Outras mesas, outros Natais

São alguns dos mais reputados chefs estrangeiros a cozinhar em Portugal. Pedimos-lhe os pratos de Natal dos seus países de origem, acabámos a levar as memórias ao extremo. Nestes pratos há histórias de alegria e tristeza, neve e praia, picante e gulodice, guerra e paz.

Vincent Farges
O triunfo do chocolate
Para Vincent Farges, o chef francês que lidera a cozinha da Fortaleza do Guincho, Natal é chocolate. E é das crianças. Mesmo que as crianças já sejam adultas.

Da última vez que Vincent Farges, 41 anos, conseguiu passar o Natal com a família, caiu um nevão épico na noite de 24 de dezembro. Foi há meia dúzia de anos. Os Farges são naturais de Lyon, em França, mas nesse ano a festa tinha-se transferido para Hamburgo, na Alemanha, onde vive o irmão do cozinheiro francês. Na manhã de dia 25, as crianças acordaram cedo, toda a excitação transformada em corrida até aos presentes. Vincent e o seu irmão olharam pela janela e não precisaram de dizer nada um ao outro. Vestiram-se e correram para a rua. E então começaram a fazer uma batalha de bolas de neve que os deixou encharcados, e à qual acabariam por se juntar os miúdos. Dois trintões, a brincar como na infância. E isso, para ele, é que é Natal.

Isso e passar o dia na cozinha, a ver a mãe fazer bolos, a rapar com os dedos a massa das tortas e o chocolate do recheio. «O tronco de Natal era o auge a que podíamos aspirar, eu e os meus irmãos.» Uma receita simples, bolo e chocolate, mas uma alegria desmesurada para os mais novos. «Havia aquela coisa estratégica de esperar para comer a fatia certa, aquela que estava enfeitada com a figura de um Pai Natal ou um Boneco de Neve». Por mais que queria fazer uma versão gourmet do tronco, não pode. Estão lá todas as alegrias pueris.

Na Fortaleza do Guincho, o restaurante com uma estrela Michelin que o francês conduz em Cascais, serve-se jantar na noite de Consoada. Ele tenta reservar as férias para esta altura do ano, ainda que tenha de deixar um menu preparado. «Ofereço o melhor de dois mundos: há bacalhau e há foie gras na ementa. E há um tronco de Natal no final da refeição, em duas versões diferentes. Uma com rum e outra sem.»

Este ano vai viajar para a Alsácia, passar a quadra em família. Há uns anos passou-a na terra da mulher, brasileira habituada ao calor dos trópicos, e não conseguiu gostar. «Preciso tanto da neve», suspira, «que até gostava de levar o meu filho um ano destes à Lapónia.» Já pensou oferecer ao rapaz o mesmo presente que foi a sua alegria maior, quando era gaiato: um conjunto de cozinha que a avó lhe comprou, com panelas e um pequeno fogão. Mas faltaria sempre o forno. E, sem ele, como é que faria um tronco de Natal?

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Hans Neuner
O pato que se come à pressa
Para o austríaco Hans Neuner, chef do algarvio Ocean, há todo um ritual em escolher o pato que se cozinha no dia de Natal. Mas, no dia de comê-lo, ninguém quer passar tempo à mesa.

Tem 38 anos e há 22 que passa o Natal a cozinhar, mas para os clientes. Este ano, Hans Neuner vai finalmente regressar a casa – e a casa são as montanhas do Tirol, na Áustria. «Ainda não sei como vai ser o almoço, porque os meus pais têm um restaurante tradicional que enche nesse dia.» Ri-se. «Há tantos anos que não compro prendas, estou sempre a trabalhar. E agora, que tenho oportunidade de ir a casa, não tenho lá ninguém – nem para compartir a refeição, nem para trocar presentes.» Ri-se outra vez. Neuner é um tipo bem-disposto.

O homem que lidera a cozinha do Ocean, um dos dois restaurantes do Algarve com duas estrelas Michelin (o outro é o Vila Joya, do também austríaco Dieter Koschina), aplica o conceito de divertimento a tudo o que faz – e também à cozinha. Os seus menus são isso: surpresas, alegria, diversão comestível, como se fosse Natal todos os dias. Mas a receita que nos traz é o mais tradicional possível: pato, a estrela das mesas alpinas, cozinhado em duas versões. «Como nas casas tirolesas e na Bavária.»

