Não trespassar!

Notícias Magazine

Parece uma verdade incontestável afirmar-se que todos, independentemente das suas crenças, sexo, idade, nacionalidade ou profissão, têm direito à privacidade e que apenas os próprios poderão abrir mão dela por sua livre vontade e da forma como desejam.

Por outro lado, parece também haver o entendimento gene­ralizado de que existe uma excepção a esta regra. Qualquer pessoa que se afigure, por força do trabalho que escolhe realizar, como fi­gura pública, deixa de ter direito a usufruir da sua privacidade. Pelo menos, é isso que constato ao passar os olhos pela internet.

Sempre que vem a público alguma revelação mais ou menos controversa acerca de uma figura pública, feita à sua reve­lia, muitas são as vozes que se levantam a dizer que tal é aceitável pelo facto de essa pessoa ser, precisamente, uma figura pública. Talvez por isso importa perceber o conceito de figura pública.

Aqui há uns anos, ser-se «conhecido», ou «famoso», era consequência directa de se ter uma profissão como actor, músico, humorista, apresentador, enfim, qualquer actividade profissional cujo exercício se fizesse frente ao público. Hoje, na era da televi­são dos reality shows, esse conceito alterou-se. Não é preciso ter-se uma profissão para se aparecer nos media, basta estar disposto a ceder a sua vida privada para o usufruto dos que acompanham esses programas.

Talvez por isso se tenha começado a tomar a parte pelo todo e considerar que toda e qualquer figura pública, indepen­dentemente da sua actividade profissional, terá de aceitar, como parte intrínseca ao seu trabalho, o escrutínio da vida privada.

Percebo a confusão, mas não posso concordar. É possí­vel exercer uma profissão ligada às artes do palco sem que se te­nha de expor a vida privada. Na verdade, o único requisito de uma profissão como actor ou músico é mostrar a sua arte frente ao pú­blico, ou falar acerca dela nos meios devidos. Qualquer coisa que vá para além do exercício do seu trabalho só deverá ser exposta por vontade expressa e quando surgem notícias à revelia que re­latam histórias privadas acerca de si, essas devem ser vistas como invasão de privacidade.

Assim foi com o caso tão falado das fotos de algumas actrizes, modelos e cantoras que apareceram na net, depois de terem sido roubadas de plataformas de armazenamento privadas. Ao invés de apontar o dedo a quem roubou e expôs a privacidade de alguém contra a sua vontade, escolheu-se culpar quem tirou as fotos e as armazenou naquilo que pensava ser um local seguro.

Não tecendo considerações acerca da pouca ou mui­ta segurança destas «nuvens de armazenamento», a verdade é que alguém violou o espaço privado de outra pessoa, tornando-o pú­blico. Para qualquer profissão que não as já referidas, tal seria al­vo de condenação pública. No entanto, aquilo que se observou foi precisamente o contrário: afirmou-se que havia interesse na sua divulgação, uma vez que as vítimas se constituem como «figuras públicas».

O ser-se figura pública não pode, nem deve ser justifi­cação para o atropelo dos direitos fundamentais que se aplicam a todos os outros indivíduos. Muito menos o ser-se mulher, porque, ao que parece, as únicas celebridades visadas são do sexo feminino, o que nos levaria ainda a tecer considerações acerca da forma dife­renciada como são vistas e tratadas as figuras públicas, conforme sejam homens ou mulheres.

Num mundo cheio de plataformas sociais que nos pedem que contemos o que estamos a fazer e a pensar, cada vez é mais impor­tante percebermos e preservarmos o carácter sagrado da nossa privacidade e da privacidade dos outros. Porque privacidade e li­berdade andam sempre de mãos dadas e viver numa sociedade on­de não há privacidade equivalerá a viver numa sociedade que não é livre.

Ana Bacalhau escreve de acordo com a antiga ortografia
Publicado originalmente na edição de 14 de setembro de 2014