«Sou de trocar o lugar às coisas, de desarrumar as regras e as pessoas»

No liceu, usava boina à Guevara, no primeiro dia de Conservatório levou saia plissada e pullover. Entrou sem convicção, mas percebeu que ser atriz lhe permitiria ser as tantas coisas que sempre quis ser. Aos 41 anos, de volta ao Tivoli para a última temporada de Lar Doce Lar, Maria Rueff continua a não caber em molduras e tem as pazes feitas com Deus.

O que ainda a faz rir?
_A vida e as suas multifacetadas ironias. Por outro lado, a minha filha, a sua pureza e espontaneidade. E os colegas com quem trabalho.

E a filha Laura tem sentido de humor?
_Tem imenso sentido de humor, é uma criança muito livre. Digo-lhe muitas vezes que parece a Gabriela. Veio com o dom da alegria. É inteligente e já consegue fazer a equação da ironia, o que é um grande orgulho. Divirto-me muito com ela.

A comédia prospera em tempos de crise?
_Sim, rir é o melhor remédio. Rir é o que nos consegue distanciar da dor. O humor ajuda a rir da dor. É um cliché mas é verdade.

Diz-se que «a boa comédia começa quando a maçaneta da porta fica na mão».
_E isso mesmo. Em mim, o humor nasceu exatamente por isso, de uma falha trágica, filha que sou de uma família da descolonização. Foi portanto quando a maçaneta ficou na mão que o humor surgiu. O humor e a capacidade de relativizar. Não é por acaso que o samba e o carnaval estão associados a sociedades de grande dificuldade.

Até porque o humor, o riso, são também subversivos.
_Há quem defenda que o riso só incomoda, não destitui ditadores. Eu penso que o humor pode ir um pouco mais longe mas, de qualquer modo, se incomodar já faz alguma coisa. A nossa função como humoristas, observadores que distorcem as coisas para ajudar os outros a vê-las melhor, é fazer cócegas, incomodar, simplesmente. Não são necessárias atitudes moralistas. O riso começa na falha, na fractura e interessa para sobreviver, para aligeirar, para fazer cócegas, para mostrar. Socorro-me do riso para a minha vida pessoal.

O desespero é então uma motivação para a comédia…
_Em mim, sim. A minha família vivia na Beira (Moçambique), perdeu tudo e foi obrigada a uma grande luta. Eu, uma criança nascida fora do tempo, com irmãos adolescentes e outros quase adultos, com pais que perderam tudo e foram obrigados a começar do zero, percebi a dureza da vida e arranjei aquela forma de chamar a atenção do mundo dos adultos, de aligeirar esse mundo porque sempre que imitava a prima ou a tia havia gargalhadas. Era o meu escape e percebi que era o escape da família. Em mim, o humor começa assim.

Que recordações guarda desses tempos difíceis?
_Já falei abertamente sobre essa fase da minha vida, já fiz a minha catarse, já ajudei com a peça Lar doce Lar, onde mostrei o tipo de português que vivia em África e contrariei a ideia de que somos cidadãos de segunda. A minha história é uma história comum a muitas famílias. É uma página que finalmente se abriu com a publicação de vários livros sobre a descolonização. Somos um povo que branqueia muito e é, ao mesmo tempo, capaz de grandes gestos. Mas aos seus, e éramos todos portugueses, nem sempre os trata bem. E não vejam nestas palavras nada político, nem de cor da pele, nem moralista. É só a necessidade de alguma reposição da verdade.

Apesar de tudo, parece claro que os portugueses gostam muito de si.
_Explico o meu fenómeno com o facto de ter sido sempre honesta, Nunca vendi gato por lebre, as pessoas perceberam isso e aplaudem. Sou exatamente o que eu sou. Até fisicamente, sempre me expus ao ridículo sem pensar que estava a desfear-me. Por vezes, incomoda-me o facto de só verem o boneco e não a mulher, incomoda-me saber que há pessoas agarradas aos clichés, mas acho que todos sabem que sou rigorosa e trabalhadora e ao fim de 20 anos admito que algumas pessoas possam achar-me alguma graça e encontrar-me algum talento.

Como define talento?
_Não consigo. Sei reconhecer talento mas não sei como se explica. Para mim talento igual a dom.

