Namorar não é controlar

Corbis

Namorar não é só beijos, abraços, flores e chocolates. No namoro juvenil há muita violência e os agressores são os rapazes, mas as raparigas também. Eles recorrem mais à força, elas ao abuso psicológico. Todos desvalorizam as agressões e muitos confundem ciúme, controlo e violência com sinais de afeto.

A porta do gabinete está sempre aberta, o telemóvel ligado e a enfermeira Fátima Esteves tem toda a disponibilidade para atender quem a procura na Unidade de Cuidados na Comunidade Consigo, em Alcântara. Foi sempre assim nos mais de 30 anos de trabalho e em todos os sítios por onde passou. Os pacientes, sobretudos mulheres e jovens, são sempre bem vindos. Os que têm marcação e os que aparecem fora de horas, quando podem e precisam. Como a Mariana, 17 anos. «Parece que a estou a ver chegar, acompanhada pelo namorado. Um belo rapaz, bonito, muito atencioso, sempre presente. Vinham porque suspeitavam que ela estivesse grávida e estavam determinados a ter a criança.» O que também não lhe sai da memória foi o dia em que a Mariana apareceu sozinha. «Tinha terminado o namoro. O namorado chamava-lhe “puta” durante as relações sexuais, tinha-lhe dado um estalo e agora queria que ela tivesse relações com vários homens.»

 

Gerardo Santos/Global Imagens
Fátima Esteves, enfermeira na Unidade de Cuidados da Comunidade Consigo, em Alcântara, já acompanhou muitos casos de violência no namoro. Fotografia: Gerardo Santos/Global Imagens

Fátima Esteves acompanhou a jovem durante algum tempo e ainda assistiu à reconciliação do casal e a outra rotura. Mas quando ela foi estudar para a Suíça perdeu-lhe o rasto. À primeira vista, o namorado da Mariana enganou a enfermeira. Mas não é costume. Ela sabe que alguns agressores recorrem a táticas subtis para exercer o controlo sobre as vítimas, ou não tivesse já acompanhado centenas de casos de violência doméstica, muitos passados entre jovens namorados.

Por exemplo, Maria, 15 anos, natural de Lisboa. «Também veio com o namorado, estava grávida e quis fazer uma interrupção da gravidez. Precisou de autorização da mãe. O pai batia-lhe e à mãe também. Tinha um irmão com 17 anos que também a agredia. A ela, o namorado já lhe tinha apertado o braço de uma maneira que lhe tinha desagradado. Era um sinal claro de violência.» Fátima Esteves arranjou tempo e meios para trabalhar com o jovem casal e com a mãe dela e é com indisfarçável contentamento que conta que Maria conseguiu quebrar o ciclo da violência: «Ela gostava dele e queria manter a relação. Conseguimos intervir a tempo.»

As situações relatadas pela enfermeira Fátima Esteves repetem-se na vida de milhares de jovens portugueses. O maior estudo nacional sobre a prevalência da violência do namoro foi feito em 2009 por Sónia Caridade, que agora é professora na Universidade Fernando Pessoa, no Porto, e envolveu 4.667 jovens com idades entre os 13 e os 29 anos. Destes, 25,4 por cento afirmaram ter sido vítimas de, pelo menos, uma agressão no último ano e 30,6 por cento admitiu ter sido agressor. Os atos mais frequentemente referidos foram os abusos emocionais (19,5 por cento) e físicos (13,4 por cento), mas a violência física grave (7,6 por cento) também é expressiva.

 

Adelino Meireles/Global Imagens
Rosa Saavedra, psicóloga da APAV, no Porto, afirma que a violência no namoro não é uma violência de género. Fotografia de Adelino Meireles/Global Imagens.

Rosa Saavedra, psicóloga da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, no Porto, confirma que violência no namoro não é um problema raro e diz que os nossos dados retratam uma realidade que tem vindo a ser demonstrado em diversos estudos internacionais. E se saber que um quarto dos jovens já terá sido vítima é preocupante, o que mais inquieta a coordenadora do Grupo de Trabalho de Avaliação do Risco da APAV Porto é a desvalorização das agressões. E exemplifica: «Grande parte dos jovens não reconhece o ciúme e o controle como comportamentos agressivos. Acham que são expressões de afeto.»

A enfermeira Fátima Esteves compara este erro de perceção à relação que os jovens têm com o álcool, em que acham normal embebedarem-se, minimizando os riscos do alcoolismo e de outras doenças: «O ciúme, que está na origem de grande parte das agressões entre jovens namorados, é visto como um sentimento positivo. É um sinal de amor.» Só que com o passar do tempo as restrições começam a ser outras. Vasculhar o telemóvel, as chamadas que a namorada ou o namorado faz e as mensagens que envia e recebe; controlar as fotografias que publica e os comentários que escreve no facebook são situações frequentemente reportadas pelos jovens como normais e não como uma devassa da sua privacidade. «Mas daí até à proibição de sair sozinha ou com amigos, passando pelas ofensas e afirmações feitas com objetivo de ferir e humilhar vai um pequeno passo», adverte Rosa Saavedra.

