Observar aves raras em Portugal

Paulo Spranger/Global Imagens

Para os turistas estrangeiros, já não somos apenas o país do sol, praia e golfe. Há cada vez mais amantes da natureza que vêm para… observar pássaros. O turismo ornitológico é um nicho de mercado com muito potencial para crescer, que todos os anos atrai birdwatchers à procura de raridades que não existem nos seus países.

Há vinte anos, quando Frank McClintock decidiu tornar-se promotor e guia ornitológico, não tinha a casa cheia como tem hoje. À mesa de jantar, 15 turistas estrangeiros, quase todos ingleses, capazes de atravessar o mundo para ver aves. Frank e a mulher Daniela estão à cabeceira da mesa, rodeados pelas duas filhas . É neste ambiente familiar, intimista, que o casal, ele inglês e ela austríaca, recebe os clientes na Quinta do Barranco da Estrada, uma casa rodeada por água, flores e vegetação luxuriante, que Frank converteu em turismo rural no concelho de Odemira.

O entardecer aqui ganha tonalidades mágicas. O sol, apesar de baixo a esta hora, atravessa uma janela que ocupa uma parede inteira da sala de jantar. Quando os dias estão assim, primaveris, esta janela fica sempre aberta, deixando entrar o cheiro intenso a flor de laranjeira misturado com jasmim, o chilrear dos pássaros e o som de um riacho. Aberta, esta janela é um quadro vivo de onde se vê, a alguns metros de distância, a lagoa formada pela barragem de Santa Clara.

Para os turistas que estão sentados à mesa da família McClintock, a saborear a sopa de alho-francês com queijo parmesão feita por Daniela, não é irrelevante este cenário idílico, mesmo que o isco que os traz aqui seja a observação de aves. «Já dormi em muitos hotéis, visitei muitos países, mas acho que não exagero se disser que isto é um paraíso», diz George Kerwin. O britânico de 60 anos, ex-empresário reformado da indústria metalúrgica, tem razão. Se o paraíso existe, mora aqui e essa é uma mais-valia que a cada ano que passa atrai mais birdwatchers à Quinta do Barranco da Estrada. «Neste momento, oitenta por cento dos nossos hóspedes são birdwatchers », revela Frank. O galês Mathew Cohen, 36 anos, informático, é outro. Ganhou o gosto pela observação de aves aos 6 anos, na escola, e depressa a tomou como uma paixão. Hoje, é também um vício que mata nos períodos de férias, nem que tenha de prescindir da companhia da namorada. «Ela está a fazer praia na Turquia. Vai lá estar oito dias, tantos quantos os que eu vou ficar aqui.» E ri, antes de soltar o desabafo: «A minha namorada está num hotel com duas mil pessoas e eu estou a partilhar esta deliciosa comida com um pequeno grupo divertido que conheci há umas horas. Sabem, em 11 anos de relação, a minha namorada ainda não percebe o meu fascínio pelos passarinhos.» Mas os pais de Mathew sim. Peter e Margareth Cohen são observadores de aves graças ao filho. Por isso vieram com ele. «Quando chegava a casa depois de uma saída ao campo falava, falava, mostrava as fotografias dos pássaros e pedia para comprar livros», diz Margareth. «Uma obsessão. E nós acabámos por nos apaixonar por isto também.» Apaixonaram-se tanto que agora já seguem os roteiros mundiais da observação de aves, sempre com o filho. «No ano passado estivemos num safari no Gabão. Vimos elefantes, leões, tigres e, claro, muitas espécies de pássaros», acrescenta Mathew.

É a primeira vez que os Cohen estão em Portugal. Souberam que o Alentejo era uma das melhores regiões para observar aves através de um dos sites de Frank: «Assim que vimos, não hesitámos.» Mathew não disfarça a ansiedade na voz. Daqui a umas horas vai meter-se a caminho com Frank e o resto do grupo. Quem contrata os serviços de Frank McClintock como guia ornitológico tem de acordar de madrugada para fazer-se à estrada. Existe uma razão para madrugar. «Há aves que só se mostram na primeira hora de sol, a hora a que os ingleses chamam heat-haze », diz Frank «É muito importante estar no sítio certo à hora certa.» O casal de escoceses do grupo sabe isso. Nessa manhã, eles já tinham feito o percurso com Frank e testemunharam a vida ornitológica nas planícies alentejanas, no momento em que o Sol nasce. Eram 04h50 quando, ainda ensonados, John e Katelyn Wilson, médicos aposentados, apareceram na receção. A hora de saída é tão importante que, para evitar atrasos, Frank bate à porta dos hóspedes vinte minutos antes. Batida forte, impossível de ignorar até por quem tem o mais pesado dos sonos.