Voltando aos portugueses. Encontra generosidade, ou não?
_Os mais simples são lúcidos, gentis, profundamente generosos. Encontrei-os mesmo naqueles tempos difíceis. Quando a minha família foi viver para a Travessa das Mónicas, tive a sorte de cruzar-me com a generosidade de uma senhora espantosa, dona da leitaria da rua, que nunca cobrou nada do que a minha mãe ia comprando. Ainda hoje os filhos vão ver-me ao teatro, numa relação que ficou para sempre. De facto, há pessoas que dão a camisa.

Em criança, que humoristas via na televisão. E em que fase ganha consciência de que tem graça?
_Imitava uma tia ou um primo e fazia rir a família. Sempre fiz rir o outros, mas não fazia teatrinhos e era uma criança muito séria. Já a minha filha nasceu com o dom da alegria. Há pessoas assim. Por exemplo, o Monchique também nasceu com esse dom. Ele é uma noite de Santo António. Mas a maioria dos humoristas é sisuda.A graça é feita com os saltos mortais sobre uma situação. Há, portanto, várias formas de alegria, humor e graça.

Como era a Maria?
_Uma miúda profundamente tímida. Desde cedo, com um olhar ácido sobre os outros.

A chamada tímida convexa?
_Só quando estava em família. Imitando o primo, fazendo uma graça, aligeirando uma situação tensa.

Os irmãos eram bastante mais velhos. Tímida e solitária?
_Muito solitária. Era a criança no meio de adultos. Era como se fosse a neta mais velha dos meus pais.

Com quem contracenava, então?
_A minha mãe era a minha contracena. A minha mãe era um rochedo. Nasceu num berço de ouro, perdeu tudo e isso deu-lhe uma grande sabedoria. Era uma mulher muito sábia, que me passou os valores da amizade, da honestidade, da generosidade. Não tendo nada, era profundamente generosa e quando apareciam mais retornados, somava água e sal à sopa e dizia «enquanto houver água e chão a porta fica aberta». Contagiou-me. Almejo na vida chegar-lhe aos calcanhares. Também esta minha faceta de não ter comigo uma preocupação estética vem dela. Nunca vi a minha mãe com batom e se ela era uma mulher bonita. Levava-me para todo o lado, contracenava comigo, nunca me pôs numa redoma. Não faz sentido privar as crianças da noção real das coisas.

A experiência de vida trouxe-lhe alguma revolta?
_Fui sempre uma «mafaldinha contestatária», chamavam-me assim na escola, mas não tenho o defeito da inveja. Em minha casa nunca se passou fome nem frio, e isso fez-me distinguir desde muito cedo o fundamental do acessório. Cresci com o fundamental, sabendo que os meninos à minha volta tinham acesso ao acessório. Mais tarde, a vida deu-me muito do acessório mas hoje, aos 40 anos, volto à noção de que o fundamental é o que interessa.

Cresceu cedo demais?
_Cresci cedo demais Fez-me falta ter menos peso sobre mim. Esse crescimento acelerado, esse peso, fez-me uma mulher dura. Sou, de facto, uma mulher dura mas esse rigor, essa personalidade também fez de mim a humorista que sou.

A visão do mundo do humorista é a visão do patético que há na humanidade?
_É. Temos essa visão do patético e, confesso, sou descrente no mundo. Tenho a noção de que somos um pouco feiinhos, muito poucochinho, com muita ambiçãozinha. A vida endureceu-me, deu-me uma carga de acidez, forçou-me a ver o forro dos outros, o avesso, e eu fui constatando que a maior parte dos forros não é lá muito bonita, os seres humanos de exceção contam-se pelos dedos. Falo por mim, ponho a cabeça no cepo. Por isso me comovo tanto com pessoas como Mandela, ou como a minha mãe. Nela, o forro era a parte mais bonita do vestido.

O mais importante do bordado é o avesso. Mas por vezes o forro engana. Trocava esse carga de acidez por alguma inocência?
_Não. Prefiro ser a artista que sou e que sem essa acidez não seria seguramente.

