Saudades de uma revolução que não fiz

Notícias Magazine

«Eu queria tanto ter vivido aquele dia»… dizia uma amiga minha, ontem, enquanto postava músicas revolucionárias no seu Facebook. Uma amiga de geração – ainda não fez os 40 que o 25 de Abril faz esta semana. E eu pensei que a percebia perfeitamente. Que quando chega esta altura do ano, eu também me torno uma revolucionária frustrada. É abril de primavera, quando o cheiro das flores que despontam nas árvores se torna, em si mesmo, uma revolução anual. Quando o calor traz viço e força e a alegria inevitável dos recomeços. É nesta altura, sempre, sempre, que se torna mais premente para mim o quanto eu gostava de ter vivido esta data. Vivido mesmo, eu que, com dois anos, era um ser inconsciente que o mais revolucionário que terei feito foi cerrar o meu punho minúsculo e dizer que o povo unido jamais havia de ser vencido, ou terei cantado, talvez, que a gaivota voava sem perceber exatamente o que isso queria dizer.

Quem viveu o 25 de Abril – quem o fez pelas suas mãos, ou quem o viu acontecer ante os seus olhos – não compreende a frustração da minha geração, da anterior e das seguintes, por este azar histórico. Não é por acaso que a brincadeira do «onde é que estava no 25 de Abril?» se tornou tão importante. Porque esse é o momento que define o resto. O futuro de Portugal que nós hoje vivemos. E o futuro é sempre mais importante para quem tem passado. E quem não o tem olhará sempre de outra maneira para o seu presente. E, caramba, no nosso caso, foi por tão pouco! E é também por isso que custa mais. Somos a primeira geração que não o viveu, e, também por isso, levámos com ele por tabela. Com o entusiasmo fresco, a força virgem, com as palavras de ordem a dominar as vidas de toda a gente e as discussões acesas de quem não as tinha tido durante muitos anos. O calor das discussões quando tudo era muito politizado e havia esperança de que Portugal havia de ser um país diferente.

É esta a questão. Do que eu tenho pena é de não ter vivido essa esperança. Eu não queria, obviamente, as dores da censura, as agruras da polícia política, o medo da clandestinidade. (Bem…Talvez eu, que vim a ser jornalista, quisesse também ter vivido esse passado emocionante e perigoso, mas isso, compreendo, são contas do meu rosário.) Agora, o que eu queria mesmo era o tempo em que as promessas ainda estavam por cumprir, tanta coisa ainda estava por acontecer, quando havia a inquietação do «não sei ainda», como cantava o José Mário Branco. Eu queria essas canções que enchiam almas. Quando ainda não havia as respostas, só as perguntas todas. As que vieram revelar-se negativas. E os sonhos, na sua maioria, desfeitos, porque não eram propriamente sonhos, eram utopias.

Eu queria esse tempo em que ainda não havia a frustração do não termos conseguido. Quando ainda não havia a certeza da cauda da Europa para este país que, nesse dia «inteiro e limpo», amanheceu e emergiu da «noite e do silêncio», como disse tão bem a Sophia de Mello Breyner, no mais belo poema sobre a revolução. Eu queria essa madrugada. Eu queria ter esperado essa madrugada, e, já disse, até queria o sofrimento que essa madrugada cortou, para poder senti-la mais. A conjugação dos dois, do sofrimento e da alegria, esse é o torvelinho de emoções em que se formam as pessoas, em que as gerações se superam, em que os países dão saltos. Esse é o tipo de mudança que marca. E é dessa marca que eu sinto falta.

[Publicado originalmente na edição de 20 de abril de 2014]