Natureza viva

Maria Antonieta Costa não é apenas uma académica com um trabalho ímpar sobre a identidade do povo dos Açores e uma lista de conferências e publicações que enchem páginas de currículo. Foi campeã de basquetebol, continua a jogar golfe a bom nível e, aos 78 anos, acaba de disputar o quarto campeonato do mundo de bowling, com a melhor média pontual de sempre.

«Não me dou conta de que te­nha qualquer excesso de energia. Limito-me a res­peitar o compromisso dos seres vivos: crescer, cres­cer sempre. Se paro, é ape­nas para ganhar forças», diz Maria Anto­nieta Costa. «De qualquer maneira, ficar parada é um tormento. Entro em stress. Portanto, é por comodidade que corres­pondo a esta pulsão. Há egoísmo nisto.»

Aos 78 anos, a psicóloga social açoria­na vive um dos momentos mais enérgicos da sua carreira. Descobertas realizadas na ilha Terceira permitiram-lhe estabelecer padrões que apontam para povoamentos dos Açores muito ou mesmo muitíssimo anteriores àquele que a história aceitou convencionar. E, mesmo assim, resta-lhe tempo para continuar a defender o ideal de mulher da Renascença. Último feito: recorde pessoal batido no campeonato do mundo de… bowling.

Proveniente de uma família de despor­tistas – o irmão, José Couto, foi um fute­bolista de referência no Lusitânia dos Aço­res dos anos 1960 e 1970 –, Antonieta já fez de tudo. Primeiro destacou-se no basque­tebol, em que foi campeã açoriana, e a se­guir passou para o golfe, em que também foi campeã das ilhas, e em que ao longo dos anos disputou vários campeonatos nacio­nais e torneios internacionais.

Ainda pisa o verde, e o seu nível de jogo – tanto quanto o ritmo a que joga, frenético – impressiona numa mulher da sua idade. Mas, entretanto, chegou o bowling. Já depois dos 60, foi convidada a experimentar a modali­dade, de modo a completar a equipa forma­da pelos filhos. Resultado: voltou a sagrar-se campeã açoriana, subiu várias vezes ao pódio em campeonatos nacionais, representou a seleção portuguesa e já disputou quatro cam­peonatos do mundo – Eslovénia 2005, Rússia 2007, México 2008 e Polónia 2014.

Foi precisamente neste último, já es­te outono, que conseguiu a melhor mé­dia pontual de sempre: 156 em 20 jogos. «O que realmente me dá prazer é a competi­ção. Não me importa jogar para manter a forma ou preservar a saúde.»

«O bowling, tal como o golfe, exige um profundo entendimento da nossa biome­cânica. São muitos grupos de músculos em ação em pequenas frações de segun­do», explica. «Se pretendemos crescer no conhecimento de nós próprios, temos de estabelecer um relacionamento íntimo e coordenado entre as nossas dimensões fí­sica, psíquica e emocional. É o que está em causa aqui. Não é o raciocínio que nos permite jogar. É a intuição.»

Libertar a intuição, de resto, tem sido sempre uma das preocupações do seu tra­balho também. Mas, para percebermos o seu percurso, temos de recuar mais de meio século: mais precisamente aos Açores dos anos 1960, quando, já depois dos 25, e com três filhos crianças, Maria Antonieta che­gou à conclusão de que estava na hora de re­tomar os estudos e foi inscrever-se na Uni­versidade do Maryland, que tinha – e ainda tem – um polo na base norte-americana das Lajes, instalada na ilha Terceira desde o fi­nal dos anos 1940.

«Tive o ensejo de investigar as práti­cas do culto do Espírito Santo nas ilhas, estabelecendo comparações com mode­los de excelência de gestão americanos», conta. «Pode parecer uma utopia, mas na verdade trata-se de uma forma vanguar­dista de democracia. E, partindo daí, fui construindo um currículo forte em psico­logia e gestão, tanto na licenciatura como no mestrado.»

Licenciou-se em Sociologia, fez um mestrado em Sociologia das Organiza­ções e, já no ISCTE, em Lisboa, concluiu um doutoramento em Psicologia Social das Organizações. Mesmo assim, manteve uma série de outras atividades. Assessora principal da Direção Regional de Cultura dos Açores, representou a região junto da UNESCO, integrou a equipa do Gabinete da Zona Classificada de Angra do Heroís­mo, Património da Humanidade, e deu au­las em diferentes estabelecimentos de en­sino. Já foi investigadora da Universidade do Minho e hoje está ligada à Universidade do Porto, como membro do Centro de In­vestigação Transdisciplinar Cultura, Es­paço e Memória.

