Seja bem-vindo, Mr. Lu

Notícias Magazine

Há na página 31 desta revista uma lufada de ar fresco. Não que não haja em todas as páginas, mas esta é mais forte. Não, lei­tor-apressado-que-foi-já-espreitar-para-perceber-aquilo-de-que-eu-estava-a-falar, não é o Mr. Lu de que fala o título. Quer dizer, também é. Mas é sobretudo a família através da qual o jornalista Ricardo Rodrigues começa a contar a sua história. A família de Jorge Araújo, que organizou um jantar num restaurante chinês que abriu recentemente na zona de Arroios, em Lisboa, e que se chama, precisamente, Mr. Lu. Quando vai a esse restaurante, e isto é uma coisa que já acontece há alguns meses, segundo os seus próprios relatos, esta família rejeita a ementa em português e pe­de a que vem escrita em mandarim. Não porque conheça a língua, bem pelo contrário. Patavina.

Essa ementa que a família Araújo não consegue decifrar é o passaporte para a aventura que será para eles essa refeição: esco­lhem ao calhas, apontando para os caracteres chineses, para se surpreenderem com o que virá por aí. E provam, provam tudo. Se­jam pernas de rã ou uma simples beringela, estão dispostos a ar­riscar. Atiram-se para o desconhecido, sabendo que o máximo ris­co que correm é não gostar do sabor. E, no mínimo, ganharão pe­lo menos mais esse pedaço de mundo. Para contar como foi.

Da história do senhor Lu, ou Zhiaming Lu, o premiado cozinheiro chinês que veio para Portugal por amor, lavou pratos, fez comida clandestina até abrir o restaurante com o seu nome que é o seu orgulho, já falarei. Tem ingredientes de sobra para uma ser uma excelente história jornalística, daquelas com moral e tudo. Agora quero deter-me mais um pouco na atitude da famí­lia Araújo. Tão importante abertura de espírito merece aplausos, não só pelo que representa por si própria como pelo contraste que faz com outras, tacanhas – tão comuns, infelizmente, mesmo em Portugal, país de gente que partiu para os quatro cantos do mundo. É também uma lição para os que querem fechar-se nos seus cantinhos, proteger-se do que aí vem. Os que odeiam inves­timento chinês ou mercearias asiáticas.

A tradição portuguesa permite também, e ainda bem, o contrário. Os que experimentam os pratos do senhor Lu de olhos fechados, ou sorriem quando veem os cada vez mais frequentes grupos de chineses pelas ruas de Lisboa, sem associar a esse acon­tecimento perdas de poder ou um perigo… asiático, mas apenas o mundo a seguir o seu curso, de trocas, misturas, enfim, futuro. Is­to exige um grau de confiança no desconhecido que só os povos cosmopolitas costumam ter, e os que o têm, disso tiram todas as vantagens. Foi essa mesma curiosidade, e a conivência de muitos que a tinham, que permitiu que, durante anos, o senhor Lu pudes­se ter um restaurante clandestino, a coberto das autoridade e da toda-poderosa ASAE.

E voltemos a ele, Lu, o cozinheiro, esse de que fala o títu­lo da peça. Quando o Estado chinês, na sua habitual firmeza e pouca atenção aos interesses individuais, fez passar uma estrada sobre a casa dele, em Yantai, na região de Shandong, ele decidiu mudar de vida. E veio para Portugal, onde estava a família da mu­lher que amava. À vista desarmada dos que identificam ameaça com olhos em bico, Lu era igual a todos. Só que não era. Havia uma chama debaixo daquela resignação com que lavava os pratos que tinham servido arroz chau-chau e outras escolhas banais em me­nus extropiados. E um dia ele haveria de recuperar aquilo que era a melhor cozinha chinesa, na qual tinha sido premiado. E fê-lo. Lu atirou-se para fora de pé. Os que o fazem sabem que têm de nadar, nadar, nadar. E é assim que avança o mundo.

[Publicado originalmente na edição de 9 de novembro de 2014]