Um dia na vida de um anjo

William Hacker

A modelo Sara Sampaio está em todo o lado, de capas de revista a catálogos da Victoria’s Secret. Nasceu no Porto e a fama levou-a a Nova Iorque. Encontro íntimo com aquela que pode vir a ser a primeira top model portuguesa.

Sara Sampaio não é perfeita. Os seus dentes não estão alinhados e, no ano passado, depois de muitas viagens, emagreceu tanto que a agência lhe pediu para engordar. Depois, há o seu conhecido 1,72 m, abaixo da altura indicada para uma modelo. Sim, Sara Sampaio não é perfeita, mas quando atravessa a sala da sua agência em Nova Iorque com umas calças de cabedal e um camiseiro branco, é como se nem tocasse o chão de madeira do prédio do famoso e moderno bairro do Soho. Depois, quando puxa o cabelo para trás da orelha, levanta o rosto e, sorrindo, olha finalmente na nossa direção. Aí, nesse momento, há uma certeza: é das mulheres mais bonitas que já vimos.

Agora seria a altura indicada para descrever os seus olhos. Explicar como são grandes, tentar uma metáfora para sugerir como são verdes. Desnecessário, no entanto. Nos últimos dois anos, a modelo do Porto esteve em todo o lado e toda a gente já viu os seus olhos: fez capa de várias edições internacionais da Vogue, Elle e Marie Claire, protagonizou as campanhas da Armani Exchange, Lanidor, Bluemarine, Calzedonia e Replay, ganhou dois Globos de Ouro da SIC para Melhor Modelo Feminino, deu a cara e o corpo em inúmeros catálogos da Victoria”s Secret e caiu do céu como um anjo, num anúncio da Axe. Aos 21 anos, alcançou um sucesso inédito entre as modelos portuguesas. E por isso, inevitavelmente, acaba de sair do país. Em Agosto, mudou-se para Nova Iorque.

«She’s got it», diz a sua booker da agência de modelos Women Direct, Victoria Shubayeva, uma russa austera, com o cabelo violentamente puxado para trás. «Ela tem-no» é uma expressão repetida pelos anglo-saxões quando estão na presença de alguém com qualidades extraordinárias, que não conseguem qualificar. «É a beleza, a inteligência, o profissionalismo, mas é também uma qualidade de estrela que faz toda a gente adorá-la», tenta explicar Victoria. «É maravilhosa. Depois dos trabalhos, os clientes ligam sempre a dizer como foi bom trabalhar com ela. É uma estrela!»

William Hacker

Do Porto a Nova Iorque

Não se sabe se foi isso que Tó Romano, dono da Central Models, sentiu quando olhou para Sara pela primeira vez, tinha ela 15 anos e participava num casting para o concurso Cabelos Pantene, no Porto. Mas sabe-se o que lhe disse: que era muito nova, mas que, por favor, voltasse no ano seguinte. Sara voltou e, já com 16 anos, ganhou a competição. Os pais (um mergulhador e uma administrativa do grupo Sonae) aconselharam a que terminasse o secundário, na Escola Secundária Boa Nova. Sara cumpriu o conselho. No final, candidatou-se à universidade em Lisboa, onde teria mais oportunidades de trabalho. Entrou no curso de Matemática Aplicada – sempre gostara de frações e álgebra – e terminou o primeiro semestre na Faculdade de Ciências. «Estou muito satisfeita por ter ido para a faculdade», diz. «Não sei se voltarei, mas fico contente por ter tido essa experiência.»

No início do segundo semestre, teve a conversa que lhe ia mudar a vida. Tornara-se amiga de Luís Borges, conhecia o trabalho deste modelo português na Tommy Hilfiger e Tom Ford e via o seu percurso internacional como uma referência. Quando Borges lhe disse que ia uma semana a Londres, ela respondeu: «Vou contigo!» «Estava a brincar, mas ele respondeu: porque não? Eu estava de férias, não tinha nada que me impedisse.» Sara foi e conquistou a primeira agência que visitou, a Women Direct. A viagem de uma semana prolongou-se por dois meses. «No meu percurso há uma série de passos que me têm levado na direção certa. Mas, sem dúvida, a decisão de ir a Londres marcou a grande mudança da minha vida.»