Como era a Maria adolescente?
_Um patinho feio, não tinha corpo de mulher. Uma adolescente com paixões pouco correspondidas porque eu era a grande amiga a quem os rapazes confessavam as paixões pelas miúdas giras. One of the guys, portanto.

E a sua vida nessa altura? Por exemplo, quando começa a achar-se graça?
_Muito ativa, muito empenhada na associação de estudantes, num grupo de teatro que fiz no Gil Vicente, e já muito humorista. Uma das minhas irmãs profetizava com frequência: «se o Herman te vê nunca mais te larga». Mas nessa altura, o meu futuro parecia mais inclinado para a política e para o Direito do que para o humor.

À esquerda ou mais à direita?
_Humanista. Dava-me com pessoas de vários quadrantes políticos embora passasse a imagem de comuna lá da escola, boina «à Guevara», com estrela e tudo. Basicamente, era uma humanista, com uma mãe católica muito especial. De resto, adotei a resposta de uma professora a quem uma vez perguntei de que partido era: «oh rapariga e eu sou lá de coisas partidas!» Pois eu também não sou de coisas partidas. Lia com uma paixão assumida o António Lobo Antunes, lia Alexandre O’ Neill, Marx , Mao, ou coisas da Causa Real, porque achava piada à consanguinidade e alguns valores da Causa. Misturava muito, portanto. Mesmo em relação ao meu futuro, não tinha uma ideia única – queria ser tantas coisas.

O lado aristocrático materno a falar. Aceitava um rei?
_Importo-me com o despotismo. O problema não é o rei nem presidente. O problema é o uso despótico do poder. Os grandes ditadores do século XX e XXI foram eleitos.

Quando percebeu que queria ser atriz?
_Nunca percebi. Eu achava que queria ir para Direito. Como não entrei, faltava uma décima, fui fazer o conservatório, mais para não estar parada. Não acreditava muito no meu sonho e foi quase como se a profissão me tivesse escolhido. Queria ser tantas coisas e a única forma de poder ser tantas coisas era ser atriz.

Que humoristas seguia de perto?
_Herman, via tudo o que ele fazia. Era obcecada pelo Herman, tive uma paixão absoluta. Não gargalhava nem, curioso, tentava imitá-lo e ainda hoje a nossa relação é assim. Lembro-me da sala gargalhar e eu ficar calada, em profunda admiração, a tentar perceber como fazia ele aquilo.

E no Conservatório, distinguia-se dos outros?
_No liceu, sim, reparavam no sentido de humor. Era muito divertida, capaz de mobilizar, interventiva e, como aluna, irregular – tanto podia ter um dezanove como logo depois um dez. Mais tarde, no conservatório, era muito descrente de mim própria e isso notava-se. Mas quando no segundo ano do curso fui substituir uma colega numa comédia com o Armando Cortez e a Manuela Maria, tudo mudou. Percebi, pela primeira vez, que a representação começava a ser uma coisa séria. No Conservatório, contudo, senti-me sempre uma visita. Todo o ator deve fazer escola e há pessoas muito competentes a transmitir ensinamentos mas a comédia não se ensina. Cada humorista tem uma forma de atacar, um timing, resta transmitir as técnicas. A escola serve, sobretudo, para diferenciar um profissional de alguém com muito jeito para contar anedotas.

Refere frequentemente a importância de Armando Cortez na sua carreira. De que forma foi marcada por ele?
_Adorei todos os meus professores de conservatório mas Armando Cortez foi o meu primeiro verdadeiro mestre. Era um homem absolutamente contemporanêo, profundamente tímido por ser tão genial, com um profundo conhecimento de comédia, e a quem só mais tarde foi feita justiça. Ele percebeu o quanto aquela miúda do Conservatório queria absorver tudo. E ensinou. Tenho uma amizade profunda e eterna por ele, foi uma espécie de avô e a minha primeira grande perda.

Nessa peça conhece o João Baião e decide fazer, com ele, um café-teatro. Os nomes mais importantes do humor foram ver-vos. Tinha 19 anos.
_É verdade. Foi a minha estrelinha da sorte. Herman José, Ana Bola, Nuno Artur Silva, La Féria, todos foram ver-nos.

