O espanto frente aos nossos olhos

Notícias Magazine

Conhecem a família Silva, filha do patriarca Francisco Assis Carvalho da Silva, advogado ( já falecido) em Águas Claras, arredores de Brasília? Viviam felizes com a sua mutação genética, uma polidactilia que dava a alguns dos membros da família um dedo a mais. Não é defeito, é virtude, tanto mais que Francisco Assis, também músico, tinha fundado o Clube de Choro de Brasília. Oiçam o choro Brasileirinho, do compositor Waldir Azevedo, as cordas do cavaquinho assaltadas a velocidade trepidante – não dá jeito um dedo a mais? Azar, no começo da semana, os Silva de Águas Claras caíram na tentação de emprestar as suas mãos à campanha pelo Hexa, para a sexta Copa do Brasil, do único país com já cinco vitórias nos Mundiais. Apareceram nos jornais e televisões, do Brasil mas um pouco por todo o mundo, com as mãos erguidas e dedos abertos: seis!

E hoje, como será? Receio que rasem os muros de Águas Santas, mãos metidas nosbolsos. Os vizinhos devem atirar-lhes à cara: «Seis dedos? Isso é para assinalar o quê? Não chegam, sete, sete é que é…» Sete são as pragas do Egito, sete os pecados capitais, sete os mares onde se afogou o Brasil, pintaram o sete, os alemães: ao minuto 11, 23, 24, 26, 29, 69 e 79, Müller, Klose, Kroos, Kroos, Khedira, Schürrle, Schürrle… E ao sétimo descansaram (e o Óscar de consolação foi para o Oscar, minuto 90). Sete é muito dedo apontado. Uma das imagens icónicas, naquela noite de fotos icónicas, é o sargentão, degradado velho soldadinho, Luis Felipe Scolari, com a mão esquerda aberta, cinco dedos, e a direita só semi-aberta, dois dedos, virado para o campo, dando uma qualquer indicação técnica. De resultado desastroso: sete. O sinal que a partir desta semana ninguém pode fazer – enfim, pode, mas arrisca-se – fazer a um brasileiro. Sete.

É Waterloo quase só fotografado do lado napoleónico. Ia o resultado já ultrajante e viu-se um grupinho alemão, no estádio, agarrado de contentes, e um deles abanava a cabeça como uma namoradinha pegando no anel de diamantes, brilhante como ela nem podia crer… A Alemanha já tinha tido um momento desses, mas pintado de forma diferente. Rainer Werner Fassbinder, em O Casamento de Maria Brauner, filmou a alemã Maria, que passara o pós-guerra à espera do marido preso na Rússia. Esperando, entre ruínas, dormindo com homens para sobreviver e esquecer. Um dia, já tantos anos de amargura depois, já 1954, chega-lhe o homem, tão destroçado como ela, num reencontro depois da esperança ter acabado. Eles estão juntos e não estão, porque eles já não são. Ela abre o gás do fogão e distrai-se, ou talvez não, com o marido na saleta ouvindo o relato da final do Mundial de 1954, Alemanha-Hungria. Um grito sai do aparelho, golo!, Rahn faz o 3-2 para os alemães, a Alemanha estava a minutos de ser campeã mundial, Maria acendeu o fósforo e a casa explodiu. A Alemanha conquistada ficara para trás em cinzas e a nova Alemanha renascia. Sessenta anos depois, os alemães não precisam de tons dramáticos e wagnerianos, basta um abanar de cabeça de gente empanturrada e fingindo estar descrente de tanta felicidade.

Essa, uma das poucas imagens de alemães desta semana. A História pode ser escrita pelos vencedores, mas fotografada, não – ficam muito melhor os vencidos. Os ecrãs dos estádios costumam mostrar gente explodindo de alegria porque as câmaras os descobriam, mas desta vez, não. As caras estavam atónitas e os olhares vazios. Aquele menino chorava lágrimas que deus a dava, aquela dama abria a boca de espanto até aos últimos molares cariados. Uma mulher segurava um cartazinho esquecido «Filma Eu!», e filmada continuava ausente. E uma moça, linda, linda, virou-se para o lado, como quem estende a mão, ajuda-me, pedia calada um porquê ao namorado, e ficou sem resposta, ele não tinha nada para dar. E ela ficou perdida, como um país inteiro…