Sara tinha poupado dinheiro dos últimos trabalhos, que usou na expedição londrina, mas garante que isso não é fundamental. «Se tiveres uma agência, e eles acreditarem em ti, adiantam dinheiro para as despesas do dia, pagam a estada no apartamento de manequins, fazem-te um book. Nenhuma agência séria cobra dinheiro por um book. Ficamos com conta aberta e quando começamos a trabalhar esse valor é descontado.» Sara também não acredita em cursos de modelo. «Ou se tem, ou não se tem. Há técnicas que ajudam, mas isso aprende-se a trabalhar, com os fotógrafos e os outros manequins mais experientes.»

De Londres, foi para Paris. «É uma cidade complicada», diz. «Não são muito acolhedores quando não falamos bem francês.» Viveu lá um ano, numa residência para modelos em Saint Germain, onde fez a maior parte das amigas que ainda tem, como Hannah Johnson e Sadie Newman. Foi também nessa altura que comprou Luigi. O chihuahua, que completou agora dois anos, é a grande estrela do seu Facebook e Twitter, onde aparece na janela, no sofá, no carro, a passear ou a dormir.

No ano passado, Sara veio pela primeira vez a Nova Iorque. A viagem era de férias, mas aproveitou para trabalhar. A primeira agência que visitou foi a Women Direct. Perguntaram-lhe quais eram os seus planos. Sara falou do objetivo de desfilar para a Chanel, confessou o desejo de protagonizar uma campanha de beleza e partilhou o sonho de trabalhar com a Victoria”s Secret. A agência tirou-lhe umas fotografias, ela despediu-se. No mesmo dia, recebeu um telefonema. A agência tinha enviado as suas fotografias para uns clientes. A Victoria’s Secret queria vê-la. Naquele mesmo dia. «Fiquei supernervosa, não estava nada à espera», lembra. Os nervos não atrapalharam. Um mês depois, estava a fotografar para a marca de roupa interior. O caminho estava traçado. Nova Iorque era o destino.

Modelo ao comando

Um ano e meio depois, e após ter vivido um pouco por toda a parte, Sara estabeleceu-se finalmente em Nova Iorque. Em Agosto, alugou um T1 no Finantial District, perto de Wall Street. É lá que apanha, quase todos os dias, o metro para a sua agência no Soho. A Women Direct é um dos pontos onde se decide a sua carreira. A gestão da sua vida profissional obedece a uma complicada logística de agentes, bookers, clientes, revistas, fotógrafos e editores espalhados pelo mundo. A Central Models, em Lisboa, continua a ser a sua agência-mãe, o ponto nevrálgico onde se faz a coordenação de toda a rede. «Mas a última palavra é sempre minha», garante Sara.

A modelo já recusa trabalhos. «Há trabalhos que podem comprometer outros no futuro», analisa. «Se fizer uma campanha de cosmética agora, isso pode impedir que tenha um contrato com uma grande empresa mais à frente. É preciso ter objetivos e criar um caminho.» Sara tem outros limites, menos estratégicos. «Não tenho problemas em fazer topless, já o fiz, mas nunca o faria para uma revista masculina.» Outra questão delicada é o uso de peles. «Recusei um editorial só com peles. Não me oponho a usar uma peça, mas um trabalho inteiro não me deixa confortável.»

Sara tem um casting às 13h30. O cliente é a Nordstrom, uma grande cadeia americana de megalojas. Antes de abandonar a agência, agarra o seu composite, uma espécie de cartão de visita. O book – que acabou de ser renovado para incluir «fotografias mais edgy, porque estava demasiado comercial» – fica para trás. Não precisa dele neste casting. Quando sai para a rua, o sol do meio-dia inunda-lhe o rosto de luz. Não está a usar qualquer maquilhagem. «Só me maquilho no trabalho ou quando saio a noite», explica. «Nos castings, os clientes gostam que estejamos o mais naturais possível. Mas tenho de cuidar de mim, manter as unhas arranjadas, a depilação feita, o cabelo saudável.»

