A ceia do eunuco

Castram-se os galos em março, alimentam-se a grão e couves para dezembro. Nas mesas de Natal do Vale do Sousa, as famílias sentam-se em volta do capão. Foi o manjar dos reis e é uma iguaria rara, protegida por produtores e cozinheiros e, agora, também por certificação europeia. O passado tornou uma ave eunuca o orgulho de Freamunde. O futuro pode torná-la a salvação da terra.

Os animais estão prontos, nesta semana vão a feira. No próximo domingo, dia 13, o povo acorre a Freamunde, freguesia de Paços de Ferreira. Alguns para participar na romaria de Santa Luzia, a maioria para comprar um capão para o Natal. Ave gorda, seis a sete quilos, uma iguaria nortenha. Custam uns 50 euros, quando não 60, e seguem vivos para as cozinhas – se vão a mesa na consoada, são degolados a 22 de dezembro. A multidão de interessados tem crescido, neste ano a associação de criadores local espera vender 2500 animais. Isso mais a semana gastronómica que começou no início do mês, em que os principais restaurantes do concelho servem o bicho por encomenda. É um recorde. Há cada vez mais gente a querer comer a iguaria e há cada vez mais gente a criá-la nos galinheiros. A galinha dos ovos de ouro, afinal, não é galinha nem dá ovos.

A Comissão Europeia certificou neste ano o Capão de Freamunde. Agora é produto com identificação geográfica protegida e regras de criação apertadas. «Já começámos a dar formação aos produtores», diz Ricardo Graça, presidente da Associação de Criadores de Capão. «O animal e castrado aos 3 meses, normalmente no início da primavera. E não pode comer hormonas. E alimentado 70 por cento a grão e 30 a couve. E tem de andar ao ar livre. Se não forem cumpridas as regras, não é capão.» Em dezembro, está pronto para o abate.

Quem ensina os novos produtores a castrar os frangos e Guidinha Mota, que tem 85 anos e mais de um milhar de galos capados. «Foi a minha mãe que me ensinou e eu ensinei a minha filha», diz, diante da capoeira onde ela e a filha, Alvina, estão a criar 19 bichos. «Isto é trabalho de mulheres, que aos homens mete pena tirar os testículos ao galo», sentencia. O genro empoleirado num escadote, a podar as videiras, ri-se. E depois a mulher descreve o processo, metade relato, metade provocação: «Quando o pinto faz 3 meses, faz-se a operação. Tem de ser duas pessoas. Uma segura-o pelas asas, para ele não fugir. Às vezes leva umas bicadas valentes.»A outra corta-lhe a pele junto à tripa com uma tesoura a sangue-frio. Os genitais, que se encontram no dorso, vão sendo empurrados a dedo, um depois do outro. «Às vezes fica um bocadinho lá dentro e, se não se tira tudo, a carne já não vai ser tão boa. Em vez de capão temos rinchão», diz Alvina. «Para mim, esses que vendem galos por capões deviam ser todos presos. É um crime.»

No final é preciso cozer a tripa ao bicho, de preferência com linha branca. «Corta-se-lhe a crista e as barbas, que é para o bicho perder vaidade e não se fazer às galinhas.» A partir daí, o animal torna-se passivo, vive para comer e dormir. Corre pouco e tem de ser separado dos outros galináceos, que atacam os eunucos sem piedade. Alvina vai buscar um animal à capoeira, põe-o ao colo, vai-lhe desfiando festas. Lamenta-lhe a sorte, mas diz que são as leis da vida. «Os capões são sujeitos a uma cirurgia a sangue-frio e um terço da produção acaba por morrer, fruto das infeções que contraem», explica Ricardo Graça. «É também por isso que é tão caro.» Durante nove meses, e engordado a milho e couve, nenhum medicamento. A carne fica gorda e suculenta, mais tenra do que um frango. O melhor exemplar vai a concurso na feira – Guidinha e Alvina já ganharam o troféu meia dúzia de vezes. São 125 euros na carteira e orgulho para o ano inteiro.

Na verdade, há duas competições na feira de Santa Luzia, uma para os capões vivos e outra para os cozinhados. E, em dez edições do concurso culinário, sete foram ganhas pelo restaurante Aide, de Paços de Ferreira. Numa cozinha moderna, o chef Joaquim Gomes segue a receita tradicional. «Estou cá há três anos e ganhei dois troféus. Os cinco anteriores foram ganhos pela minha sogra, dona do restaurante e do hotel ao lado.» Aqui vêm parar sobretudo homens de negócios, empresários do mobiliário e do têxtil que vêm fazer encomendas a capital do móvel. «Mas em dezembro as pessoas vêm sobretudo para comer capão.» Ninguém o tem já preparado, é preciso fazer encomenda com dois dias de antecedência. Serve seis a sete bocas e custa 120 euros. Mas não há ninguém no vale do Sousa que não afiance a qualidade do capão do Aide.