Depois de a ver, que lhe disse o Herman?
_«Mal eu faça um programa de humor venho buscar-te.» Falou então com a Ana Bola, a fazer, na altura, uma série, ela foi ver-me e contratou-me imediatamente para Os bonecos da Bola. A partir daí, entrei na família Herman, uma família muito parecida com a minha, gente mais velha que descobre uma miúda com as referências da geração deles.

Passou também por um programa do Marco Paulo.
_A Rosa Lobato de Faria e o Thilo Krassman convidaram para esse programa. Nessa altura veio ao de cima o preconceito de alguns colegas. «Um programa com o Marco Paulo, tu vê lá». Mas logo nessa altura mostrei um bocadinho do que sou feita. Estava a estudar para atriz e, portanto, o que queria era trabalhar na profissão. A partir daí nunca mais parei e fiz todos os «Hermans».

Como foi o relacionamento inicial com o ídolo?
_Passou muito tempo até ter uma relação normal com o Herman. Tinha profunda vergonha, ficava quase tolhida. Foi ele, com uma meiguice e uma delicadeza incríveis, quem desbloqueou os meus constrangimentos. A minha relação com o Herman está no capítulo das coisas que não se explicam. Somos irmãos. Foram quase 20 anos intensivos de um pas de deux, como Nureyev e Fonteyn, Fred Astaire e Ginger Rogers. Esses amores existem e o Herman é um dos amores da minha vida. Um amor artístico é mais difícil de encontrar que um marido. É aquele que conhece de cor a nossa respiração

E que está lá sempre?
_Sempre. Agora temos estado afastado porque calhou e porque a vida nos levou por outros caminhos mas sempre que nos encontramos a sensação é a de termos estado juntos na véspera.

O Herman José juntou um grupo muito talentoso. Por vezes não é fácil gerir sensibilidades e egos…
_Temos uma profunda admiração uns pelos outros e este é o grande segredo das amizades, do casamento. Por outro lado, o Herman é um génio, revolucionou o humor em Portugal, é, portanto, um ser especialíssimo, dotado, iluminado, capaz de tirar o bom de cada um de nós. Ele trabalha apenas com os que considera serem os melhores e mais capazes, nunca escolheu pelas caras, só lhe interessa o talento. Não há lugar para más escolhas e a partir daí está tudo certo. Com o Herman não há invejas ou indisciplina. Estivemos com ele quando era absoluto e o maior de Portugal e, portanto, eu tinha a noção de que não podia falhar.

E também tinha a noção de que era a segunda figura do grupo? O Zé Manel taxista igualou as melhores personagens do Herman.
_Para uma miúda que chega a uma família dessas e começa a trabalhar com pessoas que estão há anos a dar provas, não é fácil. Nunca quis perceber realmente o lugar em que estava, se era primeira, segunda ou quarta. Preocupei-me em ser grata e trabalhadora. Hoje, aos 41 anos, tenho noção que trabalhei para isso, mas nunca achei que fosse a maior. E ainda não acho. Para mim, foi como nas famílias. Cada um tem mais jeito para uma determinada tarefa e por isso fica responsável por ela. Intuímos isso, sem invejas.

O Herman já não é absoluto. Ainda é o maior?
_É absoluto porque já está na história e, para mim, será sempre o maior.

Nunca quis matar o pai. Mas por vezes tentaram usá-la contra o Herman. Como geriu isso?
_Nunca tive necessidade de matar o pai porque adoro e amo o pai. O Herman e a Ana Bola serão sempre as pessoas que deram uma oportunidade a uma miúda que não tinha nada. Tenho por eles uma gratidão até morrer. Muitas vezes houve maldade por detrás desses assuntos, tentaram usar-me contra o Herman, é verdade. É o tal forro de alguns, nada bonito, a mostrar-se. O que essas pessoas não sabiam é que eu e ele estávamos a ver o forro. Por isso, sempre que tentaram separar-nos, ou intrigar, tal como um casal, soubemos gerir a situação e resolver o assunto com uma gargalhada.

Havia uma grande vontade de por um fim ao sucesso do Herman?
_Havia e há. Estreei-me com ele no Herman Enciclopédia e logo nessa altura a frase que apareceu no jornais foi «és um vómito, já morreste». Querem matar o Herman há, pelo menos, 20 anos.

