Navegar em segurança

A internet mudou a forma como trabalhamos, estudamos, fazemos compras e nos relacionamos, mas as mesmas portas que se abrem para o mundo dão passagem a ameaças insuspeitas. Sobretudo para os mais novos. Navegar com Segurança é o livro que ajuda pais e jovens utilizadores a conhecer as regras e os limites da rede.

Num artigo recente assinado por pediatras no Huffington Post, estes afirmam que as crianças até aos dois anos não devem ser expostas a telemóveis e tablets
ROSÁRIO CARMONA E COSTA: Os pais dão-nos às crianças para as entreterem, é mais prático do que andar com cubos atrás. E isso está na base daquilo que depois se trabalha com adolescentes com dificuldade em escolherem alternativas. Tenho um em consulta que não me consegue apontar cinco coisas de que goste que não envolvam ecrãs. Os pais usam os tablets para regularem o comportamento dos filhos, até para comerem a sopa. Vão a um restaurante e a criança só come com o iPhone ligado. Em vez de seguir o percurso normal, de fazer agora uma tarefa de que não gosta para ter a recompensa a seguir, ela está a ter a recompensa para fazer uma coisa de que não gosta. E se desde o primeiro ano de vida tem que ter o iPhone para comer, como é que regula o seu comportamento num contexto em que não o tenha? Como espera numa aula de 90 minutos? Não desenvolve estas competências. Os pais distorcem dizendo que eles só fazem com o iPhone. Não. Eles só não aprenderam a fazer de outra maneira.

Com que idade é que uma criança está preparada para fazer um uso benéfico da internet e das redes sociais?
RCC: Depende do seu grau de maturidade e do uso que fizer. Se calhar, até sair do famoso estádio das operações concretas, poderá não ser capaz de dar um sentido ao que está a ver. Uma criança até aos sete ou oito anos não o fará por incapacidade de maturação cognitiva. E a partir daí pode não conseguir fazê-lo por outras razões. A única coisa de que tenho a certeza é que até aos três anos a internet não lhe é necessária para nada. Poderá começar a ser interessante no pré-escolar, para ver os números e as letras, mas não é essencial. Só se torna minimamente significativa no primeiro ciclo.

Ainda assim, fala-se muito em nativos digitais e na geração touch-screen…
CARLOS NUNES FILIPE: É um mito isso de as crianças nascerem com propensão para os tablets. Parecem tê-la porque, do ponto de vista do controlo da motricidade, o gesto de afastar do touch-screen é instintivo, muito mais fácil do que virar a folha de um livro. Por isso aderem mais, não porque nasçam com um ADN diferente do dos nossos avós. E um tablet não é, de todo, o mesmo que um puzzle ou um livro. Não tem textura, nem forma, nem cheiro, não pode ser metido na boca. Quando muito, desenvolve competências bidimensionais visuais, nem táteis são. E isso é uma ínfima parcela do que deve ser o desenvolvimento das competências psicomotoras da criança. Só é útil no fim da linha, após terem metido o cubo na boca ou atirado a jarra das flores ao chão.

A internet afeta a construção social da infância?
RCC: Sim. Não tenho um menino em acompanhamento a quem não tenha de fazer treino de competências sociais em algum momento. Há uma série de capacidades que não desenvolveram, as redes sociais propiciam isto. Antigamente, uma jovem acabava com o namorado e tinha que saber verbalizar o sucedido para lidar com a intensidade das reações e conseguir o apoio dos colegas na escola. Hoje, basta-lhe ir ao mural do Facebook e pôr um emoticon triste para desencadear uma série de resposta sociais. Mas será que a primeira pessoa que comenta o seu post seria a primeira a ir ter com ela no corredor da escola? Provavelmente não. Portanto, temos uma série de miúdos que não precisam de grande esforço para conseguir esta ilusão de apoio social.

Permitir que uma criança aceda à internet sem restrições é o mesmo que deixá-la sozinha numa grande cidade?
CNF: Acaba por ser. No fundo, tenho de conhecer o meu filho: se é cauteloso na vida real, irá reproduzir esse comportamento na rede. Se é temerário, tenho que ter cuidados acrescidos. A internet é apenas mais uma plataforma. Que tem, apesar de tudo, características particulares, uma das quais é a facilidade de acesso, condicionadora de imensas coisas. Um jovem não tem que se deslocar para ver um filme pornográfico: basta-lhe estar no quarto quando os pais pensam que está a estudar. Também não precisa de ir ao casino nem provar ser maior de idade para apostar: acede logo à sala do póquer. Esta entrada discreta e sem restrições equivale a ter em cima da mesa, constantemente, substâncias que causam adição. E o limite para não consumir são os filtros do próprio utilizador: a educação, a formação, os valores transmitidos pelos pais.

Mas isso não transmite aos pais uma sensação de falsa segurança?
RCC: Sim. Tive uma adolescente que me dizia: «Nunca estive tão contente por ficar de castigo como agora.» Às sextas, a mãe mandava-a ir para o quarto, onde tinha o computador, o telemóvel, a televisão, o iPad. E os pais estão tranquilos na sua função de educadores (porque a filha está de castigo e até nem levantou ondas), agarram-se à falsa sensação de que ela está em casa, segura, e não é necessariamente verdade. As características da internet que a tornam tão atrativa – o anonimato, a acessibilidade, o estar em todo o lado sem filtros –, juntamente com as características dos jovens – o ensaiar papéis, a importância do social, a pertença a um grupo, mesmo que para isso tenha que enviar e-mails com fotos da colega no balneário –, resultam num cocktail explosivo. Depois tenho, ou não, a tal educação que me permite perceber que isto são fases normativas do desenvolvimento, mas não a todo o custo.