Primeiro é um pato tradicional no forno, recheado de chalotas e tomilho. É servido com couve roxa cozinhada em vinho do porto e canela, mais uns dumplings de batata com manteiga de noz e vagens de ervilha salteadas. «Trincha-se o peito e reservam-se as pernas, que são servidas num segundo prato.» Esse vai à mesa com uma espécie de migas de couve roxa e bacon, mais cogumelos e foie gras para acompanhar. Pratos da terra, para atenuar o frio tirolês. «Mas a verdade é que ninguém quer passar o dia a comer isto. Porque na véspera recebeste os presentes e estás mais interessado neles do que na comida.»

Hans lembra-se de duas prendas marcantes: uma espingarda pressão de ar e uma prancha de snowboard. Em ambos os casos, a alegria adolescente e inteira. «E nessa altura quem é que consegue ficar sentado confortavelmente a comer o pato em família?» O primeiro prato ainda ia, comido à pressa. Mas a segunda versão ficava reservado aos adultos, que os mais novos já andavam a experimentar as novidades na neve. «É engraçado, nas famílias há um ritual enorme em volta do pato. Vamos às quintas escolher o animal umas semanas antes, cozinha-se durante umas boas horas mas, depois, na altura de o comer, ninguém parece querer saber assim tanto dele.»

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Ljubomir Stanisic
Um bocadinho de sangue
Para o sérvio Ljubomir Stanisic, do restaurante lisboeta 100 Maneiras, nada simboliza melhor o Natal do que o ritual de esquartejar o porco. Memórias à mesa, as agradáveis e as outras.

«Não gosto do Natal», assim de caras. «Por causa do consumismo desenfreado, porque está toda a gente com pressa e não consegue apreciar as refeições.» Segundos depois de dizer isto, uma mulher entra dentro do restaurante 100 Maneiras, em Lisboa, e volta imediatamente para trás, stressada. Nem de propósito. Em Sarajevo e em Belgrado, onde cresceu, não se trocavam presentes, não havia este nervosismo todo. «Era com comida, e apenas com comida, que se fazia a festa.»

O prato dos dias de festa é sarma, carne e arroz enrolados em couve fermentada e cobertos com iogurte grego. «Come-se no Natal, nos casamentos e nos batizados. É um prato especial e a minha mãe faz sempre esta comida, mesmo que estejamos em Lisboa.» Também se serve bacalhau à mesa, que a mulher e o filho são portugueses, mas Ljubomir gosta de tratar a carne para as festas – um borrego, ou um cabrito ou um porco. «É por isso que gosto tanto do Alentejo, zona onde ainda se fazem as matanças dos animais quando chega o frio.» Tratar a carne, esquartejá-la e dividi-la em peças faz parte da sua memória de Natal sérvio. «Isso e os tiros que as pessoas disparavam para o ar nos dias de festa. Era uma loucura.»

No dia de Natal faziam-se pelo menos oito doces, vários pratos, e a sarma era presença obrigatória nas casas de família. «Num país dividido pelas religiões cada uma tenta mostrar os seus rituais de forma óbvia, por isso eram dias de agitação», recorda. A Navidade era um reboliço, mas o dia de Reis era festa redobrada. «As pessoas andavam de casa em casa a visitar-se e o primeiro visitante da manhã era o padrinho da família no ano seguinte, recebia comida e presentes, era o polaznik.» Uma benção, portanto.

Depois veio a guerra e, aí, as pessoas deixaram de sair à rua, com medo dos snipers. «Passávamos fome nos dias anteriores, mas tentávamos guardar alguma coisa de especial para o Natal.» A sarma continuava a vir para a mesa, ilusão de normalidade e tréguas para os dias difíceis que a ex-Jugoslávia viveu nos anos noventa. Ljubomir chegou refugiado, há 17 anos. Conseguiu construir a vida, mas não conseguiu aprender a gostar do Natal.

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Jesus Lee
O picante do menino Jesus
Na Índia, o Natal é festa para a noite toda e acaba na praia. O cozinheiro do Jesus é Goês diz que uma criança só se torna crescida quando começa a comer sarapatel. Picante, muito.