É sabido que um humorista não pode achar graça aquilo que faz mas dificilmente se acredita que nos bastidores não se desmanchassem a rir.
_Em bastidores éramos crianças barulhentas, caóticas, hiperativas, completamente disparatadas. Por vezes desmanchávamos-nos, sim, mas, findo esse recreio, vinha a disciplina. Tenho anos de «Nelo e Idália», os outros mortos de riso e eu seriíssima, ao lado do Herman. Porque, é verdade, o humorista não se pode achar piada.

Nem com o tempo? Como espetadora, nenhuma das suas personagens a diverte?
_Nenhuma. Jamais rio com um boneco meu. Não consigo divertir-me comigo.

«Zé Manel», «Rosete» e «Idália» são talvez as suas personagens mais carismáticas. Como é que nasceram?
_Sugiram no pas de deux com o Herman, nos talk-shows. A «Rosete» é uma homenagem a uma vizinha dos tempos da Graça, a Dona Liberdade. O taxista é baseado num trolha que ia a nossa casa, o Arnaldinho, lisboeta marialva. Neste caso, a componente foi trabalhada por mim, com o blusão da Força Aérea e os Ray-Ban. Faltava apenas o malfadado cabelo. É então que encontro na maquilhagem o professor Herrero, um convidado do programa, que usava aquela risca ao lado. Percebi logo que era aquilo. Restou juntar o bigode e um belíssimo texto da autoria, sobretudo, do Ricardo Araújo Pereira e do Miguel Góis. Devo dizer que tive o privilégio de ter a escrever para mim os mais brilhantes. Junto ao Ricardo e ao Miguel os outros Gato, o João Quadros, o Herman, a Ana Bola, a Luísa Costa Gomes, o Filipe Homem Fonseca, o Rui Cardoso Martins, para dar apenas alguns exemplos.

Tem poder de decisão sobre um texto?
_Sou muito exigente e respeitadora do papel de cada um e, talvez por isso, há quem ache que eu tenho mau feitio mas quero apenas que cada um cumpra bem o seu papel. No caso das minhas rábulas, reunia com as Produções Fictícias e criava-se ali o boneco dessa semana. Eu levava a ideia e, negociando aqui e acolá, eles compunham o texto. Conheciam-me muito bem e sabiam que eu não gosto muito de brincar com algumas coisas.

Por exemplo?
_Com a doença, com a morte, com alguns símbolos de fé, se bem que depois da perda dos meus pais e de um irmão, fiquei mais distanciada. A minha mãe, na hora da morte, lamentou ter levado a vida tão a sério. Herdei dela alguma dessa rigidez granítica mas, depois disso, sinto que talvez não faça sentido ser tão inflexível.

Fixou algum sketch mais constrangedor?
_Se houve não fiquei com ele na memória. Tenho a noção de que há quem tenha em relação a mim algum azedume porque encara a caricatura como uma ofensa mas, no fundo, apenas se caricatura quem existe. De resto, tento sempre fazer um exercício: «se fosse comigo quando parava de rir?»

A comédia precisa de uma vítima. Por exemplo, incomoda-a fazer humor sobre uma pessoa gorda?
_O humor é uma coisa de catarse. Tem de ter a estrela do divertimento no fim e espelhar o que eu acho ser «alfinetável». Muitas das coisas que a sociedade considera serem defeitos – e que eu vejo como características – não são para mim «alfinetáveis» não me dão vontade rir.

E o uso do palavrão?
_O uso do palavrão é uma coisa portuguesa. Sou filha de uma mulher da Beira Alta que dizia o seu palavrão. Asneirolas sempre se disseram e é muito libertador. O Quim Barreiros é tão querido de tantos portugueses porque é genuíno. Por isso, sou capaz de usar o palavrão. Mas nunca para conseguir a graça a mais, nem para angariar uma gargalhada. Esse é, de resto, um tipo de recurso que odeio. Uso o palavrão, tal como posso usar o dente podre, só quando faz sentido para a personagem. Creio até que nunca usei um dente podre.

