Miley Cyrus

Texto publicado a 16 de junho de 2014

Cerca de 18 mil fãs vão hoje aplaudir, no Meo Arena, Miley Cyrus, a menina doce da Disney, Hannah Montana, transformada em vamp sexy e provoadora que lambe objetos sexuais em palco. «Não peço desculpa por nada», diz ela. Faz tudo parte do espetáculo, dizem os críticos.

Miley Cyrus era a ingénua menina da Disney até há tão pouco tempo… o que é que lhe aconte­ceu para aparecer a abanar o rabo, quase nua, a lamber coisas e assim? Em fevereiro, quan­do iniciou a Bangerz Tour – que hoje sobe ao palco do Meo Arena, em Lisboa – percebeu-se que Miley estava preparada para chocar usan­do novos adereços eróticos em cada concerto, simulando atos sexuais com um pénis gigante, pedindo ao público para se tocar ou para tocá-la a ela, e outras provocações. Em todas elas, Miley usa sempre o apelo de menina tornada mulher, como se a cândida Hannah Montana se tivesse transformado numa vamp provocadora?

Destiny Hope Cyrus nasceu em novembro de 1992 em Nashville, Tennessee, nos EUA. Os pais chamavam-lhe Smiley e foi daí que veio depois o nome Miley. Filha do cantor country Billy Ray Cyrus e tendo como madrinha Dolly Parton, a mítica cantora country, Miley come­çou por pequenos papéis na televisão e no cinema até que, em 2006, com 13 anos, conseguiu ser protagonista na série Hannah Montana, do Disney Channel, que contava a história de uma miúda normal que à noite se transformava numa cantora pop. Miley saiu da televisão pa­ra o cinema e daí para a vida real: começou a vender discos e a fazer concertos. Hannah Montana tornou-se um ídolo juvenil, com cabe­lo comprido e ar doce, de acordo com as músicas delicodoces com rit­mos country e pop com que punha os miúdos dos 6 aos 14 anos a cantar. A série prolongou-se durante quatro temporadas, até 2011.

Com a ajuda da mãe e manager, Tish Cyrus, Miley começou a pre­parar a carreira em nome próprio. Em 2007, com 15 anos, lançou o primeiro single como Miley Cyrus, See You Again, que chegou ao top 10 da Billboard, a mais importante publicação musical dos EUA. Foi também nessa altura que surgiram as primeiras polémicas. Circularam na internet várias selfies de Miley, sozinha ou com ami­gas, em poses provocantes, em lingerie e fato de banho. No ano seguin­te, numa sessão com a fotógrafa Annie Leibovitz para a Vanity Fair, re­velou um pouco mais do que seria esperado. A Disney indignou-se e Miley pediu desculpa aos fãs por ambos os episódios: «Não sou per­feita e vou cometer erros. Nunca quis que nada disso acontecesse e la­mento imenso se desiludi alguém.» Era ainda cedo para Miley Cyrus assumir o lado rebelde.

No seu artigo na Vanity Fair, Bruce Handy considerava que Miley «era bem capaz de ser a maior estrela infantil de sempre desde Shirley Temple». Miley Cyrus já rendia valores astronómicos, quer se tratas­se de venda de discos, bilhetes de concertos, receitas de filmes, con­tratos publicitários e todo o merchandising à volta de Hannah Mon­tana. Em 2009, tornou-se a artista mais jovem de sempre a ter qua­tro temas a atingir o primeiro lugar da tabela de vendas nos Estados Unidos e a revista Time elegeu-a como uma das cem pessoas mais in­fluentes do mundo.

A transição de Hannah Montana para Miley já estava em curso. Em março de 2010 estreou A Melodia do Adeus, filme baseado num livro de Nicholas Sparks, e logo depois o terceiro álbum de estúdio, Can’t Be Tamed, em que começa a experimentar outras sonoridades e outra atitude. Quem esteve, nesse ano, no Rock in Rio Lisboa teve a certeza absoluta de que aquela que ali estava no palco não era Han­nah Montana. Só não viu quem não quis ver.

Em 2012, Miley mudou de editora – da Hollywood Records pas­sou para a RCA–, contratou Larry Rudolph, o antigo manager de Bri­tney Spears, e mudou de penteado. «Decidi cortar o cabelo e pintá-lo de louro, como se me livrasse do passado. As mudanças tinham de ser visíveis», explicou a cantora no documentário The Movement, produ­zido pela MTV, um filme de promoção do novo disco, Bangerz (lança­do em outubro). «Tive de fazer uma coisa que não tinha nada que ver comigo durante tanto tempo, que agora sinto que tenho de fazer isto. Estou num ponto da minha carreira em que sinto que posso ser exa­tamente aquilo que sou.»