A modelo tem uma boa noção de Manhattan, mas recorre ao seu Blackberry (que havia de trocar, dois dias depois, pelo novo iPhone) para ter a certeza do caminho. Quando chega ao edifício, encosta-se a um pilar da entrada. Troca as sabrinas por uns sapatos pretos de salto alto, da Zara, que trazia na mala. Poucos minutos antes da hora prevista, entra no edifício. Outras raparigas passam por ela. São todas bonitas, todas muito altas. Sara não fica intimidada. «Não posso fazer nada em relação à minha altura. Não vou crescer. Só tenho de provar que posso fazer o trabalho tão bem ou melhor do que uma modelo mais alta», explica.

No interior da sala, estão três mulheres: a diretora de casting, a fotógrafa e uma assistente. Sara cumprimenta-as, apresenta-se e entrega o composite. Fazem-lhe algumas perguntas genéricas, como a idade e onde nasceu. Pedem-lhe para tirar umas fotografias, ela acede e já está – num minuto, o casting chegou ao fim. Sara era o número 62. Antes de o dia acabar, é provável que mais de cem raparigas passem por aquela sala. «No início, ficava muito nervosa. Ligava para a agência e perguntava: Será que gostaram de mim? Será que me vão chamar?», lembra. «Se não conseguia o trabalho, perguntava: porque é que não gostaram de mim? Fiz alguma coisa errada? Agora sei que há muitas possibilidades de não ser chamada. Só fico nervosa quando é um trabalho que quero mesmo.»

O negócio da moda

Depois do casting, Sara entra no metro. No caótico subterrâneo, diz que planeia ir uma semana a Londres e outra a Paris. Precisa visitar clientes antigos, manter contactos. Tem uma visão empresarial da sua carreira. «É uma vida muito instável. Hoje posso ter muito trabalho, amanhã nenhum. O meu momento pode ter passado», diz. «Acho importante poupar dinheiro. Sou bastante poupada, forreta mesmo.»

Por isso tem poucos luxos; tão poucos que os enumera: um iPad 2, que comprou em Paris quando foi lançado e agora nem usa, e calças de ganga da Rag & Bone, que podem custar entre 170 e 935 dólares (132 a 727 euros). De resto, diz que se veste na H&M e Zara, como todas as raparigas da sua idade. Tem um casaco Versace, mas foi da coleção para a H&M, um casaco Gucci e uma carteira Prada, ambas oferecidas. Pensa comprar casa em Portugal, mas, sublinha, «uma casa não é um luxo, é um investimento».

Quando começa a falar de dinheiro, corrige a postura e usa as mãos para explicar como tudo se passa. De imediato, destrói alguns mitos da indústria. Muitos desfiles, por exemplo, não são pagos. «Funcionam por troca, dão alguma roupa em troca do desfile. Os que são pagos pagam cem dólares. Há desfiles que pagam mil dólares, mas são muito, muito raros.» Estes trabalhos, explica, fazem-se para conseguir visibilidade. «Depois de um desfile, posso ser convidada para um editorial. Mas há muitos editoriais que também não são pagos. Muitas revistas só pagam quinhentos dólares, quando pagam.»

Sara aceita esses trabalhos pelo prazer que lhe dão – «adoro, por toda a liberdade criativa; temos quase sempre uma história para contar» -, mas também com um objetivo financeiro: «É através desses editoriais que os clientes nos conhecem e convidam para catálogos e campanhas. Aí é que fazemos dinheiro. São o que chamamos money jobs.» Para se ter uma ideia dos seus honorários, um catálogo que pague três mil dólares, por exemplo, tem grande possibilidade de ser recusado.

Depois, há os contratos de exclusividade, em que a manequim não pode representar outras marcas que vendam o mesmo produto. Sara acaba de assinar um, que ainda não pode revelar. Acima destes, no topo da pirâmide, está o grande sonho de todas as modelos, os trabalhos que as transformam de assalariadas bem pagas em milionárias: as campanhas de beleza, como perfumes e cosmética, das grandes marcas. «São o objetivo de qualquer modelo. São contratos que pagam meio milhão de dólares ou mais.»