O humor também pode ser simplesmente má língua?
_O que à partida não nos parece má-língua pode resultar em má-língua. E vou dar-lhe um exemplo concreto. Quando a Luciana Abreu e do Djaló se separaram e o Vasco Palmeirim me convidou para cantarmos juntos uma música, na rádio Comercial, um ouvinte fez uma crítica com sentido: disse que eu estava a fazer graça com a separação dos outros sendo que nunca tinha brincado com as minhas separações. E essa crítica fez-me pensar.

Leva para casa alguns tiques do seus personagens?
_Sou muita sóbria. Costumo dizer que tenho uma esquizofrenia bem resolvida. Todos estes bonecos estão num reservatório. Um dos meus maiores prazeres é observar, estar numa esplanada a observar pessoas, a imaginar como será a mulher deste, os filhos daquele. Isso é o que o ator faz, no caso da comédia tratando de ver o que no outro é risível. Essa informação fica num reservatório e um dia sai.

Como seria um ‘boneco’ inspirado em si?
_Muito nervosa, muito ansiosa, muito fumadora e com alguns tiques faciais. «Uma beta um bocado passada», assim me chamavam no Conservatório (quando todos se vestiam de preto, fiz a entrada no conservatório de kilt e pullover azul, como se estivesse a entrar em Oxford). Aparentemente muito formal mas atrevida, rebelde. Rebelde com alguma elegância. Não sou, nunca fui, de atirar coisas para o chão. Sou mais de trocar o lugar às coisas, desarrumar as regras, as pessoas.

Falta o bordão…
_Uso muito a palavra «profundamente».

Caricaturas quase impossíveis?
_Mandela, por exemplo. Como fazer rir com o Mandela? É muito difícil. A caricatura não tem que ver com admiração por alguém ou falta dela. Há pessoas que eu admiro e que se prestam a grandes caricaturas. Natália Correia, por exemplo, dá um grande boneco.

Fazer humor com os grandes patrões, com os políticos, com a igreja tem um custo?
_A censura existe cada vez mais. É uma censura difícil porque não tem rosto, vem dos grupos políticos e económicos e o castigo é subtil. É uma censura que se lê nas entrelinhas.Vão-nos só esvaziando, e não nos vale a pena ser heróis porque não há honra no degredo. Ficamos «sacos vazios», atirados para um canto. É o que estão a fazer à cultura em geral.

Não é um bom cenário.
_Não, não é. Quando fazemos um balanço da nossa vida, por vezes sentimos necessidade de voltar à origem. Nesse sentido, vou fazer agora um cabaret alemão, regressando ao que me fez fazer humor – o facto de ser uma Mafaldinha contestatária. Apetece-me voltar ao humor subversivo, usando as armas que os comediantes alemães usaram em plena guerra, em Berlim. Não destituíram o Hitler mas incomodavam e faziam pensar. Pensar nos nossos valores porque o que mais me preocupa na crise atual é, precisamente, a crise de valores, que mundo vou deixar a minha filha.

O público e a critica aderiram rapidamente ao seu trabalho. Recorda as primeiras reações?
_Tive reações do público e da crítica logo com a Rosa, a criadita de A Mulher do Senhor Ministro. Fui muito bem recebida e acarinhada. Como digo, aconteceu-me tudo muito depressa, não tive tempo para rascunhar. Só agora, aos 40anos, calmamente, estou a organizar tudo isso. Começo agora a ver de forma límpida o meu percurso e só posso agradecer às pessoas. Tive um princípio de vida duro mas o retorno que tive na minha profissão compensou essa falha.

De forma lida com a fama?
_No início, as pessoas confundiram a minha timidez com arrogância. Mas em entrevistas preguei tanto a minha timidez que as pessoas perceberam e, hoje em dia, são muito delicadas, mesmo as que acham que um cómico tem de estar permanentemente aceso, sempre com uma graça pronta. Não tenho nada achaques de vedeta nem me queixo de não poder ir ao supermercado mas fiz questão de manter alguma privacidade e o meu jardim secreto preservado. A minha vida e a vida da minha filha são assuntos vedados.

