O bacalhau antes de ser seco

Tem prémios e honras de sustentabilidade a forma como a Noruega gere o seu fabuloso património atlântico, respeitando os ciclos e tempos para que as espécies atinjam os seus pontos ótimos de produção e qualidade. Fomos com o chef José Cordeiro até ao círculo polar ártico para a festa do bacalhau fresco da primeira desova, o Skrei.

A tradição portuguesa no to­cante ao bacalhau é a do pro­duto seco e salgado. Aque­la que todos conhecemos e acarinhamos há gerações, que em crianças vimos de­molhar pacientemente, depois processar das mais diversas formas – mais de mil, re­za o imaginário – e servir em modo festivo. Se alguém pedir a um português que de­senhe um bacalhau, é muito provável que saia um desenho de uma espécie de triân­gulo, que é a forma que tem o peixe quando o compramos. A nossa relação com o pei­xe na sua forma original, em vida, é prati­camente nula.

Portugal só há muito pouco despertou para o bacalhau fresco, a ponto de se ver nas peixarias e nos cardápios de restaurante. Carne alva como a neve, lasca após ligei­ra fervura e absorve temperos com invul­gar generosidade. É preciso dizer que a de­molha do nosso bacalhau seco de sempre, sendo embora uma regeneração, não de­volve ao peixe a sua textura original. Mes­mo bem demolhado, continua a ser radi­calmente diferente do congénere fresco. O chef José Cordeiro, proprietário e ofician­te no restaurante lisboeta com o seu nome, trabalha já há alguns anos com bacalhau fresco e oferece atualmente o dito na sua carta, declinado em pratos da sua autoria.
Nos pontos de venda de peixe fresco dos supermercados, a aceitação tem sido nota generalizada, com aumento da procura se­mana após semana. A variante congelada, resultante da intervenção das indústrias transformadoras nacionais no processo, encontrou também eco importante junto dos consumidores tanto domésticos como profissionais. Neste caso, o facto de estar pronto a cozinhar parece ser o ponto prin­cipal de vantagem, mesmo face ao custo acrescido e à perda de rendimento do sa­bor. Os restaurantes de serviço tradicio­nal do fiel amigo, contudo, não dispensam o produto seco e demolham-no em câma­ras frigoríficas, com o consequente in­cremento em termos de sabor, textura e consistência da receita final.

Mais tarde ou mais cedo, teria de surgir o momento que nos foi proporcionado, a mim e ao chef José Cordeiro. Ir até aos co­curutos do planeta, acima do círculo polar ártico, para assistir ao início de todo o ci­clo do bacalhau, quando vindo do mar de Barents – onde existe o maior stock de gadus morua que se conhece, gerido con­juntamente pela Noruega e Rússia –, vem desovar nos fiordes noruegueses. Trata-se da primeira desova da vida dos bacalhaus, quanto tem 5 a 7 anos. Lá partimos, então, rumo às origens do enigmático peixe, do­no da grande preferência dos portugue­ses. No horizonte da viagem estava não só a pescaria ao largo da pequena aldeia de Myre mas também um conjunto de ativi­dades que visava aproximar-nos do baca­lhau e do seu habitat natural.

Na Noruega, chamam klipefisk, que quer dizer peixe para guardar, à variante se­ca e salgada do bacalhau e não é conside­rado localmente um produto de primeira qualidade, nem tão-pouco há receituário específico para ele. Já o fresco é muito es­pecial e tem um significado grande para o povo norueguês. Das lonjuras do mar de Barents, com a água a cinco graus Celsius negativos, entre janeiro e março, o baca­lhau faz uma viagem de milhares de quiló­metros para vir desovar nas rochas de um dos fiordes mais a norte, nas ilhas Lofoten.