Quais são as principais ameaças decorrentes da rede?
RCC: O cyberbullying é claramente um perigo. Assim de repente conto três meninos, todos em acompanhamento no CADin por outras razões, que em sessões diferentes trazem algo para contar a esse nível. Também do ponto de vista comportamental o uso excessivo da internet tem-se revelado uma ameaça: pais preocupados porque os filhos não se envolvem na escola, crianças que não estudam para passar mais um nível…
CNF: Foi por recebermos tantos miúdos com comportamentos de uso excessivo da internet que sentimos necessidade de entender o fenómeno. A rede tornou-se veículo para uma série de comportamentos que antes se faziam de outra forma, como o bullying ou o jogo. O que procurámos neste livro foi falar com os especialistas que mais sabem sobre novas tecnologias e pô-los em contacto com quem mais precisa.

O que podem fazer os pais e professores para proteger as crianças e educá-las para o mundo virtual?
RCC: Temos aqui duas questões essenciais: uma tem a ver com o tempo passado online, a outra com a qualidade daquilo que elas fazem online. Quando falo com os pais, costumo dizer-lhes que prefiro que o meu filho esteja uma hora ligado, a ver filmes de gatinhos, do que cinco minutos a ver pornografia. Os pais estão muito centrados no tempo, naquilo que os filhos deixam de fazer por estarem ligados: «Ai, o meu filho passa muito tempo online e não estuda, não põe a mesa…» Minimizam os conteúdos. E os pais precisam de estar confortáveis com esta certeza de saberem aquilo que os filhos fazem online, o que ele visitam na rede, com quem se dão.
CNF: É tão importante como conhecer as suas companhias na vida real.

Esse é precisamente um dos limites da internet, a par dos muitos benefícios…
RCC: Na rede nenhum tem essa noção. Além de que os conteúdos não têm só a ver com aquilo que os mais novos veem, mas muito com o facto de processarem as coisas de maneiras diferentes consoante a fase de desenvolvimento em que se encontram. E depois há ainda uma questão que se prende com fenómenos de grupo: eu posso estar confiante de que o meu filho está só no Facebook, mas não sei se ele vai às mesmas páginas, aos mesmos chats, aos mesmos blogues. E aqui sucede termos crianças convictas de que não aceitam estranhos, não saem com eles, sem se aperceberem de que, indo todos os dias à mesma página ou jogando o mesmo jogo, as pessoas que lá encontram deixam de ser estranhos. Formam-se comunidades com esta sensação de já se conhecerem, de pertença a um grupo.

Que se calhar se envolve em perigos a que não dariam azo noutro contexto…
CNF: Sim. Usamos abusivamente uma linguagem enganadora – como chamar amigo a um contacto – e isso tem que ser esclarecido. Os pais, até agora, vivem ofuscados pelo veículo e muito perdidos porque não o conhecem. Enquanto para eles é óbvia a necessidade de regras e horas para chegar a casa, não lhes é assim tão claro que as haja para a internet. E o que temos vindo a perceber é que a maioria dos problemas não tem nada a ver com o veículo e sim com a utilização que dele se faz. Que também é muito modulada pelos pais: ao navegarem num meio que desconhecem, inibem-se de agir.

Como é que os educadores (e as próprias crianças) podem denunciar situações abusivas?
RCC: Primeiro: quantos pais já leram o manual do Facebook? Os termos e políticas de privacidade estão disponíveis para toda a gente e são de uso muito intuitivo. Qualquer pai que sinta haver ali algum conteúdo impróprio pode denunciá-lo. Nos e-mails, se virem que os filhos estão a ser alvo de mensagens agressivas, podem direcioná-los para o spam ou para a sua conta pessoal. O YouTube também permite denunciar conteúdos. E muitas vezes os pais têm que recorrer à sua própria rede: se denunciarem algo e enviarem e-mails aos amigos para que façam o mesmo, menor é o gap de tempo até ser retirado. O nosso parceiro Internet Segura é um recurso ótimo. Não é difícil, isto. Os pais sentem-se é assoberbados com o que está a acontecer.

Proibir o acesso alguma vez é solução? As crianças entendem essa proibição?
RCC: Pode ser solução para quem não se dedicou antes à prevenção. Os pais preocupam-se em saber onde se liga o computador, mas não há uma conversa do tipo: «É esperado de ti que faças este uso e não o utilizes a partir da meia-noite. Se o fizeres, o castigo é este. Se souber que agrediste alguém, ficas sem ele.» Estou em crer, e por isso temos investido muito nas formações a pais, que se houver esta cultura não precisamos de chegar à interdição. Mas há claramente casos em que tem de se proibir.
CNF: E as crianças não têm que concordar com a proibição. Esse é o mal da nossa era.

 

CARLOS NUNES FILIPE  ROSÁRIO CARMONA E COSTA Carlos é psiquiatra da Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo (APPDA) e diretor científico do CADin – Centro de Apoio ao Desenvolvimento Infantil. Rosário é especializada em psicologia da web e cyberbullying e coordena o CADInterativo, um projeto que responde à crescente necessidade de intervir junto dos jovens que usam inadequadamente as novas tecnologias, e de formar os educadores.
CARLOS NUNES FILIPE
ROSÁRIO CARMONA E COSTA
Carlos é psiquiatra da Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo (APPDA) e diretor científico do CADin – Centro de Apoio ao Desenvolvimento Infantil. Rosário é especializada em psicologia da web e cyberbullying e coordena o CADInterativo, um projeto que responde à crescente necessidade de intervir junto dos jovens que usam inadequadamente as novas tecnologias, e de formar os educadores.