Maria Teresa Horta

A 4 de dezembro, quinta-feira, é lançado o novo livro de contos de Maria Teresa Horta, Meninas, em que a poeta e escritora faz a catarse da sua infância, só possível após 17 anos de psicanálise. Meninas que são ela, mas que também são outras, inventadas ou recriadas, mas sempre reflexo do que se tem feito ao longo dos séculos a quem nasce mulher.

Proíbem-me e eu incandesço» devia ser o titulo de todas as entrevistas a Maria Teresa Horta. É a frase que melhor a define, mas repetir títu­los não fica bem. Escritora, poeta do amor e do erotismo e do sexo, com 27 livros de poesia pu­blicados e nove de prosa, dois dos quais lhe va­leram a perseguição da PIDE e da censura – Mi­nha Senhora de Mim e Novas Cartas Portuguesas, que escreveu com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Cos­ta e que deu origem ao célebre caso das «Três Marias» –, Maria Teresa Horta continua aos 77 anos com o espírito indomável e apaixonado que a fez lutar pela liberdade antes do 25 de Abril e aceitar, aos 15 anos, de um desconhecido com ar de Che Guevara uns papéis que de início não sabia o que eram, mas que, quando percebeu que eram da oposição ao fascismo, tratou de distribuir. «No Fili­pa de Lencastre, os rapazes ficavam à espera das raparigas para lhes levar as pastas. E um dia, ia a sair e dou conta de que estou a ser seguida por um jovem, lindo, parecido com o Che (fiquei logo apaixonada), que me passa uns papéis para a mão e diz para os esconder e depois distribuir. E eu distri­buí, nos prédios da Praça de Londres que não tinham porteiro. Começou assim a minha atividade política, aos 15 anos.» Antes disso, a infância. Tempo de Meninas.

