Os desastres de Faísca

Notícias Magazine

Ninguém imagina Karl Lagerfeld numa manifestação, pois não? Um estilista tem sempre outras maneiras de se fazer ouvir. A não ser, claro, que faça a sua própria manifestação. Foi o que fez o estilista da Chanel, na Semana da Moda de Paris, no início do mês. Terminou a apresentação da coleção prima­vera-verão 2015 com cartazes e megafones gritando slogans e palavras de or­dem: «Façam moda e não guerra», «Feminismo, não masoquismo», «Sê o teu próprio estilista», «Libertem a liberdade», «Divórcio para todos», ou «Votem. É por vós». E tudo isto, claro, com Kendall Jenner, Gisele Bündchen e Cara Delevingne em cima de stiletti.

Os críticos vão logo dizer que a sociedade de consumo aglutina e anu­la tudo, até o protesto. Lagerfeld contraria esta ideia usando a moda, e a sua ex­traordinária forma de chegar a todo o lado, como arma. Para chamar a atenção, veicular ideias. Este show era uma homenagem à mãe, feminista, em que ele se inspirou. «Pareceu-me que este era o momento para insistir mais um bocadi­nho, outra vez. Especialmente em França, sente-se. A atmosfera não está boa», disse. O mote da coleção de pronto-a-vestir, colorida e de misturas, era: «Faça você mesma, vista-se você mesma.»

A moda é do domínio do simbólico. Sempre. As roupas que usa­mos estabelecem um diálogo imediato com o mundo e dizem muito sobre o que somos, o que fazemos, o que pensamos. A nossa imagem pública é a primeira de­finição de nós próprios que apresentamos aos outros. E é também o nosso meio de comunicação para expressar as nossas crenças, religiões, ideias e filiações políticas. E vice-versa – daí que os sistemas de regulação do mundo, a religião, a política, a economia, o tentem sempre controlar, definindo: estes são dos nos­sos, estes não são. Ou seja, a mais velha forma de política.

Um estilista não é apenas um criador de trapinhos. O seu sucesso ou o seu falhanço mede-se muito na forma como apreende o ar dos tempos. Yves Saint Laurent ajudou a promover a liberdade de pensamento e a igualdade, nos anos 1960, com a utilização de smokings para mulheres. Stella McCartney traz as suas crenças políticas para as coleções de tecidos sustentáveis e com a cadeia produtiva controlada, da mão-de-obra à passerelle.

No passado fim de semana, na ModaLisboa, Filipe Faísca perdeu uma ótima oportunidade para dar este salto. A sua coleção primavera-verão 2015 foi apresentada por modelos… de niqab. As modelos apareciam de minissaia e cabeça tapada com o véu islâmico, apenas com os olhos descobertos e fortemente maquilhadas. Uau, pensei. Uma declaração política internacional – civilizacional, diria mesmo – na ModaLisboa? Isto era coisa para aparecer em todos os meios de comunicação internacional. Espe­rei pelo final do desfile. Pela mensagem que havia de dar forma ao golpe ide­ológico – explícita, em palavras, ou implícita, por exemplo, com o retirar de todos os lenços de uma vez…

Nada. Veio o próprio Filipe Faísca dizer que queria transmitir a ideia de uma «mulher pop», e o prazer de explorar «contrastes culturais» e não tinha pensado em questões «políticas e religiosas». Desculpe? Ninguém pode fazer desfilar uma modelo de biquíni, pernas nuas e cabeça tapada sem pensar que está a transmitir uma mensagem política. Não nos tempos que correm. Em qualquer passerelle do mundo será sempre uma declaração de intenções – apoio ou crítica. Impossível ficar no meio, sob risco de ser, apenas, tonto. Por muita celeuma que haja à volta do assunto, o niqab está indissociavelmente ligado à questão da liberdade e da igualdade, fundamentais para as mulheres. No mun­do inteiro como no Pátio da Galé, mesmo que, aqui, este desfile tenha sido rece­bido com os mesmos sorrisos anestesiados do costume. Talvez seja este o pro­blema dele – qualquer artista é formado pelo seu público. E o de Filipe Faísca, pelos vistos, não tem ponta de espírito crítico.

Publicado originalmente na edição de 19 de outubro de 2014