Curiosamente, Portugal consome mais peixe que o Japão per capita, só que a nossa distribuição do consumo vai desde o enlatado ao fresco e congelado. Em termos de peixe fresco, o Japão é imbatível. Deu-me um termo comparativo que não tinha antes. Hoje em dia posso ir a um restaurante de sushi muito bom em Portugal e sentir as diferenças: tens, por exemplo, o SushiCafé ou o Suchic, que são da moda e onde não podes dizer que o sushi não é bom, mas se um japonês entra ali manda-se ao ar, a abordagem é completamente diferente. O Bonsai era o mais tradicionalista (entretanto encerrou) porque a mulher do sushiman Ricardo Komori é japonesa, ele próprio esteve no Japão imensas vezes e notava-se um cuidado em manter essas regras de não ter sushi de fusão. Já eu entrei ali num devaneio criativo sabendo que estava fora da minha zona de conforto… Parecias tu com o sumo

JLP: Chegámos ao Japão num dia à noite e no dia seguinte, à tarde, já estávamos no sumo. Tratei de tudo pela internet cá em Portugal: quando me apercebi de que íamos lá estar naquele período, fui pesquisar e havia a oportunidade de assistirmos. Em Tóquio, só há combates de sumo em seis ocasiões. Revelou-se muito útil ter tratado dos bilhetes com tanta antecedência, aquilo é a loucura! Os lutadores são enormes e compactos, autênticas montanhas. A vivência indescritível e uma das imagens mais tradicionais do Japão, com 1500 anos de história. A lenda atribui a este desporto a origem do próprio país: parece que a supremacia das suas gentes se estabeleceu quando o deus Takemikazuchi venceu o líder de uma tribo rival num combate de sumo.
HSP: São Cristianos Ronaldos do Japão. Entre as oito da manhã e as seis da tarde há combates consecutivos, que duram três segundos e são logo substituídos por outros. Só mesmo no final lutam os pesos-pesados, literalmente. Dois brutamontes a empurrarem-se um ao outro.

JLP: Mas é tão forte o que está a acontecer no centro do palco como à volta: gente a comer, a torcer pelos seus combatentes preferidos, a vender bolachas com as caras deles. Raparigas entusiasmadas a tirarem fotos e todos aqueles rituais de gritar pelos nomes, varrer o ringue e lançar mãos-cheias de sal grosso antes de lutarem. Quando eles saem e se movimentam, passam ali mesmo ao pé de nós e as pessoas conhecem os lutadores, ficam muito impressionadas. Nós não sabemos quem é o mais cotado nem fazemos ideia da parte técnica, mas é muito interessante assistir a isto de um ponto de vista externo. Fazia todo o sentido estar no livro porque a cozinha é um veículo de cultura. Transporta uma série de conceitos que fazem parte dos valores de uma comunidade e daquilo em que essa comunidade acredita e lhe é mais profundo, daí este contexto ser tão importante.
HSP: E também havia comida no sumo, à venda nos corredores do recinto: bento, uma espécie de marmita com arroz, legumes e carne ou peixe, e oden, um prato de inverno com legumes, tofu e ovo cozido imersos num caldo feito à base de molho de soja e peixe. O Japão vive muito destes contrastes: por um lado, o milenar, a cultura transmitida desde há séculos; por outro uma faceta tão contemporânea que já parece do futuro. As ruas de Shibuya são assim: multidões e multidões a passar, arranha-céus cobertos de ecrãs a transmitirem todo o tipo de informação, adolescentes vestidos de personagens de banda-desenhada e desenhos manga e anime. É estranho conciliar essa imagem tão à frente com o facto de a cozinha japonesa ser das que mais influenciam o mundo, incluindo a nórdica.

JLP: Mas lá está, não deixa de ter a ver com o tal amor que eles sentem pela perfeição. Quando um jovem decide encarnar uma personagem, fá-lo ao detalhe, nada é ao acaso na indumentária. O mesmo com aquela faca que compraste no mercado… Confesso que aí pensei que querias trazer tudo.
HSP: E queria, aquilo era o paraíso. Tens uma faca que custa 300 euros, ao lado tens uma que custa 7 mil euros e não consegues perceber a diferença. Este é um campeonato que não conhecemos, cá não existe. Não é só a questão de a faca durar toda a vida: é o ter sido feita por um sushiman muito respeitado na comunidade, é a finalização da lâmina, o ritual de a afiarem e colocarem num estojo de madeira. A minha custou 200 e poucos euros e era das mais baratinhas.

JLP: Pois eu não trouxe uma faca, mas a viagem mexeu muito com a visão que tinha do mundo. Não foi apenas a experiência de conhecer países onde nunca tinha estado, o que por si só já é bastante, mas também esta perspetiva das cozinhas que me era completamente alheia. Confirmei uma coisa de que já suspeitava: apesar de os trabalhos serem diferentes, de os elementos concretos serem diferentes, partilham muito em termos do que é preciso fazer e das soluções que é preciso encontrar. Porque a escrita também dispõe de ingredientes, também tem que gerir esses ingredientes, harmonizá-los, dar mais destaque a algum dos sabores ou aromas. As estruturas do raciocínio assemelham-se.
HSP: Aliás, é para repetir. Saímos de casa, fomos à Noruega, fomos ao Japão, regressámos a casa. Descobrimos que temos uma química muito natural e isto resulta.