Pesos-pesados

Notícias Magazine

Não sei se a vida não fará de propósito. Tem por costume en­viar-nos pesos-pesados que pensamos não conseguir aguentar. Os músculos fraquejam, pouco habituados a um esforço assim intenso, que parece não aca­bar nunca. Às vezes parece que a vida pensa que é um instrutor de fitness, um personal trainer que nos quer levar ao limite para nos ver ultrapassá-lo.

Será esse o seu objectivo maior – fazer-nos ultrapassar os limites da nossa força para ressurgirmos cada vez mais fortes e fortalecidos? E quem lhe disse que todos nós queremos ter músculos salientes e bem definidos? Se calhar, alguns prefeririam não ter de suportar tanto peso que nos é colocado, mesmo sob pena de não desenvolvermos uma musculatura tão apurada.

Mas a vida é um instrutor rigoroso e impiedoso, que nos vai buscar à cama pela orelha e nos arrasta até ao ginásio para mais um dia de treinos. O que vale é que a maior parte das vezes já prevemos o que o dia nos reserva, em termos de esforço. Mais flexão, menos flexão, levanta-se um peso aqui e acoli, sua-se um pouco e daqui a nada já são horas de terminar, arrumar as coisas e ir descansar.

No entanto, tal qual aquele professor torcido que tivemos na escola, um dia chegamos ao ginásio a esfregar os olhos, ainda tontos de sono, e já a vida se encontra sentada, de perna cruzada, com uma cadeira vazia à sua frente. “Vamos fazer um teste surpresa”, diz. “Mas eu não estou preparada”, digo, en­quanto me sento devagarinho, como quem tenta perceber se aquela cadeira é mesmo para si. A vida encolhe os ombros. Às vezes, faz um sorriso pelo canto da boca, meio condescendente, meio trocista. “Na vida, temos de estar sempre preparados para o que der e vier”, responde, com ares de velho sábio. O que me deixa ainda mais atravessada. “Bolas”, penso, “mas não poderia ter dado uma pista do que aí vinha? Com certeza, isto deve ter andado a ser preparado há algum tempo, a aferir pela solenidade da coisa”. Nada feito. Assim são as regras do jogo que a vida me vai explicando. Diz-me que muito do que traz de bom e de mau vem de supetão. Sem aviso prévio. E nestes momentos de teste não temos outra opção senão aplicarmos o que temos vindo a aprender para ultrapassarmos as dificuldades que a vida nos coloca.

Muito bem. Ou muito mal. Primeiro, muito mal. Não percebo nada do que se passa, do que me é pedido. Fico confusa e agitada. Não gosto disto. Não gos­to de não ter controlo e de navegar às cegas. Mas a que conhecimentos anterio­res se refere a vida, se o que nos pede é que enfrentemos dificuldades com as quais ainda não nos deparámos?

Depois, passado o choque inicial, começo a lembrar-me das ou­tras vezes, dos testes anteriores. Percebo que depois da negação de que aquilo esteja a acontecer, instala-se o modo sobrevivência, que faz de nós MacGyvers, peritos em encontrar a solução para um problema que nos parecia irresolúvel com aquilo que tenhamos mais à mão. Uma espécie de improvisação. E de im­provisação já entendo um pouco. Como na música, a improvisação é a utiliza­ção de elementos aprendidos anteriormente para a criação de um elemento no­vo, adaptando-o à estrutura presente e ao contexto em que se insere. A música, uma e outra vez, a salvar-me nas horas mais difíceis. Não é à toa que sempre que vou ao ginásio a levo comigo. Faz-me parecer que o esforço não foi tão grande e alivia-me as dores, depois.

Um dos truques para sobrevivermos a momentos difíceis é encontrarmos al­go que ajude a amenizar as dores de crescimento e as armadilhas que nos são coloca­das no caminho. E aproveitar bem os espaços de descanso, enquanto a vida está bem–disposta e nos podemos divertir como se não fôssemos morrer um dia.

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA

[Publicado originalmente na edição de 13 de Abril de 2014]