Ao fim de uma hora de carro chegaram a Castro Verde, onde beberam um galão e comeram uma sanduíche de queijo, a primeira refeição do dia. Embora o Turismo de Portugal não tenha dados sobre o impacte do birdwatching na economia local, tudo leva a crer que não seja de desprezar. Frank faz questão de levar os clientes aos cafés e tascas do interior alentejano porque é «uma forma de deixar algum dinheiro nestes negócios locais». É o pequeno-almoço no Café Campo de Ourique, em Castro Verde, é uma garrafa de água na taberna da Josélia, na aldeia de Corte Pequena, e antes do regresso a casa é um café com leite no tasco do Afonsus, na aldeia de Penilhos. Lurdes Serpa Carvalho, investigadora do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, está a terminar uma tese de doutoramento sobre os serviços dos ecossistemas e seu valor económico em Portugal continental e, embora não possa adiantar números sobre esse impacto na economia local, confirma que «ao valor natural dos locais visitados pelos birdwatchers associa-se, de facto, um valor económico para as populações aí residentes».

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Reformados e com dinheiro

O almoço, como acontece sempre nas saídas organizadas por Frank, foi no meio do campo: uma sanduíche de queijo e fiambre com pimento vermelho e, como sobremesa, umas barras de chocolate. Tudo preparado por Daniela. Nunca uma refeição tão simples soube tão bem a John e Katelyn. Para observar aves, eles não se importam de comer «qualquer coisa fria, leve e rápida», sentados no chão. Isto apesar de serem «bons garfos» e «apreciadores de bom vinho, boa comida e bons restaurantes», uma caraterística comum aos birdwatchers estrangeiros que todos os anos chegam a Portugal. Também são, na esmagadora maioria, reformados, têm mais de 60 anos, formação escolar elevada e poder de compra médio/alto e alto, de acordo com o perfil traçado pela Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA).

A rota que Frank definiu para percorrer com o casal de escoceses engloba pontos de observação onde sabe que vai encontrar aves que não veem com facilidade no seu país. Ou noutros no Norte da Europa. Isso é, aliás, o que move todos os birdwatchers . Depois de Castro Verde, seguiram para Nossa Senhora de Aracelis, passaram por Corte Pequena e terminam a jornada em Penilhos, concelho de Mértola . Parece pouco, mas este percurso leva dez horas a fazer. Apesar do cansaço, os escoceses estavam radiantes. Viram o tartaranhão-caçador, o chasco-ruivo, o cortisol-de-barriga-negra, a águia-imperial, a águia-de-bonelli, a águia-real, a rola-brava, entre 50 outras espécies, contabilizadas por Frank. Mas num dia bom – com sol e sem vento – «é habitual encontrarmos entre 65 e 70 espécies no Alentejo». Algumas, como estas, estão em risco por causa dos inseticidas aplicados nas culturas. Os insetos são a base da alimentação de aves e se não se mudar o modo de produção agrícola, algumas espécies poderão desaparecer desta região. Para o biólogo e membro da SPEA, Domingos Leitão, «a principal ameaça é a pressão direta sobre os habitats». Por esse motivo, acrescenta o técnico, «a águia-imperial, ibérica, a água-de-bonelli, o abutre-preto, a abetarda, o sisão, a freira-da-madeira e a freira-do-bugio (na ilha da Madeira) e o priolo (nos Açores), são algumas das muitas espécies em Portugal ameaçadas de extinção.»

«Vejam ali, ali, à direita daquelas árvores. Duas abetardas, estão a ver?» Frank parou o jipe e John e Katelyn saíram do carro. Com os olhos nos binóculos, soltaram, espantados, um « uauuuu, it’s beautiful». Nunca tinham visto uma abetarda, uma das espécies mais emblemáticas do Alentejo. Apesar de ser a mais pesada das aves europeias, é dificilmente observável. «É tímida e a população está a decrescer», explica Frank. «Na Europa, encontra-se apenas na Rússia e na Península Ibérica». Em Portugal, o número de indivíduos está a crescer devido à implementação de medidas de proteção, caso único no mundo inteiro.