E se nada for feito, vêm os gritos e as ameaças, as intimidações, as bofetadas, os murros, os pontapés, os atos sexuais contra vontade, as perseguições e o medo. «O medo de ser ainda mais maltratada, o medo que o namorado concretize as ameaças, o medo de abandonar aquela relação», acrescenta Fátima Esteves.

ELAS TAMBÉM AGRIDEM
Quando os jovens consideram os ciúmes e o controlo uma coisa natural, é provável que os problemas se agravem com o tempo confirma Cecília Loureiro. A psicóloga da UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta também está alarmada com a desvalorização da violência e com os dados recolhidos no âmbito dos projetos Mudanças com Arte – Jovens Protagonistas na Prevenção da Violência de Género, que estão a ser desenvolvidos em 13 escolas da região norte desde 2008. Ela conta que num estudo efetuado junto de 885 estudantes, 22 por cento dos rapazes e 10 por cento das raparigas consideram que «chamar nomes» não é violência. E quase 16 por cento dos rapazes e cinco por cento das raparigas entendem que ameaçar «é um ato normal.»

Mas as surpresas não ficam por aqui. Metade dos rapazes e 42 por cento das raparigas encara com normalidade a proibição de sair com amigos sem o respetivo namorado e as proibições para vestir uma peça de roupa. O controlo do telemóvel, dos e-mails e das palavras-chave das redes sociais também são considerados «comportamentos de não-violência» para mais de metade dos jovens e para 43 por cento das raparigas. Mas há mais. Os números mostram que um quarto dos alunos e 16 por cento das alunas acreditam que «obrigar a fazer coisas que o outro não queria fazer» não é uma ação desadequada. E quanto à agressão física, «sete por cento dos rapazes considera que bater sem deixar marca não é violência, sendo que cerca de seis por cento defende que agredir não é, de todo, violência».

 

Leonel de Castro/Global Imagens
Cecília Loureiro, psicóloga da UMAR, encontra na perpetuação dos estereótipos de género a raiz da violência de género. Fotografia: Leonel de Castro/Global Imagens

Cecília Loureiro destaca a percentagem mais elevada de rapazes que limitam a liberdade das namoradas e salienta a necessidade de aumentar a sensibilidade dos jovens e das jovens para o respeito pela diferença e pela igualdade de género: «Confirmamos que as raparigas não se querem deixar ficar atrás. Funcionam segundo a lógica do “bateste, então também levas”. Para muitas, igualdade de oportunidades é esta escalada de violência.»

A psicóloga Rosa Saavedra também é peremptória ao afirmar que a violência no namoro não é uma violência de género: «Há reciprocidade e simetria de atitudes e comportamentos e tanto os rapazes como as raparigas podem assumir o papel de agressores e de vítimas.» O que os estudos demonstram é que a severidade dos actos praticados pelos rapazes é maior, enquanto as raparigas são mais subtis: «Em regra, a violência é praticada como uma reacção à violência. As raparigas usam mais a violência psicológica, os rapazes exercem mais a violência física. O cyberbullying, que é uma nova forma de violência, é exercido por ambos.»

A enfermeira Fátima Esteves concorda mas lembra que apesar de também haver rapazes vítimas de violência, há mais muito mais vítimas entre as raparigas. E Cecília Loureiro volta falar dos estereótipos sociais: «Desde cedo que somos educados de forma distinta em função do sexo. Os rapazes são estimulados a brincar com carrinhos, a valorizar a ação e a força física. Às meninas oferecem-se bonecas e deseja-se que sejam obedientes, delicadas, direi mesmo submissas.» Para a psicóloga, esta ordem social, que faz das mulheres subordinadas e atribui aos homens o controlo e o poder, tende a perpetuar a violência de género durante a vida.

PREVENIR ANTES DE REMEDIAR
Perceber porque é que os jovens se agridem não é tarefa fácil, mas quem está no terreno identifica algumas razões. Viver e crescer numa família violenta aumenta o risco de vir a desenvolver comportamentos violentos: «As relações familiares influenciam a nossa capacidade de regular emoções, as pessoas que vivem em ambientes agressivos tendem a ter mais dificuldade em controlar os seus impulsos. Também me parece que muitos jovens desvalorizam as agressões no namoro porque, para eles, a violência doméstica é um problema dos adultos, das pessoas casadas, dos seus pais, por exemplo», afirma a enfermeira Fátima Esteves. Já a psicóloga Rosa Saavedra identifica outro factor: «Não sabem gerir conflitos de forma positiva. Os jovens têm informação e acesso à informação, o que eles não têm é quem os ajude a tomar decisões, a ser capazes de emitir opinião, a perceber se a sua opinião se assemelha ou se distingue da opinião da maioria, etc. Os jovens precisam de treinar estas competências e isto devia fazer-se na escola.»