O momento decisivo aconteceu na cerimónia dos prémios MTV, em agosto do ano passado. Miley, já com 20 anos, subiu ao palco com roupas mínimas, exibindo as longas pernas, mostrando a língua, ges­tos hipersexualizados e movimentos provocantes dançando com Robert Thicke. Nos dias seguintes não se falou de mais nada. O Pa­rents Television Council (associação da qual faz parte Billy Ray Cyrus, pai de Miley, que entretanto se distanciou da carreira e da ima­gem da filha) emitiu um comunicado preocupado pelo efeito que a atuação poderia ter nas crianças e jovens que assistiam à transmissão – este é um dos espetáculos de maior audiência nos EUA.

A cantora explicou que a atuação nos prémios MTV não passava disso mesmo: uma atuação. «É uma personagem. Eu não ando por aí vestida de urso de peluche e não costumo fazer twerk com o Robin Thicke. Se eu quisesse dar uma imagem sexy, teria feito algo diferen­te. Sei dançar de forma muito mais sexy do que fiz ali. Mas queria que fosse divertido.» A ideia era pôr o mundo a falar dela. Tal como fize­ram Britney Spears e Madonna com um beijo na boca.

Há explicações desassombradas para tudo isto. Dizem que esta é a velha história da menina presa por um contrato que assim que se liberta das imposições legais e se transforma numa jovem rebelde. «Cyrus entrou na idade adulta com o entusiasmo quase desesperan­te de alguém que está a fugir da prisão», escreveu a jornalista Zoe Williams no The Guardian, depois do concerto em Londres.

Uma das reações mais inflamadas veio de Sinéad O’Connor que es­creveu a Miley uma carta criticando o facto de se estar a prostituir à indústria. A cantora irlandesa usou um tom paternalista, aconse­lhando-a a não dar ouvidos aos «responsáveis do marketing» que apenas querem usar a imagem para ganhar dinheiro e não estão preocupados com a sua carreira musical. O que não deixa de ser irónico. Durante anos, quando era criança, Miley Cyrus sujeitou-se às re­gras da Disney e às decisões tomadas pelos pais, em seu nome, e nun­ca ninguém, na indústria ou fora dela, levantou a voz contra a explo­ração infantil ou se mostrou preocupado com o seu futuro. E, agora, maior e vacinada, quando anuncia que está finalmente a fazer o que lhe apetece, há quem alerte para os perigos de manipulação.

«Não peço desculpa por nada. Vou sempre fazer qualquer coisa diferente.» Esta foi a primeira reação a todas as críticas. No documen­tário The Movement, Miley diz que «cada decisão faz parte de um pla­no maior, faz parte do movimento. Todos os movimentos têm de ser perfeitos, tudo tem de ser novo e criativo e ir até ao limite.» Miley ad­mite que tem um propósito: chocar. Marcar a diferença.

Christina Aguilera, Britney Spears, Justin Timberlake, e antes destes também Kylie Minogue ou Michael Jackson (para referir apenas estrelas do mundo da música) tiveram de lidar com o facto de serem famosos desde crianças e de crescerem perante o públi­co. Ao contrário dos outros miúdos, que namoram e fumam às es­condidas, estas miniestrelas não têm hipótese de esconder os de­vaneios adolescentes.

Eurico Nobre, CEO do Grupo Ogilvy Portugal, e que há anos acom­panha de perto a indústria do entretenimento (quer como jornalista quer, depois, como diretor de Marketing Estratégico da EMI Music Portugal), não tem dúvidas. «O que ela fez nada tem de novo», diz. «A reinvenção, a surpresa e a polémica são parte da indústria do entretenimento. Basta olhar para Madonna. Mais do que uma estraté­gia tratou-se de um imperativo: a adolescente das séries da Disney deu lugar à mulher que a Maxim elegeu a mais sexy do mundo. A atuação nos VMA foi a forma que encontrou de dizer ao mundo que Hannah Montana era passado. De uma vez por todas. Tinha de ser algo assim, chocante e com impacte. Não aconteceu por acaso. Foi bem pensado e ainda melhor planeado.»

Talvez os fãs de Hannah que se reconverteram em fãs de Miley es­tejam demasiado próximos para avaliar, mas a verdade é que dizem compreendê-la. «A Hannah Montana era uma personagem», diz Guilherme, de 15 anos, de Lisboa, fã e adminis­trador de um site dedicado à cantora. «Foi a série que a lançou e infeliz­mente foi a imagem que lhe ficou associada. Mas a Miley era muito controlada pela Disney e não podia ser a pessoa que era. Claro que ela cresceu. Apesar das recordações, já ninguém pensa em Miley como Hannah Montana. Muitos criticaram mas todos crescemos e todos mudamos, é inevitável.»