A primeira desova acontece quando o bacalhau tem 5 a 7 anos, compleição pu­jante e vocação para a grande migração. Pertence à subcategoria de «Bacalhau do Ártico», curiosamente a mesma de que se alimenta o esturjão, para depois nos dar o maravilhoso caviar. É também a que mais mobilidade geográfica apresenta, quando comparada com o bacalhau da costa ou o do mar do Norte, ambos com vidas mais sedentárias. Estamos no período do skrei que podemos definir como o bacalhau adulto da primeira desova. O intenso exer­cício físico dá-lhe uma carne muito firme, branca e que lasca com facilidade. A gran­de viagem visa o acasalamento, pelo que o peixe não come quase nada até que a sua missão de prolongamento da espécie este­ja cumprida. Não há muito tempo até que regresse para as águas do Ártico mais a norte, pelo que o período de pesca é relati­vamente curto. Foi para esse raro momen­to que o chef José Cordeiro foi convocado e arregimentado.
José Cordeiro é um homem de complei­ção militar, as empreitadas físicas não o in­timidam. Foi o primeiro cozinheiro por­tuguês a participar ativamente, de corpo e alma, na pesca e programa do skrei, exa­tamente como os locais e nas mesmas con­dições. Confesso que cheguei a ter pena do nosso homem, quando o vi partir ainda de noite para o mar gelado, apesar da gene­rosidade e adequação do vestuário e aces­sórios fornecidos. Não foi sozinho, cinco outros chefes entraram na competição. Eram eles Stefan Karlsson (Fond, Gotem­burgo), Ben Pollinger (Oceana, Nova Ior­que), Hung Fai (Hotel Igeretxe, País Bas­co), Gerald Zogbaum (Kuchenwerkstatt, Hamburgo) e Simon Hulstone (The Ele­phant in Torquay).

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Todos, na noite anterior, fizeram um jantar de skrei em que cada um apresen­tou uma versão da sua autoria. José Cor­deiro inspirou-se no bacalhau com grão, à portuguesa, e foi um dos mais apreciados da noite. Não acabou cedo o jantar, mas os chefs lá seguiram para a faina, cada um com sua cana de pesca. O nosso apanhou dois peixes, um com 7 quilos outro mais modesto, com 3, mas mesmo assim ficou entre os que mais sucesso tiveram. No re­gresso a terra, falavam do frio extremo que sentiram no barco, evitando comen­tar a ondulação, que naquelas paragens nunca é pequena.

Mesmo com a pescaria terminada, uma outra competição aguardava os chefs: o corte das línguas dos bacalhaus. A épo­ca do skrei é anunciada e festejada pe­las crianças em idade escolar. Faz tam­bém parte da festa o corte das línguas pe­los mais novos. As cabeças dos bacalhaus descem por uma rampa para um tapete rolante. Há uns espetos em que se deve enfiar as cabeças e depois com uma fa­ca, com um ou mais golpes, retira-se a barbela e a língua a cada uma, a uma velocidade lancinante. O campeão den­tre os miúdos consegue cortar mais de 40 por minuto, o que é notável. Há que ter em conta que está tudo gelado, desde o ar até às cabeças, o que no contacto di­reto com as mãos, mesmo através de lu­vas de borracha, acaba por tolher muito os movimentos. José Cordeiro cortou oi­to línguas, ficando num honroso segundo lugar, perante um trabalho que jamais ha­via feito. Num gesto simbólico e de boa dis­posição, receberam todos um diploma de cortador de línguas. Título de importân­cia muito relativa em Portugal, mas ato cul­tural nas aldeias do Lofoten. Seguiu-se, não um chill out, mas um warm out no ho­tel, para um banho quente regenerador e mudança de roupas.

Estávamos hospedados na aldeia de Myre – diz-se «Mira», lugar evocativo da epopeia bacalhoeira portuguesa – e fo­mos recebidos por uma família local pa­ra um verdadeiro jantar de «molje», termo norueguês que se diz mãliê e que designa a refeição evocativa da abertura da época do skrei. Para nós, portugueses, não foram precisas grandes explicações, para espan­to dos donos da casa. O que compõe o dito jantar? Bacalhau, batatas com pele, ovas, fígados e cebolas, tudo cozido separada­mente. A assessoria líquida fica a cargo de vinho tinto, servido no copo maior, e aqua­vit (aguardente de batata) no copo mais pequeno. A ideia é consumir esta última sempre que comermos mais um pedaço do fígado, para facilitar a digestão.

As semelhanças com a nossa forma de comer o bacalhau cozido são impressio­nantes. Repara-se ainda na dimensão mi­núscula das ovas, e é explicado que é por serem da primeira desova; as das de­sovas seguintes da vida de cada baca­lhau serão progressivamente maio­res e menos saborosas. Em cima do móvel da sala de jantar, uma garra­fa de Mateus Rosé, que os proprietá­rios guardam de uma viagem a Por­tugal como recordação. Nos cabos dos talheres, a imagem de um bacalhau. Explicaram-nos que utilizam na época do skrei, o que é mais um ponto a favor da re­lação forte que existe entre o momento de consumo e o peixe vivo, ao contrário do que por enquanto por cá acontece. O re­gresso faz-se com a curiosidade ainda mais aguçada do que quando partimos, e juntamos uma perplexidade: quantas histórias assim teremos nós ainda por conhecer?