Muito barulho no Cartaxo

O inglês Nick Allport produziu algumas das mais míticas bandas da cena alternativa britânica. Tem 47 anos, mudou-se há cinco para Portugal e agora decidiu fazer um festival com os nomes da velha guarda underground. A primeira edição do Reverence arranca hoje no Cartaxo.

O ano é 1985. Londres ainda vive os últimos resquícios do punk e alguns movimentos alternativos a emergir. Nas rádios o triunfo é todo da pop, quase sempre liderada por americanos. Em Inglaterra, no entanto, estão no auge o noise rock, a música gótica, mais qualquer coisa psicadélica, e ainda sons que antecipavam o que nos EUA viria a chamar-se grunge. Nick Allport chegou nessa altura, tinha 18 anos e a sua vida «mudou para sempre». Ele tinha crescido em Lampeter, no País de Gales, que tem dois mil habitantes. Era um miúdo introvertido que passava dias agarrado a discos de Jesus and Mary Chain, The Smiths, Echo and the Bunnymen. «Num ano foi ver os concertos desses tipos todos, era a loucura.»

Nick é um produtor musical inglês com nome firmado na cena mais barulhenta da música indie, um movimento que ficou genericamente conhecido em Londres como a onda stoner. Foi manager e produziu uma mão-cheia de discos para grupos com algum relevo, dentro do ambiente mais underground. Há cinco anos mudou-se com a mulher, portuguesa, para o Cartaxo – queriam educar os filhos longe da confusão da City. E, pouco depois de se instalar, começou a organizar concertos, a trazer algumas bandas de Londres que nunca tinham pisado solo nacional. «Eram as Cartaxo Sessions, que foram crescendo e crescendo – e às tantas senti que isto tinha de evoluir para algum lado, tornar-se algo maior.»

A 12 de setembro arranca a primeira edição do Reverence Festival. São dois dias de música alternativa à beira-rio, no Parque de Merendas de Valada, no Cartaxo. Já aqui se realizou, no início do milénio, o Festival Tejo. «Queremos um festival como nenhum outro, que dê o palco principal àquelas bandas que são de culto mas costumam tocar nos palcos secundários. É um tributo a esses músicos de que todos gostamos e daí o nome Reverence – reverência, em português.» Entre os cabeças de cartaz estão nomes como Hawkwind, Eletric Wizard, Graveyard, Red Fang, The Black Angels, Mão Morta e Psychic TV. Há lendas do rock psicadélico, os tipos mais barulhentos do mundo, uma onda verdadeiramente pesada. E isso é uma novidade em Portugal.

O Reverence é acontecimento para dois dias – sexta e sábado. Os concertos começam ao meio dia, e isso é uma novidade britânica. «É assim que acontece em Inglaterra eestá a acontecer uma coisa curiosa no alinhamento. As bandas do Norte da Europa querem todas tocar no fim do dia, as portuguesas depois do cair do Sol. E eu tenho de misturar tudo e convencer os estrangeiros que sim, em Portugal os concertos são bons é à noite.» Até às seis da manhã há batida, distribuída por três palcos diferentes. Há campismo e barracas de comida e vai haver um porco no espeto para saudar os artistas.

Ainda faltam uns dias para o festival arrancar mas a casa de Nick, numa aldeia chamada Porto de Muge, assemelha-se bastante a um centro de operações. As pulseiras de entrada no Reverence estão lá, tal como a estrutura que será o portão de entrada, e uma série de grades de proteção que serão usadas em Valada. O Reverence é organizado por um coletivo com músicos e gente da terra. Mas ele é o comandante.

Quando chegou a Londres, nos anos oitenta, Nick não conhecia ninguém.Mas havia um grupo de fiéis da sua onda de música e acabavam por ir juntos ver as bandas. «Acabámos por fundar uma fanzine [pequenas revistas feitas artesanalmente, normalmente associadas à música] em 1987, chamada Sowing Seeds. Era muito virada para a cena gótica e demos nas vistas.» Pela mesma altura formaram uma pequena editora chamada Cheree Records e os The Telescopes contrataram-no para manager. Nos anos seguintes a banda haveria de crescer, tocar com Nirvana, Primal Scream, Spacemen 3 e The Jesus and Mary Chain. Acabaria por tornar-se ela própria um fenómeno dentro do culto shoegaze, que privilegiava guitarradas distorcidas e muito pé de bateria. Nick começou a lançar novas bandas, sempre dentro desta onda barulhenta – Bark Psychosis, Whipping Boy, The Pooh Sticks. Até que, em 1990, conheceu Seymour Stein, que produziu alguns dos maiores nomes da música alternativa britânica – The Cure, The Smiths, Ramones, Depeche Mode ou Talking Heads. «Ele estava na Warner Bros e quis comprar a minha companhia, para trabalharmos em conjunto.» Nos anos seguintes, Nick haveria de produzir discos para os Disco Inferno, Lilys, Urusei Yatsura e Tindersticks.

Em 2002 a Warner decide acabar com o contrato – o stoner rock tinha uma clientela residual – e Nick vira-se para o webdesign. «Estava cansado, mandei tudo às urtigas. Eu já tinha feito sites para algumas bandas, e comecei a fazer páginas de viagens para algumas publicações importantes.» Ainda é nisto que trabalha. O que mudou foi Vanessa, uma portuguesa de segunda geração. Conheceram-se em Londres, casaram em 2008, em Lisboa. «Queríamos ter filhos e criá-los em Portugal.»

Chegaram em 2009, passaram 15 dias a procurar uma casa e encontraram uma antiga quinta em Porto de Muge, bastante degradada. Nick passou a viver três semanas por mês no Cartaxo e uma em Londres. O irmão dele, entretanto, quis abrir a sua própria editora – na mesma onda musical – e pediu- lhe aconselhamento. Em 2011, o irmão assinou contrato com os Ringo Deathstarr, e conseguiu que eles fossem tocar ao festival de Fuji, no Japão. «Fiz a viagem com eles e, caramba, houve qualquer coisa que me fez ter saudades do mundo da música.» Quando voltaram, a banda foi contratada para fazer toda a primeira parte da digressão europeia dos Smashing Pumpkins. «E então eu convidei os Ringo para aparecerem aqui no Cartaxo. » Perguntou a alguns locais onde poderia fazer um concerto. Disponibilizaram-lhe o Centro Cultural do Cartaxo.

Essa noite foi tão memorável que em 2012 arrancaram as Cartaxo Sessions, que trariam bandas como os Psychic TV, Wooden Shjips, A Place to Burry Strangers, os Dead Skeletons e, imagine-se, os The Telescopes. A onda stoner parecia estar a encontrar um palco improvável, no meio da lezíria do Tejo. «Às tantas sentíamos que tínhamos de passar para o outro nível», diz Nick. E é por tudo isto – por um galês se ter mudado para Londres, conhecido uma portuguesa e ido viver para uma aldeia no meio do nada – que arranca daqui a uns dias o primeiro Reverence Festival em Valada.

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