Esta tese de que dantes é que Miley era usada como um boneco, cresceu e se tornou autêntica é levada à letra pelos fãs. Esta imagem mais sexualizada não vem de agora, mesmo na altura de Hannah Montana ela já era mais extravagante, mas não podia fazer tudo o que queria devido ao contrato com a Disney. Para os fãs que só a viam como Hannah Montana, pode ter sido um choque, mas nós, smilers mais antigos, já tínhamos um pouco a noção da extravagância de Miley e das suas atitudes. Temos crescido com ela», diz Iara Alexan­dra, 16 anos, de Setúbal.

E têm mesmo. Segundo Maria Almeida, de 20 anos, outra admi­nistradora do site, os fãs de Miley Cyrus são jovens com 15 a 20 anos que cresceram com a cantora e não se sentem minimamente choca­dos com esta transição. O que Miley captou foi, pelos vistos, o sinal dos tempos, acompanhando as miúdas da mesma idade com a sua hi­persexualização, expressa no modo como se vestem e como falam, do que falam… «Ela tem 21 anos e está a divertir-se, por isso podiam dei­xá-la um pouco em paz», diz Maria. «Ela ensina-nos que devemos vi­ver cada dia como se fosse o último, a divertirmo-nos e a aproveitar­mos a vida», acrescenta Guilherme.

Alguns mais novos, que só se tornaram fãs de Hannah Montana na fase final da série, olham com alguma estranheza para esta nova Mi­ley, com quem não se identificam. São pré-adolescentes, descontentes com a mudança de estilo da cantora. Mas este já não é o público que Mi­ley procura. E deseja. Mas as coisas não são tão simples. As atuações de Miley são bastante pensadas. Todos os passos são ponderados. Para fazer Bangerz, o quarto álbum de estúdio, ela mergulhou na cultura hip hop, que é a cultura dominante entre os jovens americanos, e rodeou-se de gente que sabe o que está a fazer, como os produtores Mike Will Made It e Pharrell Williams. O álbum vendeu 273 mil cópias na pri­meira semana nos EUA e as críticas foram bastante positivas. Seis ho­ras depois do lançamento do single We Can’t Stop, a música já estava no top do iTunes em mais de trinta países, incluindo os Estados Unidos e o Brasil. E rapidamente chegou ao topo do iTunes mundial. E num só dia o vídeo conseguiu mais de onze milhões de visualizações.

E como Miley parece ter tudo planeado, para realizar o vídeo de Wrecking Ball foi buscar o fotógrafo e realizador Terry Richardson, conhecido por explorar a nudez e a sensualidade das modelos. Nin­guém se admirou, por isso, que ele a tivesse colocado a baloiçar numa bola de demolição, nua, apenas com umas botas Dr. Martens. O vídeo teve 19,3 milhões de visualizações em menos de 24 horas e chegou aos cem milhões em seis dias.

Entretanto, a cada concerto da Bangerz Tour, Miley parece criar um novo foco de polémica. Chega ao palco descendo num escorre­ga em forma de língua. Simula fazer sexo oral com um bailarino mas­carado de Bill Clinton. Cavalga sobre um cachorro-quente gigante. Despe-se cada vez mais. «Não podem dizer que não vos avisei», es­creveu a cantora no seu Twitter, logo após o lançamento da Bangerz Tour e as primeiras reações mais inflamadas. «Agora, sentem-se, re­laxem e aproveitem o espetáculo.»

No fundo, está só a ser uma estrela pop no século XXI. Lauren Zu­pkus, do The Huffington Post, perguntava há dias se o que Miley Cyrus está a fazer será assim tão diferente do que faz Lady Gaga ou do que fez Madonna, da lap dance de Britney Spears na sua Femme Fatale Tour (2011), da coreografia altamente erótica de Rhianna para Skin ou do que costumam fazer Nicki Minaj ou Katy Perry ao vivo.

A grande diferença é que, este ano, toda a gente está a falar de Miley Cyrus. Ela tem 18,1 milhões de seguidores no Twitter, 10,6 milhões no Instagram e 47 milhões de likes no Facebook. Tem impacte nas redes sociais, esgota concertos e está a lucrar com este falatório todo. «Já ninguém se lembra de Hannah Mon­tana e isso era exatamente o que ela queria», diz Iara, que hoje es­tará no Meo Arena para ver a cantora. Aos 21 anos, Miley Cyrus está onde quer. Nas bocas do mundo.