A revistas cor-de-rosa dão-lhe alguma sossego. Porquê?
_Talvez porque sempre lhes disse que não valia a pena, a minha vida é normalíssima. Quando me separei do pai da Laura, quando comecei a minha relação com o Bruno [Nogueira] ou quando me separei dele houve, claro, paparazzi. Há sempre umas ovelhas negras que inventam umas coisitas gratuitas mas a essas nem ligo. Em regra, têm respeitado, posso dizer que são quase 20 anos de respeito mútuo. Até porque já lhes disse: quando me apaixonar perdidamente, quando tiver um senhor, aviso.

«Quando tiver um senhor» é uma expressão muito boa.
_Um «senhor/ príncipe», mas por enquanto prefiro estar sozinha, até porque não me sinto só. Parece-me que em Portugal esta opção ainda é vista como esquisita. Há decisões que tomei por respeito a mim e a minha filha. A opção de saltar para o vazio, amorosamente falando, é muito difícil, é uma atitude de coragem e, por isso, são poucas as pessoas que o fazem. Mas prefiro essa opção à hipocrisia. Muitas pessoas vivem em profunda solidão, dentro de casamentos de mentira, relações triplas, quadruplas. Sou uma pessoa de partilha mas acho que o amor acontece, não se força. A minha filha, a minha família, os meus amigos e a minha arte preenchem-me.

A critica mais dolorosa?
_Foi ao Programa da Maria. De repente, passou-se do «já não prestas, Herman; a miúda é que é boa», para o «ela sem ele não é nada», como se eu não tivesse valia alguma. Ou seja, preso por ter cão, preso por não ter. O que me dói é a crítica gratuita e injusta. Como o humor. Por vezes também é gratuito.

O programa a solo foi uma decisão precipitada?
_É que não foi sequer uma decisão. Foi uma proposta do Emídio Rangel que comecei por recusar. De facto, tenho uma ausência total de ambição, quase fui empurrada e a única coisa que disse foi que não deixava o Herman. Olhando à distância, julgo que ainda não tinha maturidade para resolver o amargo daquilo tudo. Sim, a situação deixou-me na alma um profundo amargo. Eu fui séria, profissional, contratei só atores, fui profundamente rigorosa, nada comercial (se calhar devia ter sido menos experimentalista e mais comercial) e isso tolheu-me os movimentos. Artisticamente, foi um marco, é, hoje, um programa de culto, não me arrependo de o ter feito mas não soube lidar bem com a situação. O programa foi tirado do ar não por falta de qualidade mas por não ter muita audiência (passava em cima do Big Brother). Na altura, eu e SIC confundimos qualidade artística com números.

Que aprendeu nessa lição?
_Fortaleci-me e agora, fazendo o balanço, tenho orgulho no programa, sei que ele merecia ter continuado e que eu devia ter lutado mais por isso. A prova é que todos os atores do programa estão aí, cheios de sucesso.

Gostaria de ter agora um programa seu?
_Apetecia-me, sim. Já não para provar coisa alguma mas para dar espaço a um tipo de trabalho feito com rigor. Não que não se façam trabalhos com rigor mas seria uma coisa diferente, um olhar feminino sobre o humor. Já que tanto se diz que não há mulheres na comédia…

Nunca pensou num talk-show?
_Recusei muitas propostas para apresentar, muitos programas para conversar porque achei, e ainda acho, que sou essencialmente uma atriz.

Nos próximos tempos, em que trabalhos vamos poder vê-la?
_O tal cabaret alemão, no Teatro do Bairro, encenação de António Pires, com textos de Luísa Costa Gomes, adaptações de Brecht/Eisler e música de Kurt Weill e Frederick Hollaender. Vou cantar, dançar, fazer rir. Essencialmente, é um prazer a que me vou dar. E vou voltar com o Joaquim Monchique ao Lar doce Lar, em cena, de novo, no Teatro Tivoli.

O que gostaria de estar a fazer aos 50 anos?
_Gostaria que Deus me ajudasse a saber adaptar a minha arte ao envelhecimento do meu corpo.

O estado da arte
_Estamos numa fase complicada a cultura está a ser bombardeada e esvaziada. Parece que só o que é inócuo e de plástico resulta. Há alturas e horas para tudo e tudo é preciso desde que seja bom e bem feito.

