O prazer de conspirar à mesa

Portugal era, há quarenta anos, muito diferente. Em Lisboa, palco da revolução, o elétrico era um meio eficaz de transporte, o metropolitano viajava ao longo de uma pequeníssima espinha e fazer uma refeição fora era uma extravagância. Melhor, um marco biográfico.

Havia bons restaurantes, onde se ia comer o que não se fazia em ca­sa. Receituário tradicional, mui­tas vezes até de matriz familiar – ainda não temos outra –, valia sempre a pena a viagem. Em tempo de celebração, conspi­ração ou por puro prazer, lá se saía para uma farra consentida e comedida. Os preços na­da tinham que ver com os de hoje, princi­palmente porque os fornecedores eram ou família dos proprietários ou amigos. Eram tempos de glória para os apreciadores do bom produto e isso, tal como hoje, tinha tu­do que ver com a confiança em quem trazia ou fornecia. Em jeito de exercício de memó­ria, elencámos cinco receitas inspiradas em lugares e sabores históricos de outrora.
Para um petisco simples mas muito lisboeta, recordamos as iscas e o Estrela da Sé, em frente à igreja de Santo António de Lisboa e perto da Sé, onde em pequenas divisórias se falava com maior intimida­de. O segredo não era muito porque ha­via quem ia para ali só mesmo para tentar ouvir…
Quando viajamos pela estrada do Guin­cho fora, custa-nos hoje imaginar que ha­via apenas uma pequena casota lá mais para diante. Morava aí o faroleiro, cuja função era tratar, manter e operar o farol. Foi exatamente aí que nasceu uma casa de pasto onde começou por se servir so­pa de marisco, depois arroz do dito e on­de hoje encontramos o restaurante Faro­leiro, resultado de várias intervenções de restauro e aprimoramento.

Iscas à portuguesa

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Bacalhau à Brás

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Aproximou-se mais o Guincho de Cas­cais, fica a memória do tempo em que Cas­cais fugia para o mar. Os peixes de bitola maior, como chernes, meros e garoupas não se consumiam em casa, uma posta bem ser­vida num restaurante era regalo mais bem-vindo. Impossível não recordar o English Bar, no Monte Estoril, palco de muitos mo­mentos de tensão nacional e internacional que soube ser, mantendo uma neutralidade e igualdade de tratamento difíceis de encon­trar. Só a qualidade humana de José Manuel Cima Sobral justifica tal gabarito. Sempre se comeu bem e com os olhos no mar sem­pre ali foi oportuno o cherne na canoa com amêijoas. Delícia.
O fiel amigo salvou-nos muitas vezes e, entre os oficiais da marinha, é ainda hoje sa­grado o bacalhau à Brás. Nasceu numa tasca lisboeta de um galego e rapidamente se tor­nou num código de validação dos restauran­tes ditos “da marinha”. Faz-Frio, ao Príncipe Real, e Faz-Figura, a Santa Apolónia, foram templos de tertúlia conspiradora onde até há bem pouco se podia conferir o indispen­sável prato. Não brinquem com a marinha!

Cherne na canoa com amêijoas

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Bife do pojadouro

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Tornou-se também emblemático um bife que se servia numa tasca da Baixa lisboeta, o Marrare das Sete Portas. Propriedade do na­politano por cá radicado, a casa imortalizou o bife do pojadouro que passou a encontrar-se por toda a parte. É certo que em todas as ca­sas da capital se fazia bifes, mas como aquele só nos restaurantes. Ainda hoje é uma solução consensual, para todas as idades.
Finalmente, a ideia de luxo acessível que era a cozinha de sala. Restaurantes como o Gambrinus, com vocação dupla de cerve­jaria e sala de luxo, duas portas diametral­mente opostas, sempre a praticaram de for­ma sublime. Os crepes Suzette no final de uma refeição eram, com as operações de fla­mejar, saltear e reduzir o molho de base de laranja, a coroa de glória por todos desejada. Lugar também de discrição e sigilo.