Às três da tarde era hora de regressar à Quinta do Barranco da Estrada, e ainda a tempo de apanhar o sol do entardecer. A lagoa dos Salgados, em Silves, não estava no percurso, mas, fora das planícies alentejanas, é um dos locais a que Frank gosta de levar os clientes. «É a última lagoa em estado selvagem que resta no Algarve», onde ainda é possível observar várias espécies de aves migratórias. Ainda, mas não por muito mais tempo. É que neste local, consagrado internacionalmente como privilegiado para o birdwatching – onde acorrem e nidificam algumas espécies de aves em perigo de extinção -, está prevista e aprovada a construção de um resort de luxo com três hotéis de cinco estrelas, cinco aldeamentos, um campo de golfe e estabelecimentos comerciais. «Um crime ambiental» que levou o inglês a juntar-se à Plataforma dos Amigos da Lagoa dos Salgados, de que fazem parte 11 organizações, que entre outras formas de luta criou uma petição online , já assinada por milhares de pessoas em todo o mundo.

Três mil portugueses

Há mais de trinta anos que se faz observação de aves em Portugal, mas até há pouco tempo estava sobretudo «associada às atividades de anilhagem e estudo» . Só nos últimos anos é que tem motivado a visita de turistas estrangeiros, sobretudo ingleses, e, em consequência, o aparecimento de empresas e agências de turismo ornitológico. Uma das primeiras foi a Birds & Nature. Surgiu em 2007 e ainda hoje é a única que se dedica exclusivamente ao birdwatching em Portugal. João Jara, fundador e proprietário, diz que o negócio «está a crescer cerca de vinte por cento ao ano, o que é bom tendo em conta a crise atual». Ao contrário de Frank McClintock, que ao longo de vinte anos como guia ornitológico só tem na sua lista de clientes turistas estrangeiros, João também faz programas para portugueses, incluindo workshops . «O mercado nacional ainda não tem expressão, mas noto que entre os portugueses o interesse pela observação de aves começa a despertar.» Se o número de sócios da SPEA equivaler ao número de birdwatchers nacionais, então em Portugal haverá três mil. Muito residuais, se compararmos por exemplo com o milhão e meio de ingleses praticantes desta atividade.

Em Portugal não há publicações específicas sobre birdwatching – apenas a revista Pardela, da SPEA, mas é genérica. Já no resto do mundo, existem às centenas, com destaque para os EUA, Canadá ou Austrália. No velho continente, o Reino Unido é «o país europeu com mais revistas exclusivamente especializadas no setor», explica Roger Riddingnton, editor da British Birds Magazine. A mais antiga publicação de Inglaterra sobre o tema foi fundada em 1907 e vende cinco mil exemplares por mês. Roger não faz ideia por que razão no seu país o birdwatching é uma tradição, mas o português Domingos Leitão acredita que «estará associada ao naturalista inglês Charles Darwin, cujo trabalho terá incutido na população britânica um interessa generalizado pela biodiversidade.»

Até ao final deste ano [2013], João já tem agendados programas para vinte grupos de turistas estrangeiros, com uma média de seis participantes cada um. São programas de um, três, cinco e sete dias. «Os dias únicos são, de longe, os mais requisitados, mas já começo a ter muita procura para a opção cinco dias». Foi essa a escolha de Jane e Richard Palmer, um casal de ingleses de 65 anos, chegados de Cambridge (Inglaterra). É a primeira vez que estão em Portugal e este é o segundo dia de observação. No dia anterior tinham estado no estuário do Sado e ficaram encantados com a diversidade de pássaros, entre os quais a garça-vermelha, o goraz e o papa-ratos (existem ambos em números reduzidos), o carraceiro, o borrelho-de-coleira-interrompida, entre outros. Hoje percorrem o estuário do Tejo e a lezíria.

O tempo é de chuva e corre um vento frio. Mas nada que os impeça de sair do carro para observar melhor uma «lifer». É esta a expressão para qualquer ave que os estrangeiros não encontram nos seus países. Como o melro-azul, por exemplo. «Ali, às 13h10. Estão a ver?», pergunta João. O guia utiliza muito a posição dos ponteiros do relógio para facilitar a localização dos pássaros. Jane e Richard poucas vezes viram um melro-azul e, não vá o passarinho fugir, apressam-se a pegar nos binóculos. Além de binóculos, é essencial ter um telescópio. São equipamentos caros, mas um birdwatcher que se preze não os dispensa: «Os meus binóculos custaram 1800 euros e o telescópio cerca de 2800. São muito bons», garante Jane, acrescentando que «existem outros muito mais baratos e aceitáveis».

