O (re)Inventor das formas

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Durante mais de vinte anos, criou acessórios para Ana Salazar. Já trabalhou para Christian Lacroix, tem peças espalhadas pelo mundo e é procurado por colecionadores de arte. Valentim Quaresma não trabalha com diamantes nem pérolas, mas recorre a técnicas de ourivesaria para desenvolver instalações mutantes. Conheça melhor este designer de acessórios e joalharia, cujas peças acabam de ser escolhidas para integrarem a mais recente produção de Lady Gaga, “G.U.Y”.

Não usa anéis, fios ou pulseiras. Nada. Os acessórios que possui resumem-se a uns botões de punho que uma amiga lhe ofereceu. Mais do que um designer de acessórios, Valentim Quaresma é um escultor. Na sua essência é um ourives, um artista de metais e outros materiais invulgares, com uma paixão por peças que cria para a cabeça, que se prestam mais a instalações do que a serem usadas no dia a dia.

No mês passado, Valentim abriu os desfiles da 40.ª edição da ModaLisboa, numa sumptuosa sala dos Paços do Concelho, com lustres e portadas douradas, onde apresentou a coleção Daydream. Os manequins, de corpos seminus, com calças de lycra preta ou saias de couro, evidenciavam peças em cabedal e metal. Foi a primeira vez que teve honras de inauguração de uma passerelle, apesar de ter começado a dar nas vistas há mais de vinte anos, assinando os acessórios das coleções de Ana Salazar – que acabavam quase todos reservados depois de acabar o desfile. Nessa altura, era essencialmente o metal a base das suas criações: prata, latão, aço, alumínio, cobre. Raramente ouro. Com o tempo, porém, tornou-se imprevisível. «A experimentação ocupa grande parte do tempo de desenvolvimento de uma peça, porque os materiais têm qualidades tão próprias que tenho de descobrir formas de as trabalhar. Mas as técnicas são sempre as que aprendi enquanto joalheiro e é isso que eu sou.»

Valentim nasceu em Lisboa há 42 anos. Em miúdo queria ser ginasta. Praticava trampolim e não se imaginava a fazer outra coisa. Mas uma queda aparatosa afastou-o da modalidade e fê-lo considerar outras opções profissionais. A estética punk rock gótica dos anos oitenta do século passado, carregada de acessórios, chamou-lhe a atenção. Aos 16 anos começou a trabalhar numa oficina da loja Linhas Aéreas, onde fazia acessórios de moda. Ingressou na Escola António Arroio e, mais tarde, no curso de joalharia no Ar.Co. Os amigos frequentavam quase todos os primeiros cursos de moda e foi nesse meio que começou a movimentar-se.

E assim, em vez de esculpir piruetas no ar, Valentim passou a dar-lhes forma em metais. Minucioso nas criações, foi apurando as técnicas e, aos poucos, criou uma pequena coleção de peças suas. Tinha tanto de tímido como de ambicioso e, um dia, resolveu mostrar o trabalho a Ana Salazar, ícone da moda nacional na época. Tinha 18 anos. A designer gostou e Valentim saiu do anonimato quando os seus acessórios brilharam pela primeira vez na passerelle em 1989. Foi o início de uma duradoura relação profissional. «Estivemos juntos 22 anos. Foi uma vida.» Concebeu peças que se tornaram imagens de marca, símbolos de um Portugal esquecido, como as cruzes dos Descobrimentos e de Malta ou os galos de Barcelos. A saída da criadora da sua própria marca pôs fim à parceria. «Os nossos universos criativos eram compatíveis, foi estimulante trabalhar em equipa com a Ana. Tudo o que aprendi foi com ela e vou ter sempre saudades desse tempo.»

Mas o que antes era um complemento da coleção passou a ser a própria coleção, e Valentim Quaresma construiu uma carreira e afirmou-se enquanto criador em nome próprio. Em 2004, as peças ganharam a dimensão de esculturas. «Pelo trabalho que tinha com a Ana Salazar senti a necessidade de começar a desenvolver um trabalho mais pessoal e marcar a diferença na minha marca.» Três anos depois, a coleção WorkinProgress foi o espelho dessa reviravolta criativa, que, descobriria mais tarde, é um processo cíclico. «Agora sinto novamente essa necessidade de trabalhar os grandes formatos.»

O processo criativo do joalheiro designer reflete a própria estrutura das peças. «Desenho muito mal», confessa. «Ou melhor, não desenho sequer. Não consigo fazer um croquis.» Mas o mal que desenha compensa na execução. Vai esboçando mentalmente a ideia, que ganha forma à medida que as peças se encaixam. «Pego nos materiais e começo a montar o puzzle. Há algo lúdico nisso tudo, como se brincasse com os materiais, mas sei o que quero transmitir e o que quero fazer. É mais estimulante criativamente do que ter tudo planeado, às vezes a dificuldade é saber quando parar. No caso da WorkinProgress, comecei por espetar um alfinete num objeto. Depois espetei milhares.»