Joaquim Gomes trabalhou 15 anos em boas cozinhas do Douro, primeiro na Pousada Solar da Rede, na Régua, depois no Vintage House Hotel, no Pinhão. Quando a mulher, Teresa Pinto, lhe propôs que tomassem conta do restaurante familiar, ele Mudou-se para Paços de Ferreira. «Venho de uma escola de cozinha de autor e tenho tentado introduzir alguns elementos desses no menu, sobretudo nas entradas e nas sobremesas.» Mas a casa tem tradições firmadas e uma clientela que não abdica dos pratos de sempre. «Quando se tem um produto desta qualidade, não há muito a inventar. Sirvo o capão como ele é feito aqui há cinquenta anos.» Pele estaladiça, a carne tenra e húmida, mais um recheio que lhe dá um pontapé salgado. A acompanhar, batatas assadas e grelos salteados.

O interesse gastronómico na ave tem despertado a curiosidade de muitos chefs e, agora, o município quer internacionalizar a iguaria. «Ao certificarmos o capão podemos embalá-lo a vácuo e distribui-lo pelo país e pelo estrangeiro. Não o queremos nos hipermercados, mas sim nas melhores cozinhas», diz Humberto Brito, presidente da Câmara Municipal de Paços de Ferreira. «Alguns dos grandes nomes da gastronomia do pais têm demonstrado interesse em levar o produto para os seus restaurantes, e até aqui era difícil fazê-lo. Mas as possibilidades, a partir de agora, ficam abertas. Paços de Ferreira já tem dois setores económicos emblemáticos, o mobiliário e o têxtil. Agora pode muito bem ter um terceiro» O município tem um baixo nível de desemprego, em redor dos seis por cento. Mas há uma grande disparidade salarial. «Para as famílias que ainda vivem da agricultura, e para as que auferem de baixos rendimentos, a produção de aves pode ser o complemento que fazia falta.»

O capão à Freamunde é tradição tão enraizada que, em 2001, Raimundo Durão decidiu criar-lhe uma confraria. São 24 confrades, empenhados em preservar a tradição. Nem todos são de Freamunde. Raimundo, por exemplo, adotou a terra por via da mulher, mas enamorou-se do requinte do prato. «Os nossos objetivos passam pela proteção do animal, mas também pelo levantamento histórico e pela sua divulgação.» E então o homem conta a lenda do eunuco. «Nos tempos romanos, um cônsul chamado Caio Canio, cansado da perda do sono por causa do cantar dos galos, conseguiu fazer aprovar uma lei impeditiva da existência destas aves na região.» O povo, pobre e faminto, lembrou-se de capar os bichos, tirando-lhes o pio mas guardando a carne. «E foi aí que se percebeu que a castidade tornava o animal mais gordo, opulento e tenro do que as outras aves.» A história cabe no domínio da lenda mas, em 1719, D. João V instituiu oficialmente a Feira dos Capões por decreto régio.

Entre os seguidores do culto do capão há nomes como Pedro Lemos, chef do restaurante homónimo do Porto, com uma estrela Michelin, Álvaro Costa, que lidera a cozinha do NH Batalha, no Porto, Nuno Diniz, do lisboeta Tágide, ou Lígia Santos, a vencedora do primeiro Masterchef Portugal. São, neste ano, os embaixadores da ave. Mas, em boa verdade, o nome que tem trazido o capão para as bocas do mundo e o critico gastronómico Fernando Melo. «Estamos no ano zero e agora podemos dar asas ao capão. Com a certificação, um chef algarvio vai poder usá-lo e tem todas as vantagens em pô-lo no seu receituário. Como é um produto caro, nunca terá uma distribuição maciça, mas tem espaço nas grandes cozinhas do mundo.»

Pode caber nos restaurantes de topo, mas dificilmente haverá local mais autêntico para degustar o galináceo do que a sala de jantar de Manuel Machado. Há sete anos, o homem foi despedido da empresa de mobiliário onde trabalhava e decidiu criar uma tasca em casa. Abre para almoço às quartas e às sextas, e aí pode vir quem quiser. O resto é por encomenda – e raros são os dias em que ninguém lhe pede serviço. Bacalhau no forno e anho assado, galo e galinha do campo, vitela de aba e cabidela. Em dezembro, como seria de esperar, e a corrida ao capão.

A casa de Manuel fica em Arreigada, aldeia de 2117 habitantes. Fica num fundão do povo, à beira do rio Ferreira. No quintal, há pocilgas e duas grandes capoeiras – uma para galos, galinhas e rinchões, outra para os que perderam a virilidade. Ao lado, cinco fornos de lenha, é lá que se cozinha o petisco. Mesas sempre cheias. «A semana vem grupos de amigos, homens na maioria. Ao fim de semana é mais famílias.»