«Não entendo a palavra “esotérica” co­mo um insulto», garante, indiferente à pro­vocação. «O esoterismo não fez um percur­so assim tão diferente, por exemplo, do do bosão de Higgs. Vamos caminhando para a possibilidade, enquanto procuramos meios de concretizar a parte experimental exigi­da pela ciência.»
Tem-se ocupado, nos últimos tempos, de duas estações de pesquisa em particu­lar: as construções megalíticas da zona da ilha Terceira a que se dá o nome de Grota do Medo, e que entendeu como edificadas sob o paradigma do axis mundi; e o conjun­to de expressões animistas em torno de ro­chas de configuração zoomórfica e antropomórfica, situadas na encosta oeste da igualmente terceirense serra do Cume, e que apontam para que o povoamento da ilha possa remontar a uma pré-História ainda mais remota.

«Temos encontrado muitos tipos de marcas na Terceira: riscos fundos e cilín­dricos, como os que há na Noruega, na Le­tónia, no Canadá e no Brasil; pés de galo, muito comuns à cultura megalítica um pouco por todo o mundo; bacias escava­das na pedra, como na Irlanda ou na Indo­nésia; construções megalíticas em equilí­brios inusitados, também comuns à cultu­ra megalítica de várias regiões; e rochas de formas zoomórficas e antropomórficas rodeadas de menires e pias esculpidas, co­mo as do Báltico, da Finlândia e de várias regiões da Lapónia», explica.

«Se não houvesse ali mais nada», acrescenta, «havia desde logo a crença no poder das pedras. De resto, a Terceira é, das oito ilhas açorianas, aquela que tem mais concentração de sílica, uma condutora de magnetismo por excelência. E é de alguma maneira inacreditável que as autoridades continuem por despertar para o potencial do que aqui está, desde logo a nível turístico. Isto para falar apenas de economia, tantas vezes o nível mais rasteiro da discussão.»

Interessam-lhe pouco as datações, nesta fase da investigação. Mas a própria coinci­dência geográfica com a Atlântida, a ilha mí­tica de que falava Platão nos diálogos Timeu e Crítias, lhe pareceria já uma explicação de­masiado modesta para tais fenómenos. E foi sem surpresa que se deu conta, há uns me­ses, da aparente descoberta de uma pirâmi­de submarina ao largo da ilha, erguida no mesmo sítio onde cartografias anteriores da Marinha Portuguesa não haviam encontra­do o que quer que fosse.

«Tudo isto tem perturbado a minha consciência identitária», diz. «Falamos de sítios cheios de intencionalidade espacial, com marcas de um passado tão estranho, diáfano e ao mesmo tempo maciço que se torna inevitável reconhecer que este can­to do mundo tem uma densidade históri­ca própria e insuspeitável.» Do que se tra­ta exatamente ainda não se sabe. Mas – diz Maria Antonieta – olha-se para a Terceira de hoje, revelados todos esses vestígios, e é inevitável pensar em lugares como a ilha de Páscoa, o Bada Valley, na Indonésia, ou as regiões da Bósnia e da Costa Rica on­de se revelaram enormes esferas de pedra.

Assim como é difícil pensar no arquipé­lago açoriano sem pensar na urgência de protegê-lo da mesma maneira como se de­ve proteger a Antártida, o Sara ou a Amazónia: como lugares onde talvez esteja a chave para se decifrar a própria origem do homem, o modo como se corrompeu a sua relação com o espaço e – quem sabe – o có­digo para a redenção desse processo.

Talvez por isso Antonieta se tenha man­tido sempre nas ilhas, apesar dos simpó­sios em que participa, dos júris que inte­gra e das palestras que dá um pouco por todo o mundo – até em cruzeiros oceâni­cos. «Aqui, é impossível esquecer a natu­reza ou os deveres morais do homem pa­ra com ela», diz.

«Aliás, também isso se pode ver não apenas nas Irmandades do Espírito San­to como na própria organização social em sentido lato. Nos Açores, uma região com mais de 500 anos de autonomia em rela­ção às autoridades externas, ainda se vi­ve num oásis onde vigoram os ideais do verdadeiro humanismo. A escala de valo­res é invertida», sublinha. «As pessoas não são cifrões e, quando se trata de uma rea­lização espiritual, não se fazem as contas a gastos.»