O senhor Voltaire e o século XX: Danças e facas

Notícias Magazine

O senhor Voltaire levanta o braço e diz:

Ainda no século XX, as fábricas invadem o espaço à volta da ci­dade e rapidamente invadem também a pauta da música artificial e a pauta da música natural substituindo, assim, o som do pássaro pelo som da máquina, o som do voo da ave pelo som suave do fu­mo a sair da chaminé.

Há – continuou o senhor Voltaire – no século XX infinitamente mais instrumentos nas fábricas, correctos e funcionais, do que ins­trumentos para fazer dançar os homens e as mulheres. Os gestos úteis e rápidos da mão mergulhados na máquina não são danças – por muito que, ao longe, se assemelhem; de facto, os dedos na fábri­ca são necessários (são os dedos da necessidade) e bem diferentes são dos dedos inúteis de quem dança. Mão necessária e mão desne­cessária em termos funcionais. Só os olhos de quem vê é que preci­sam da mão que dança. Porque essa mão não faz nada, só se mostra.

O senhor Voltaire exclama, logo a seguir:

Uma família é estável quando se contabilizam as energias inter­nas e se percebe que não há cortes de energia entre pais e irmãos, entre a avó e a sua lenta cadeira de baloiço. Tudo está ligado e as fotografias mostram ou não essa ligação subterrânea. Uma insta­lação de energia electricamente afectiva.

O senhor Voltaire pega noutra foto e diz:

Nesta fotografia de 1960 há vinho na mesa e um filho com o pen­teado igual ao do pai.

A velha mulher, com a faca que corta o pão, faz danças sensatas e exactas para que o velho homem, o seu marido, receba na mão o tamanho exacto dessa parte do mundo que se come. Na cozinha, em 1960, é a mulher que tem a faca; e na rua quem tem a faca é o homem. Isto, em 1960.

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[24-11-2013]