Agora que o frio chegou, as encomendas de capão não param. «Nestas semanas vou dar cabo de uns cinquenta, ai isso vou, atira Machado. Veio um grupo do Porto, engenheiros de máquinas que nunca provaram a iguaria. «Somos um grupo que gosta de caca, e quem gosta de caça gosta sempre de uma boa comezaina», diz João Alves, o organizador do almoço, o único que já conhece o prato. Provou-o três vezes, e tanto falou da ave que os companheiros quiseram prová-la. São sete, número ideal para dar conta de um animal. O dono da casa já anda há dois dias a preparar o bicho, não tarda nada há-de levá-lo à mesa.
Manuel trata de degolar o bicho e acender o lume, mas e Jerusa Sousa, a mulher, quem acerta os temperos. Ela não segue a receita fiel, fez-lhe as suas adaptações. Whisky e bagaço, em vez de vinho verde. Com as patas e os fígados apura um caldo para onde há de ser deitado arroz – cozinhado, como a ave, em forno de lenha. As batatas seguem no mesmo tabuleiro de barro onde foi posto o capão, que vai recheado com um picado de carne de vaca, salpicão e moelas – tudo produção caseira. Os grelos, cozidos e depois salteados em azeite e alho, são apanhados na horta. «Isto dá uma trabalheira danada, mas quem vem volta sempre.»

Outros dois grupos juntam-se ao repasto, economistas do Porto numa mesa, políticos de Paços de Ferreira na outra. Ligaram de véspera, já não vão a tempo de pedir capão. Sai-lhes galo, mas todos admiram o banquete dos vizinhos quando ele vem para a mesa. Os da terra debitam piadas: «Quando um homem se casava e passado um ano não tinha filhos, deixávamos-lhe um capão em madeira preso a porta de casa, durante a noite», conta Paulo Barbosa, vice-presidente da autarquia, que ainda espera pelo repasto. Vai dando cabo de um jarro de verde tinto, produção local, e de um queijo de Paços produzido pela paróquia local.

Na mesa do capão a comida trouxe festa. José Manuel Maia, criador de cavalos lusitanos em Vila do Conde, gaba a suculencia da carne e espanta-se por o produto não ser mais conhecido. «Sabe, aqui temos a prova de que o problema do pais e agrícola. Temos excesso de nabos e falta de tomates.» Os outros riem-se, riem-se, e elogiam a iguaria. Manuel Machado cruza os braços e fica a olhar para aquela alegria toda, depois diz que todos os dias de capão são dias felizes. «Não é por acaso que é um prato de Natal. O capão ninguém come sozinho, precisa de ter gente de quem um homem goste a volta da mesa.»
Já não há grupos separados, toda a gente fala com toda a gente. Anedotas, gargalhadas, tudo por causa de um capão. De repente, Maia levanta-se e pigarreia. Recita um poema de António Aleixo e outro de Bocage, atrevimento em quadras e sonetos. Depois termina com José Régio, o «Cântico Negro» – durante uns minutos faz-se um silêncio sepulcral entre os homens que não se conhecem para ouvir uma voz de trovão. «A minha vida e um vendaval que se soltou. E uma onda que se alevantou. E um átomo a mais que se animou.» E, no mais improvável desfecho de uma almoçarada de empresários, caçadores e criadores de cavalos, os homens abraçam-se para concluírem em uníssono que não sabem por onde vão, nem sabem para onde vão, mas sabem que não vão por aí. Então Machado, o dono da casa, desfere no meio dos aplausos: «Está a ver? É isto que o capão faz à gente.

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CAPÃO À FREAMUNDE
Embriaga-se o capão, com um cálice de vinho do porto e passado meia hora, mata-se,
Depena-se, abre-se e lava-se. Depois de estar em água fria com rodelas de limão, cerca de uma hora, põe-se a escorrer e mergulha-se em vinha de alhos (molho de vinho branco, algumas colheres de azeite, sal e pimenta e vários dentes de alhos esmagados). Deve ficar neste molho, de véspera, e Proceder-se a diversas viragens, esfregando o capão. No dia de o consumir, põe-se ao lume uma caçarola com azeite, gordura de porco e cebolas as rodelas. Quando a cebola esta estalada, deita-se uma boa colher de sopa de manteiga, meio quartilho (2,5 dl) de vinho branco e sal q.b. Escorre-se o capão, esfrega-se todo com este molho e recheia-se com farófia e um picado feito com os miúdos do capão e pedacinhos de salpicão e presunto. Põe-se na assadeira, de preferência uma pingadeira de barro, e leva-se ao forno a assar lentamente, picando-o com um garfo de vez em quando, ao mesmo tempo que se rega com o molho da assadeira. A operação de picar com o garfo deve ser cuidadosa para não ferir a pele, que deve ficar estaladiça e loura.