William Hacker

Modelo de folga

A Union Square é um dos locais preferidos de Sara em Nova Iorque. Numa esquina, fica o Coffee Shop Café, onde a modelo almoça quase todas as semanas. Não come sempre fora, também cozinha, mas fica-se por uns bifes com arroz ou um esparguete à bolonhesa. «Adoro piza! Se pudesse, comia piza todas as refeições da minha vida», diz, a rir-se. «Mas tento forçar-me a comer saudável. Pelo menos uma refeição por semana.» Não gosta de peixe e, quanto a salada e legumes, apenas come alface e tomate. Insiste que devemos pedir pão de queijo para entrada. Depois, durante aquele momento universal em que sobra um no cesto e ninguém o quer tirar, avança. Para o prato principal diz que «normalmente, comeria as panquecas, mesmo que não fosse pequeno-almoço»; mas a escolha hoje é diferente: «Vou pedir um hambúrguer, só porque dá uma boa fotografia!»

Sara tem o hábito de pesquisar o seu nome no Google. Diz que vai parar de o fazer mas, por enquanto, garante que é a melhor maneira de encontrar as fotografias dos seus últimos trabalhos. «Tudo vai para a Internet primeiro», justifica. Durante uma dessas pesquisas, encontrou um blogue onde atribuíam o seu sucesso a laços familiares. «Diziam que era filha do presidente Jorge Sampaio. O meu pai é mergulhador. Mesmo que fosse filha dele, é triste alguém pensar que, fora de Portugal, isso teria importância.»

Agora ri-se quando recorda a história, mas na altura magoou-a. Tem apenas 21 anos, ainda é uma jovem. Uma jovem que fala todos os dias com a mãe e já chorou por estar longe da família; uma jovem que leva sempre o irmão para as cerimónias de prémios e que teve de amarrar as lágrimas quando dedicou o Globo de Ouro à avó falecida. «Se queres ter esta vida, tens de saber lidar com a distância dos amigos, da família. Adaptar-te a cidades completamente diferentes», diz Sara. É por isso que ela defende uma idade mínima para ser modelo: 16 anos. «Em Paris, via raparigas com 14 anos a viver sozinhas, a viajar para a Ásia sozinhas. Tenho 21 e ainda não quero ir para a Ásia sozinha.»

No último ano e meio, Sara esteve em Londres, Paris, Milão, Madrid, Barcelona, Hamburgo, Copenhaga, Maiorca, Canárias, Grécia, Marrocos, Los Angeles, Miami, Nova Iorque, Cuba, Jamaica, Brasil e Turks e Caicos. Passa muito tempo em aeroportos. Ocupa esse tempo a ouvir música (a banda preferida é The Kooks), a ler (o livro de eleição é Para a Minha Irmã, de Jodie Picoult), ou a ver séries de televisão.

«Vejo toda a porcaria de adolescente», confessa. A sua série preferida é Vampire Diaries («O Ian Somerhalder… meu Deus!»), mas também gosta de Gossip Girl («Já foi melhor.») ou Anatomia de Grey («Fiquei mesmo chateada quando mataram a Lexie no último episódio. Porquê?») Não gosta de reality shows com modelos, como o famoso America”s Next Top Model, apresentado por Tyra Banks. «Faz-nos parecer um bando de loucas, que vivem todas juntas e passam o dia a gritar umas com as outras.»

Como uma jovem da sua idade, gosta de sair à noite. «Fiquei tão feliz por fazer 21 anos, já posso entrar em bares e discotecas nos Estados Unidos», confessa. Às sextas, frequenta alguns dos lugares da moda em Manhattan. Aos domingos vai a uma festa brasileira chamada Farofa, no West Village. Bebe álcool («Moderadamente», garante). Tem saudades de Super Bock; em substituição, bebe Corona. «Ou cocktails. Gosto de coktails doces, com frutas.»