Há mais de cinquenta anos que Richard se apaixonou pelo birdwatching . Um gosto herdado dos pais, que também o herdaram dos avós. «Em Inglaterra temos muito essa tradição.» Mas Jane é inglesa e na sua família, que saiba, não há birdwatchers . E ela só o é por causa do marido. «Comecei há quarenta anos, quando conheci o Richard. Ele é fanático por isto. Eu sou apreciadora, mas ele é fanático.» Mas não é só a paixão do marido por pássaros que os leva todos os anos à Índia, aos EUA e a África. Desde que se reformaram – ele era construtor civil e ela professora universitária de Enfermagem -, passaram a dedicar-se a tempo inteiro a uma empresa de birdwaching que criaram há 12 anos, a Hauxton Birding. Hoje em dia, são também as oportunidades de negócio que os fazem observar pássaros em muitos locais distantes de casa. Este ano decidiram vir a Portugal porque, numa passagem por Espanha, ouviram falar do país como um destino interessante para a atividade. «Ficámos espantados, porque não fazíamos ideia de que Portugal era rico em avifauna. Das praias e do sol do Algarve já tínhamos ouvido falar. Das aves, sinceramente, não.» Se Jane e Richard gostarem do que virem por cá, o mais certo é trazerem os seus clientes.

Que o turismo ornitológico começa a ser uma razão para os estrangeiros virem ao nosso país já não é novidade. Falta é saber quantos. O Turismo de Portugal, se tem esses dados, não os revela, mas garante que o setor «é uma das componentes integradas no produto estratégico de turismo de natureza, uma vez que tem ligações muito próximas a outras ofertas, como os circuitos turísticos religiosos e culturais, a gastronomia e os vinhos, o sol e mar ou o golfe», revela uma fonte desse organismo.

Entre os estrangeiros, é geral o desconhecimento de que Portugal tem aves que vale a pena ver e fotografar. Neal Gale e Richard Draper, ingleses, reformados e de 64 anos, também descobriram há pouco o potencial ornitológico português. «Foi apenas no ano passado, numa feira de birdwatching em Londres, que encontrámos o João Jara.» Um ano depois, ei-los no carro de João a percorrer a zona de Mértola, onde estão alojados. Richard é mais experiente do que Neal. Este, só desde que se reformou, há quatro anos, é que leva a observação de aves mais a sério. Diz que é uma forma de estar mais tempo com o amigo de infância. «Ele, sim, é que é louco pelos pássaros. Eu começo a ser, com esta idade. Nunca é tarde para começar, certo?» Richard é um observador desde os 7 anos. «O que mais me atrai nesta atividade é ver as aves nos seus habitats específicos.» Como estas que Richard e Neal querem muito ver durante os cinco dias que vão ficar em Mértola: a aguia-imperial, o sisão, a abetarda e o bico-de-lacre.

«O Alentejo é a nova Toscana»

João Jara e Frank McClintock batem toda a zona a sul do Tejo, em especial o Alentejo, considerado «a nova Toscana» por muitos destes observadores estrangeiros – a região italiana é há muito conhecida como um dos melhores locais do mundo para observar a avifauna do Sul da Europa. Uma forma de dizer que o Alentejo é «um dos destinos portugueses mais procurados». Mas há outros locais de igual valor para o turismo ornitológico. Encontram-se nos parques e reservas naturais, nas ZPE (Zonas de Proteção Especial) e nas IBA (Important Bird Areas, sítios com significado internacional para a conservação das aves à escala global). O Douro internacional, o Tejo internacional, a ria de Aveiro, o estuário do Tejo, o cabo Espichel, Lisboa e a costa do Estoril, o paul do Boquilobo, Castro Verde, Moura, Barrancos, a lagoa de Santo André e da Sancha, a ria Formosa, Castro Marim, a lagoa dos Salgados e a costa sudoeste do Algarve são os locais mais importantes em Portugal. Ainda não integram os roteiros internacionais do turismo ornitológico, mas isso é apenas por falta de promoção lá fora. Por falta de potencial não é com certeza e a economia nacional ganharia se mais turistas soubessem que Portugal é um país de aves raras. Basta fazer as contas a partir dos valores estimados por João Jara e Frank McClintock, que estão habituados a receber turistas oriundos do Reino Unido, França, Holanda, Bélgica, Suíça, Alemanha, Dinamarca, Noruega, Suécia, mas também dos EUA e Canadá. Estes agentes estimam que, numa semana, um birdwatcher estrangeiro deixa em Portugal cerca de 1500 euros, em média. Além disso, o birdwatching tem uma vantagem que o turismo de sol e praia não oferece: não é sazonal. Embora as épocas mais ricas sejam entre março e maio e de setembro a outubro, alturas das nidificações e migrações, a atividade pode ser praticada durante todo o ano.

[Publicado originalmente na edição de 12 de Maio de 2013]