Que avaliação faz do boom da stand up comedy?
_Positiva, se falarmos dos que são realmente stand-uppers. O problema é que baralhou-se tudo. Destituíram quem merecia ter trabalho e criou-se uma confusão desgraçada. Até o mar limpar isto vai passar um bocado.

Nunca fez stand-up. Porquê?
_A minha personagem não tem graça. A minha estrelinha é mais a fazer de outros.

Como olha para os novos humoristas ?
_Das pessoas de talento espero que o honrem trabalhando, como eu faço para mim própria. Se a inspiração vier que me apanhe a trabalhar, costumo dizer.

Um comediante ainda é sub-avaliado como ator?
_Eu vivo esse preconceito desde a escola. Estive para ser chumbada por ser demasiado cómica. Diziam-me que estava a tirar o lugar às atrizes. Por isso, peço sempre aos novos atores que olhem bem para o teto do Teatro Nacional. Lá encontrarão drama, tragédia, comédia, farsa. Não vou contra a minha estrelinha nem a nego, adoro fazer o que faço, mas estou preparada para fazer tudo.

A peça Lar doce Lar é um sucesso. Esperado?
_Essa é outra conjugação do universo. Nem eu nem o Monchique esperávamos esse sucesso. Foi muito bonito, comoveu-me muito. Para começar, a contracena com o Monchique, um ser de exceção. um grande amigo que tenho na vida. A história da peça é, de resto, a história das amizades. Depois, porque a peça honra os mais velhos, eu, a minha mãe, ele, a avó que o criou. Uma homenagem que foi ouvida e nos deu esse sucesso.

A digressão ao estrangeiro incluiu Macau. E até aí foi bem recebida.
_A peça tem uma universalidade que chega a outros povos. Todos nós temos velhos nas nossas vidas. Este exercício é rir com eles e não deles.

Qual é a reação da filha às ausências?
_Durante muito tempo não quis ter filhos. Entrego-me tanto à minha arte, sem horas nem feriados, que me parecia egoísmo expor uma criança a essa ausência. Foi um desejo do pai a que em boa hora acedi. E Deus deu-me uma filha que é um mulherão, cheia de energia, e que me ensina muito. A Laura percebe a mãe que tem e a vida que a mãe tem.

Qual é o seu lugar no humor português?
_O tempo o dirá.

E entre as comediantes portuguesas?
_Tivemos grandes cómicas. Mirita Casimiro, Beatriz Costa, Maria Matos, incontornável e Laura Alves são as nossas grandes comediantes. Depois há a Ivone Silva, um estilo muito específico que terá inspirado atrizes como a Marina Mota. Depois sou eu, a Ana Bola, a Maria Vieira. Não sou copista nem mesmo do Herman. Há inspiração mas não há cópia. Os antigos dizem que faço lembrar a Mirita Casimiro e reconhecem em mim, em palco, um pouco da energia da Laura Alves. Mas tenho a humildade de não me comparar. Estou a fazer o que posso, à minha maneira e no meu tempo, com tudo o que acarreta.

Que legado gostava de deixar?
_O reconhecimento da minha seriedade e entrega. E o que mais me comove: saber que ajudei a atenuar a depressão e a tristeza de algumas pessoas. Sentir que tive uma função humana na sociedade é o que mais me grada.

Como carateriza a sua carreira?
_Sei que tenho um talento e que a vida me obrigou a aguçar o engenho. Mais do que isto que o digam os outros.

Da peça Quem muda a fralda à menina. com Armando Cortez, tinha 19 anos. Até hoje, o que mudou?
_Tenho menos medo. Estou mais racional, mais serena. Sei que sou um ser humano com algumas arestas de rocha, que magoam, mas também sei que sou uma flor delicadíssima, hoje já capaz de mostrar essa flor a algumas pessoas. A Deus peço lucidez e presença de espírito para me ir renovando porque isto passa a correr.

Por três vezes referiu Deus. Como é a sua relação com Ele?
_Não frequento a igreja porque há coisas na igreja de que eu não gosto, mas tenho pena. Apesar de algumas zangas, a minha fé em Deus está intocada, intacta. Tenho as pazes feitas e sou-Lhe grata por tudo que tenho aos 40 anos e pelas estrelinhas a mais que me deu: a minha filha e a capacidade de fazer rir o outro.