No fim do almoço, Sara tem algo para mostrar. No fundo do restaurante, há uma pequena placa que assinala: Lounge. Descendo umas escadas pouco iluminadas, encontra-se uma porta fechada na cave. Ultrapassada a porta, descobre-se uma sala com um bar, algumas mesas com computadores, vários sofás, dezenas de almofadas e muitas mulheres, todas altas e bonitas. O espaço chama-se Model Lounge e é um clube exclusivo para as modelos das dez melhores agências de Nova Iorque. «Na Fashion Week, está sempre cheio», explica Sara. «Costumo passar aqui entre castings ou trabalhos. Em vez de ir a casa, posso vir aqui, conversar, usar os computadores.»

William Hacker

Um corpo de anjo

Sara começou em Junho a treinar com um personal trainer. «Sou muito preguiçosa, mas é este o meu trabalho», diz. E por isso, desde que se inscreveu, não falha. Cinco vezes por semana, sempre à tarde, entra no Gotham Gym, no West Village, como faz agora, e cumprimenta o treinador Rob Piela com um efusivo abraço. «Ele é fantástico. Adoro-o!» Rob usa o cabelo num carrapicho, tem barba e os braços preenchidos com tatuagens. No braço esquerdo, lê-se «Warrior». Rob retribui de imediato os elogios: «Ela é dura, vocês vão ver. É extraordinária!»

Outro treinador vem de imediato cumprimentar Sara. A modelo distribui outro abraço. «É a minha rapariga. Adoro-a! Adoro o Brasil», diz. Sara é portuguesa… «Oh, só sabia que falava português…» Sara ainda encontra quem pense que Portugal pertence a Espanha ou fica perto do Brasil. «Mas, ultimamente, há muita gente a dizer que esteve lá, que visitou Lisboa ou o Algarve, e adorou. Também me falam sempre do Ronaldo e do Mourinho, claro!» Rob trabalha com várias modelos, entre elas a modelo Shanina Shaik, também da Victoria’s Secret, e diz que o objetivo com estas clientes «não é perder peso, mas tonificar sem ganhar volume». Sara tem trabalhado na sua barriga, coxas, rabo e braços. «O objetivo é ficar com tudo rijo», diz. «A indústria está a mudar. Pedem-nos para ter um aspeto saudável.»

Começa o treino. Sara tem as luvas colocadas. O treinador usa umas proteções onde ela tem de acertar. Soco com o braço direito, depois com o esquerdo. Pontapé com o pé direito, outro e outro. Mais três pontapés, agora com a perna esquerda. De volta aos socos. Depois de vinte minutos de boxe, seguem-se quarenta minutos de exercícios no chão. A cada movimento, está mais perto do corpo que tem desenhado na sua cabeça. Um agachamento e está mais perto da milionária campanha de beleza, um abdominal e quase que se vê na passadeira da Victoria”s Secret.

O treino acabou. O fotógrafo pede para fazer mais umas fotografias. Sara não endireita o cabelo, nem limpa o suor da testa, mas transforma-se em frente à câmara. É quase impercetível. Primeiro, baixa o rosto, menos de um centímetro, e olha diretamente para a câmara; depois, relaxa os lábios. Não, não é só isso. Há algo mais, um pestanejar lento, uma tensão no rosto, um abismo no olhar. «She’s got it», lembramos. Click.

William Hacker

Uma estrela 2.0

Numa parede do ginásio, Sara encontra um cartaz: «Uma viagem de mil milhas começa com um único passo. Confúcio.» Agarra o telemóvel, tira uma fotografia e partilha. Em segundos, os milhares de pessoas que a acompanham nas redes sociais leram a frase. Este momento, agora, também é deles. A modelo tem mais de 13 mil seguidores no Twitter e vinte mil fãs no Facebook (na altura em que foi publicada a reportagem, em 2012). Alimenta as redes sociais todos os dias, várias vezes por dia. «Acho muito importante. As pessoas sentem que podem falar comigo. Tento responder sempre.»

