Que grande e belo livro

Notícias Magazine

Tinha ideia vaga de André Brun (1881-1926), sabia-o humorista, autor de duas peças de teatro que já depois da sua morte seriam guião para filmes (A Vizinha do Lado e A Maluqui­nha de Arroios) e que escrevera um livro de crónicas sobre a I Guerra Mundial, A Malta das Trincheiras. Título popularucho, mas vou dar-me conta de que a má promessa da capa envolvia uma pérola. Desde logo, no sub-título Migalhas da Grande Guerra: 1917-1918, se a moldura indicava onde tudo se passara, a primeira palavra, migalhas, anunciava como tudo iria passar-se: o próprio do jornalismo é contar o infinitamente pequeno para percebermos o mundo. E é isso que é feito ao longo das crónicas. Que belo e grande livro, este de André Brun (agora reeditado pela Guerra & Paz).

Quando ele partiu para a guerra, para a Grande Guerra, já não era rapaz, tinha 36 anos, era capitão, e tinha uma carrei­ra conhecida nos teatros lisboetas como autor de peças ligeiras. Partiu com uma farda, a de humorista, que geralmente se despe quando se vai passar anos na lama e com o inimigo tão próximo que se ouve a jogar à bisca, ou lá o que os boches jogam. O co­mandante do batalhão de Infantaria 23 e os seus homens – aos quais chamará lãzudos, como os franceses serão poilus (peludos) e os ingleses, tommies – fazem parte do Corpo Expedicionário Português, chegados tarde à guerra e metidos no setor inglês, no norte de França. Coube-lhes guardar 18 km da frente, nem Lis­boa-Cascais, mas não é pouco, é enorme: quanto mais estreita a cova, maior a probabilidade de lhe cair um obus. Brun vai brin­car: «Esta guerra é aquela que melhor se adapta ao espírito por­tuguês.» Porque paradinha, a aguardar. Ele faz sarcasmo com os amanuenses dos quartéis-generais que continuam no mesmo que nas repartições pátrias, escrevendo tolices encriptadas: «Em referência à nota nº X lembro que o disposto na alínea a) do O.S….» Mas enternece-se com o soldado na frente, sentado numa ruína a «fingir que pensa e a ouvir crescer a barba.»

Destes, dos lãzudos, ele diz: «Acompanhei bem de perto essa arraia-miúda para a não amar.» A noção de distância é impor­tante, porque ela é questão: «Para se desenhar em termos um ato heróico é preciso pelo menos um recuo de duzentos quilómetros.» Essa distância, André Brun, que viveu a guerra na linha da fren­te, não teve: «De perto, a heroicidade confunde-se com coisas que de heróico não têm a mínima parcela.» Ao ir da terceira linha, onde já caem obuses, passando pela segunda linha e chegando à linha da frente, calcando lama ou toscas passadeiras, chega-se ao inferno? Que nada! É que à frente há a terra de ninguém, falso nome, porque a noite («picada de estrelas e lavada de luar») é atra­vessada por atamancadores, que vão recompor o arame farpado e os parapeitos das trincheiras, e por patrulhas de ambos os lados que se encontram sem nenhum deles o querer. Quando regressam ao que seria um horror para os paisanos que somos, os notívagos da terra de ninguém suspiram de alívio, dizendo aos sentinelas: «Vocês, como estavam aqui muito descansados na primeira linha…» Como se a trincheira fosse hotel. Uma noite, o nosso capitão acorda com um rato a dançar em cima da barriga. «O que é isso?», pergunta-lhe o camarada, capitão inglês. André Brun informa-o e o outro diz: «No comfortable», vira-se e dorme.

Os homens barbeiam-se de cor, sem espelho. Os lãzudos habituam-se e um, que é apanhado a mirar por cima do parapeito, explica-se: «Para ver de onde ela vem, meu capitão.» Ela, a música da metralhadoras, na pesca cega ao homem, a morte a entreter-se. E no meio deste dia-a-dia, André Brun tem tempo de ver, à luz do poente, que «um grande cavalo preto arrasta o arado sobre o qual se senta, cachimbando, um velho de cabelos brancos.» Um camponês flamengo prosseguindo a vida, cercado de campo­neses, que tinham vindo de longe, encurralados à espera da morte.

Publicado originalmente na edição de 14 de setembro de 2014