Às vezes vêm-lhe parar à mão livros, moedas ou relógios, que desencanta, às primeiras horas da manhã, nesse laboratório de ideias que é a mítica Feira da Ladra, em Lisboa, a partir dos quais constitui o seu universo criativo. «A reciclagem está sempre presente nas obras», diz. O pai costuma levar-lhe objetos já sem uso, «coisas inacreditáveis» para o desafiar. O acrílico, as resinas, as borrachas ou a madeira, comummente usados, parecem a anos-luz das últimas alquimias: fibra ótica e pilhas de lítio. «No ano passado seria impossível pensar em soldar as pilhas. Agora através de um processo de solda fria pode-se trabalhar e, ao mesmo tempo, reciclá-las. Representam ironicamente a energia de que o corpo necessita para enfrentar os tempos que correm.»

Em 2008, em Trieste, Valentim venceu o prémio ITS (International Talent Support), na categoria de Coleção de Acessórios do Ano. Itália foi a rampa de lançamento de novos voos e o impacte junto da imprensa internacional e dos diretores criativos das grandes casas foi grande. A distinção pela coleção WorkinProgress, que apresentou a concurso, valeu-lhe convites para Semanas de Moda e outros eventos que o podiam ter levado para fora do país. Nunca aceitou. Em vez disso, estabeleceu parcerias pontuais, como aconteceu com Christian Lacroix, em 2002, para quem desenhou algumas peças, depois de ter dado nas vistas no Salon Première Classe, em Paris. Perdeu o rasto das flores de esmalte que desenhou.

Já mostrou o trabalho em Barcelona, Maastricht, Luanda, Londres ou Paris. Está também representado na Coleção Francisco Capelo, no Mude – Museu do Design e da Moda -, em Lisboa, e integra várias coleções privadas. Tem oito pontos de venda internacionais em Itália, Reino Unido e Bélgica e, recentemente, conta com um representante na capital francesa. Vende para todo o mundo através da loja online (www.valentimquaresma.com) e continua a namorar o mercado nipónico.

As inúmeras solicitações para certames roubam-lhe tempo à criação. «É cada vez mais complicado concentrar-me no essencial», queixa-se. Depois, são os potenciais compradores, colecionadores e seguidores atentos da sua obra, que querem ser recebidos pelo artista, gente que «nada tem que ver com a moda, como antiquários ou apreciadores de arte». Alguns são fiéis. As peças seguem o seu caminho. «Perco o rasto das obras e isso é frustrante, não sei quem as comprou. Antes não percebia os artistas que diziam ter saudades das suas peças. Agora, estou numa fase em que apetecia-me rever algumas das minhas obras ou saber onde estão.»

Toda esta atenção e críticas favoráveis acarretam um natural orgulho, mas o lado de espetáculo das suas peças camufla um artista reservado, que não gosta de holofotes apontados a si. Talvez por isso, apesar dos anos em que já anda no circuito das artes e da moda, muitos ainda não conseguem atribuir um rosto ao seu nome – e para outros continua a ser uma revelação. Mas as suas obras não passam despercebidas e essa é a maior marca que qualquer criador pode deixar.

Entretanto, acaba de inaugurar uma loja na Rua de São Marçal, em Lisboa, a primeira em nome próprio, onde vende pulseira, cintos, colares e esculturas, com preços entre os quarenta e os seis mil euros. Um espaço minimalista, a preto e branco e tons metálicos. «É uma nova experiência. Vou ter as minhas peças expostas ao público, misturadas com outras de coleção, e vou trazer outros artistas cujo universo criativo tenha que ver com o meu, nas áreas da pintura, fotografia e desenho.»

Em mudança está também o atelier onde habitualmente trabalha e desenvolve as peças. O novo espaço de criação será no Chiado, juntamente com outros sete elementos do coletivo ARTinPARK, uma associação cultural sem fins lucrativos que promove o intercâmbio de artistas das indústrias criativas. «É estimulante trabalhar em parceria, surgem outras ideias, opiniões», diz.

E é um novo capítulo que começa em novos espaços e a fervilhar de ideias. «Apetece-me voltar às grandes escalas.» E enquanto não se atira à próxima coleção, aventura-se na pintura. «Apeteceu-me. É uma experiência.» E dele pode-se esperar tudo. Menos o óbvio…

[publicado originalmente em 14 de Abril de 2913]