Há poucos dias, Philip Scheerer, de 17 anos, disse-lhe: «Podes mandar-me um tweet antes de dominares completamente o mundo da moda e seres famosa de mais para responder?» Sara, de imediato: «Ahahahha… vou tentar responder sempre aos tweets..:P» No mesmo dia, uma aspirante a modelo, Lucky?, escreveu: «Não me twitas há muito tempo:(!! Podes dar-nos, raparigas baixas, apoio? É possível ter sucesso com 1,68 ou 1,70? :(((” Sara satisfaz o pedido: «Olá. Há cada vez mais e mais raparigas baixas a ter sucesso como modelos. Por isso acredita em ti.» Quando Sara segue Melodie-Elise Fontaine no Twitter, a francesa de 11 anos fica tão contente que os 140 carateres do Twitter não lhe chegam. Escreve no Facebook de Sara: «Não tens ideia de como me fizeste feliz, chorei, tipo, 30 minutos. Adoro o teu trabalho e sou apenas uma criança mas rezo para ser exatam chihuaha ente como tu. És a referência perfeita para mim ?.»

Este contacto com os fãs é fundamental. Há alguns anos, quando nomes como Claudia Schiffer e Cindy Crawford deixaram de pisar as passerelles, declarou-se o fim das top models. A indústria passou a ser dominada por modelos angulosas, anónimas na sua extrema magreza, que ninguém, à exceção dos mais atentos, reconhecia. Ao contrário das modelos dos anos de 1990, estas mulheres não faziam programas de televisão, não eram capas de revista. Nos últimos anos, no entanto, voltámos a aprender os nomes de algumas modelos. Elas voltaram a casar com atores, estrelas rock e atletas. No centro deste fenómeno, está uma marca – Victoria”s Secret – e nomes como Gisele Bündchen, Miranda Kerr ou Adriana Lima.

Este pode ser o destino de Sara Sampaio. Ainda este ano, haverá um novo desfile do gigante do mundo da lingerie. No ano passado, o programa foi o mais visto do dia na televisão americana, com mais de dez milhões de espetadores. Alguns segundos na passadeira do extravagante espetáculo e a vida de Sara pode mudar. Ainda mais. Nos últimos meses, todos lhe perguntam se será um dos anjos do desfile. A verdade é esta: ela não sabe. Adorava, é um dos seus grandes objetivos, mas ainda não sabe se terá essa oportunidade.

Sara pertence à geração Morangos com Açúcar. Sonhou ser atriz – «Era muito fiteira, ficava em frente ao espelho a fingir ser outra pessoa» -, mas nunca quis ser famosa. «A primeira vez que me vi na capa de uma revista não queria acreditar. Não tem nada que ver com as pessoas reconhecerem-me ou não. O meu trabalho dá-me reconhecimento, mas não é por isso que o faço. É porque me dá muito prazer.» Como todos da sua idade, cresceu a ver desconhecidos entrar numa casa, sem qualquer talento, e sair com cem mil euros no bolso e a cara nas revistas. «Sei que há muitas pessoas da minha geração que procuram a fama independentemente do seu trabalho», diz. «É incrível o que fazem para ser famosos. Isso deixa-me triste.»

Sara não se refere ao caso, nem lhe deve passar pela cabeça, mas enquanto fala é impossível esquecer que, a poucos quilómetros de distância, nesta mesma cidade, há um jovem que sonhou ser famoso e tentou sê-lo através de um concurso de modelos; no exato momento em que Sara fala, esse jovem, que é da sua idade, do seu país, está sentado na sala 572 do Supremo Tribunal de Nova Iorque, onde um júri vai decidir se ele matou, ou não, o homem que lhe prometeu abrir a porta do estrelato.

Sara já trocou a roupa do ginásio. Dentro de minutos, entrará no metro. É hora de ponta. Nas carruagens da linha vermelha, irá misturar-se com os milhões de pessoas que regressam a casa. Num momento está lá, no outro desapareceu. Mas não se perde, sabe perfeitamente para onde vai. O destino, com todos os seus lapsos e confusões, por vezes faz isto: corrige todos os desvios e acerta, para uma única pessoa, tempo e lugar. Este é o momento de Sara. E ela não o vai deixar escapar.

[Publicado originalmente  na edição de 21-10-2012]