Em dezembro, os cristãos da Índia matam os porquinhos, guardam as partes menos nobres, reservam o sangue e, uma semana antes da Consoada, cozinham tudo. Depois, é deixar os sabores apurar. Natal nos trópicos é especiarias, pois claro, e é o sarapatel – um prato feito com as miudezas do animal, o seu sangue, uma mão-cheia de temperos e muitas malaguetas. «As crianças só começam a aguentar o sabor forte quando chegam à escola, aos cinco, seis anos», diz Jesus Lee, cujo restaurante lisboeta é o epicentro fundamental da cozinha goesa em Lisboa. «Está bem que se vão habituando desde sempre – seja pelo que consomem quando ainda estão na barriga da mãe ou durante a amamentação. Mas aguentar um sarapatel já requer outro hábito.»

É Natal sem prendas, mas com muita festa. À tarde juntam-se os coros de crianças nos largos das igrejas, cantam canções da quadra. «Depois há a missa do galo, por volta das oito da noite, e a isso ninguém falta. Mas a seguir é que começa a festa.» Cada família ruma a casa, para dar cabo do sarapatel. Uma receita diferente para cada família, toques pequenos no tempero ou nas carnes, que fazem toda a diferença. Jesus, por exemplo, não usa mioleira nem pata. «Eu faço com fígado, orelha, coração, língua e entremeada.»

Há festas por todo o lado, e o ritual é percorrer o maior número delas. «Andamos pela cidade a comer e a beber e a noite termina sempre com as pessoas a tomarem o pequeno almoço.» No dia 25, por isso mesmo, não se prepara banquete. «Fazem-se uns petiscos e levam-se para a praia.» Jesus emigrou para Portugal aos 14 anos, hoje tem 35. Veio sozinho e, aqui, sempre quis passar o Natal sozinho – ou então a trabalhar no restaurante. Há uns anos voltou a casa e a família, que já tinha ouvido falar do seu sucesso em Lisboa – primeiro quando tomava conta dos tachos no Tentações de Goa, depois quando abriu Jesus é Goês -, pediu-lhe que tomasse conta do sarapatel. A noite desse 24 de dezembro foi a melhor de sempre. O pai elgiou-lhe o cozinhado à frente dos vizinhos todos, dizendo que era o melhor que alguma vez tinha provado. «Nunca fui tão feliz.»

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Camilo Jaña
O fascínio do cru
Tártaros e ceviches, pratos leves de verão. E depois um merengue de vinho. Para o chileno que comanda os destinos do Cafeína, no Porto, não há nada mais quente do que o Natal.

É verdade que também se faz perú no Chile para a noite de Consoada. «Mas ninguém lhe toca», diz Camilo Jaña, 35 anos. «Importámos a tradição dos Estados Unidos, mas ninguém consegue comer um prato quente de Inverno nos dias de calor.» Então as famílias desdobram-se a cozinhar o mais fresco que existe: peixe e marisco. Podem cozinhá-los em empanadas ou tortillas, mas «não há nada melhor do que servi-los crus.» E então fazem-se tártaros de atum ou salmão, ceviches de garoupa ou camarão, com as proteínas marinadas em lima. E é isso que vai para a mesa na noite da Consoada chilena. Mas também se acendem brasas, e assa-se carne no churrasco.

Camilo está em Portugal há dez anos, é ele o chef executivo de um grupo de restaurantes do Porto que tem o Cafeína à cabeça, mas também os restaurantes Terra, Casa Vasco e Portarossa. Gosta da cidade porque ela lhe lembra Valparaíso, o refúgio dos poetas e pescadores nos arredores de Santiago. E permite-se às misturas – um terço de comida portuguesa, outro de influência chilena, e depois comida do resto do mundo. «Ainda me faz impressão esta coisa de passar o Natal dentro de casa.» O culto da rua é a sua memória da época. «O Natal está para nós como o São João para o Porto.»

O ano passado provou o bacalhau, mas este ano quer ser ele a cozinhar: vai fazer uma garoupa no forno e um ceviche, claro. Mas o que o deixa mesmo feliz é o merengue de vinho tinto, tradição do país para usar na Consoada com leite creme. É a gulodice toda desses dias, o sonho dos miúdos e o deleite dos crescidos. Se lhe faltar em casa, não será Natal.

As memórias da quadra não são todas felizes, houve os dias depois do pai morrer em que preferia ficar com os amigos a rumar a casa da mãe nas montanhas. Lembra-se de umas férias natalícias no deserto do Atacama, em que o calor era tanto que mal conseguia comer. «Fizemos um churrasco, era cabrito. E é exatamente o mesmo que vou fazer aqui, este ano, para o almoço de dia 25.»