Devia, mas não se faz. Ou melhor, nas escolas desenvolvem-se acções pontuais, quase sempre por iniciativa das organizações da sociedade civil que se dedicam à prevenção da violência doméstica e da violência de género. Mas é preciso ir mais longe, diz Rosa Saavedra. Ela sabe do que fala. Depois de fazer a tese de doutoramento sobre a violência no namoro – Prevenir antes de Remediar: Prevenção da Violência nos relacionamentos íntimos juvenis – e de desenvolver várias acções sobre o tema em contexto de escola, acabou por adaptar o programa canadense The Fourth R a Portugal: «É um currículo de prevenção universal da violência no namoro e comportamentos de risco associados que a APAV desenvolveu durante dois anos lectivos na Escola Secundária Inês de Castro, em Vila Nova de Gaia.»

A acção foi executada na disciplina de Área Projecto (entretanto extinta), envolveu a formação de professores e a preparação de manuais, vídeos e outros materiais didácticos e foi monitorizada. E Rosa Saavedra ficou muito satisfeita com os resultados alcançados: o aumento de conhecimento dos jovens, a diminuição das atitudes de tolerância à violência e uma redução da violência física no namoro: «Há um antes e um depois do programa. Os alunos passaram a distinguir uma relação saudável de uma relação não saudável, a conhecer os direitos e os deveres de cada parceiro numa relação, a identificar comportamentos abusivos, a reconhecer os factores que conduzem a relacionamentos sexuais saudáveis.» E é com este tipo de ferramentas que Rosa Saavedra está convencida que se pode prevenir o problema. E no prevenir é que está o ganho. #

 

COMO SE MANIFESTA
A violência no namoro pode assumir várias formas. Pode ser física, psicológica ou emocional e quem a exerce tem sempre como objectivo controlar e dominar o parceiro. A violência no namoro é sempre intimidante e se os jovens não romperem o ciclo – por si sós, com ajuda da família, de professores ou de profissionais de saúde – começam a viver atemorizados e em tensão constante, o que aumenta o risco de desenvolverem problemas psicológicos (baixa autoestima, ansiedade, medos, perturbações do comportamento alimentar, depressão, etc), insucesso escolar, abuso de álcool e outras drogas, entre outros.

» A violência física: bofetadas, os empurrões, as mordidas, os socos e pontapés, etc.

» A violência sexual: atos sexuais não consentidos, contactos corporais, relações sexuais e todas as pressões.

» A violência psicológica: ameaças, perseguições, esperas, proibições, mas também as críticas, humilhações e outras agressões verbais, o controlo das conversas com amigos e família, etc.

ELIMINAR A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES
A 25 de Novembro, assinalou-se mais um Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres e a ONU encoraja os governos dos países a criar e/ou a aperfeiçoar legislação e políticas nacionais destinadas a combater todas as formas de abuso contra as mulheres, incluindo o assédio sexual, a mutilação genital feminina e a violência doméstica. De Portugal, diz-se que tem uma legislação adequada. Mas os números revelam que a violência doméstica, ainda é um crime de consequências trágicas: só no primeiro semestre de 2013 e, segundo dados da UMAR, foi o que esteve na origem de 20 homicídios e 21 tentativas de homicídio. As vítimas foram todas mulheres.

Já as estatísticas do ministério da Justiça mostram que, em 2012, a PSP e a GNR registaram 22.254 crimes de violência doméstica (entre cônjuges ou entre pessoas com relação análoga, incluindo o namoro) e identificaram 1099 suspeitos de agressão com idades entre os 16 e os 24 anos e 13 com menos de 16 anos. No mesmo ano, o número de processos por violência doméstica findos nos tribunais de 1ª instância ascenderam a 2.470. Desconhece-se o número de condenações e quais as penas aplicadas no ano passado. Mas sabe-se que a esmagadora maioria dos agressores condenados a pena de prisão acaba por ficar em liberdade, com pena suspensa.

Também em 2012, a APAV registou 16.970 crimes praticados no âmbito da violência doméstica. Os de maus-tratos psíquicos (6.085 casos) e de maus-tratos físicos (4.530 casos) foram os mais frequentes, seguidos dos crimes de ameaça/coação (2.995 casos), de injúria/difamação (1.647 casos) e de natureza sexual (264 casos).

Nos crimes cometidos contra crianças e jovens (até aos 18 anos), os namorados foram apontados como agressores em 11 situações e os ex-namorados em cinco casos. Entre os 898 agressores referenciados nesse grupo, 27 tinham idade entre os 18 e os 24 anos e outros tantos tinham entre 11 e 17 anos.

Entre os adultos vítimas de crime, há 473 jovens com idades entre os 18 e os 24 anos. Neste grupo, o cônjuge é o agressor mais frequente (2505 casos), seguindo do companheiro (1007 casos), do ex-companheiro e do ex-cônjuge (981 casos), do ex-namorado (160 casos) e do namorado (109 casos). Quanto à idade, 188 agressores tinham entre 18 e 24 anos e 48 tinham entre 11 e 17 anos.

Dizer que tanto nos crimes contra crianças e jovens como contra adultos, em 80 por cento dos casos, os agressores são do sexo masculino.

[Publicado originalmente na edição de 24 de novembro de 2013]