No seu novo livro Meninas está a sua infância, o seu pai, a sua mãe, a sua avó, a separação dos seus pais, mas sobretudo a sua mãe. Por­que não o dedicou a ela?
_Curioso que nem pensei nisso. A única dedicatória que todos os meus livros têm, de há 50 anos a esta parte, desde que nos apaixo­námos, é ao Luís [de Barros], o meu marido. A não ser a ele, a pessoa a quem poderia ser dedicado seria à minha ex-psicanalista, a Ma­ria José Vidigal.
Que vai apresentá-lo a 4 de dezembro, dia do lançamento. Porquê?
_Porque lhe é muito devido. A minha mãe poderá ser musa, sobre­tudo na primeira parte, mas não sinto que lhe deva este livro. A mi­nha mãe não cuidou de mim, eu é que cuidei dela. E se ela vivesse, provavelmente ser-lhe-ia difícil lê-lo.
E ao seu pai?
_Também. O meu pai era um homem muito pouco afetuoso. Tí­nhamos uma relação muito conflituosa.
Só conseguiu escrevê-lo agora, que eles já não estão cá?
_Ah sim, não seria capaz de o ter escrito antes. Amo os meus pais e magoá-los estava fora de questão. A única pessoa que poderia estar viva para ler este livro seria a minha avó paterna, por quem tenho uma adoração enorme, e quem ler o livro percebe isso.
Foi com a sua avó que aprendeu a ler. Foi ela que lhe deu a literatura?
_Sim, a minha avó era uma mulher extraordinária, foi sufragista, e era ela que me lia e ia-me dizendo os sons das letras e assim apren­di a ler sozinha aos 4 anos, quando os outros meninos só aprendiam aos 7. Às tantas lia aqui, mas não lia ali, e quando o meu pai deu por isso, contratou uma professora para pôr ordem naquela balbúrdia. Em 15 dias, estava a ler e a escrever.
E deixou de dizer que era muda.
_Sim, é uma história deliciosa, essa. Eu dizia que era muda e o meu pai respondia «não, a menina não é muda porque as pessoas mudas não falam». E eu teimava. Foi uma das coisas que percebi com a psi­canálise: deixei de dizer que era muda quando comecei a escrever. Era um modo de expressão que me faltava.
A separação dos seus pais mudou-lhe a vida?
_Sim, perdi a mãe e a avó ao mesmo tempo. A minha mãe saiu de casa e a minha avó morreu um mês e tal depois. De repente, fiquei com o meu pai e com as madrastas: a madrasta da minha mãe, ter­rível, que passou para mim e está no conto Perecível, das Meninas, e a minha madrasta.
A sua madrasta era a da Branca de Neve?
_Era, com maçã envenenada e tudo. E daí o conto Branca de Neve. Foi o último a escrever, mas tinha de estar neste livro. Era uma his­tória que eu tinha de contar. Um escritor quando escreve também se liberta. Por isso é que este livro tinha de ser escrito.
E o seu padrasto?
_Era um óptimo padrasto, mas era fascista, era diretor da Assis­tência aos Inválidos e tinha uma arca com os discursos todos dos ditadores, o Hitler, o Mussolini, o Salazar, aquilo não ardeu não sei como, e tinha uma figura do Estaline virada para a parede, de cas­tigo. Ele fascista e eu a meter debaixo da cama os panfletos políti­cos de oposição ao regime que distribuía às portas, com 15 anos.
Foi preciso coragem para a sua mãe, no fim dos anos 1940, em Por­tugal, sair de casa.
_Muita coragem. Fiquei sempre muito dividida. Foi ela que saiu de casa e deixou o meu pai e nunca me conformei. Uma vez, já eu era mulher e mãe, encontrei uma pessoa do passado que conhe­cia os meus pais e perguntou por eles e eu respondi que estavam bem, mas que não me conformava com a separação, como se tives­se sido ontem, passados aqueles anos todos, está a ver o que é? Ape­sar disso, protegi a minha mãe e defendi-a perante a família, des­de pequenina. Eu era aquela que comia as cartas que ela me escre­via, como no conto Perecível, para ninguém saber onde ela estava. E para a incorporar, porque tinhamuitas saudades e via-a em cada canto, em todo o lado.
Tomou partido?
_Curiosamente, tenho muito mais que ver com o meu pai, intelec­tualmente, do que com a minha mãe, mas ele tinha tudo. Era inte­ligente, era um grande médico, uma grande figura, toda a gente o admirava, ele sabia tudo, mandava, desmandava, tinha opiniões. A minha mãe era o lado frágil da história, teve uma coragem que não era hábito ter-se e pagou por isso. Ficou sem ninguém, sem uma amiga, sem dinheiro, a família toda de costas voltadas para ela, a lutar para nos ver, sempre, sempre. Na tal carta que comi ela dizia-me isso, que estava a lutar por nós. Conseguiu ficar comigo, que era a mais velha, e ver as outras uma vez por semana. Tinha de a proteger. E isso fez-me crescer. Fiquei sempre com ela, até à mor­te. Digamos que é uma história de amor. O meu pai dizia que se esqueceram de cortar o cordão umbilical que me ligava à minha mãe e, sim, ela sabia que eu estava incondicionalmente ao lado dela.
Mas quando fala dela, no seu livro, surge-nos uma mulher muito bo­nita, volúvel, distante.
_Era uma mulher distraída consigo própria. Foi a minha avó que me criou. Ela alindava. Teve-nos muito cedo. Ela e a Natália [Cor­reia] eram consideradas, na altura, as mulheres mais bonitas de Lisboa, uma loura e outra morena. Iam à ópera e ficavam à espe­ra uma da outra para verem como iam vestidas. A minha mãe era uma mulher distraída consigo própria e o meu pai um homem dis­traído consigo próprio…
Foi feliz, a sua mãe?
_Acho que não. Morreu com 94 anos e a última pergunta que me fez foi: «O que é que eu fiz da minha vida?» Eu res­pondi: «Fez o que fez e fez muito bem. Fez a sua escolha.» Neste momento, foi a mulher que falou, porque a filha diria: «Que pena não teres ficado.» Teria sido tudo muito mais fácil, mas se calhar não estava a falar aqui consigo agora.
Por isso, precisou de 17 anos de psicaná­lise para escrever as Meninas?
_Sim, as meninas que ali estão, sobre­tudo na primeira parte, são partes de mim que surgem com a psicanálise. Houve uma relação muito especial com a Maria José Vidigal, mãe psicanalítica, mas também a mulher que escolhi para fazer uma viagem comigo. A partir des­sa aventura espantosa que foram aque­les anos da psicanálise, a minha escrita passou a ser muito mais lúcida e curio­samente com um distanciamento mui­to maior de mim mesma. A psicanálise dá isso, o examinar a outra que somos, com o distanciamento que nos permi­te descobrir coisas em nós e verbalizá-las. Entender-me foi o que fiz na psica­nálise. E ao entender-me, entendo pe­la primeira vez que em mim não existo eu, mas sim eu, outra e outra, que aca­bo por verbalizar no meu livro de poe­sia Inquietude, coisa que não tinha sido capaz de fazer até aí.
Que idade tinha quando começou a fazer psicanálise?
_Tinha 39.
E porque sentiu essa necessidade?
_Quando o meu filho, que é uma gran­de paixão da minha vida, começou a entrar na adolescência, per­cebi que a minha adolescência não estava resolvida, porque à fala adolescente dele eu dava uma resposta adolescente. Resolvi que ti­nha de me entender para poder entender os outros.
A adolescência é um período da sua vida do qual quis sair depressa. Porquê?
_Porque não gostei nada. Foi muito desinteressante. De repente, tive de deixar a minha infância para trás, com 9, 10 anos, porque tinha de me defender, e ao tentar defender-me cresci. Acho que to­da a minha vida tive de me defender. A minha única defesa era a minha avó paterna. O conto Perecível marca essa passagem. Na ida­de oficial da adolescência já eu estava a caminho de ser uma mu­lher adulta.
Na adolescência, davam-lhe dinheiro para comer na escola, que gas­tava em livros. Foi a leitura que a salvou?
_Absolutamente. Como muito mal desde pequenina, para deses­pero de todos à minha volta, por isso não me custava trocar o al­moço por livros. Lembro-me de ler Cesário Verde aos 14 anos ob­sessivamente. Entrava no meu quar­to, fechava a porta à chave, coisa que a minha mãe detestava, e lia senta­da na borda da cama. Lia e lia e lia e lia até desentender o que estava a ler. Não sabia porque o fazia, mas era um pra­zer imenso. Percebi depois que estava a incorporar a poesia. Passei pela fa­se do Cesário, depois o Antero, o Ca­mões sempre… Salvou-me, na adoles­cência, a leitura obsessiva que sempre fiz desde muito pequena, e salvou-me a escrita.
Mas também escreve desde muito pe­quena, não é?
_Sim, escrevia aquilo a que eu chama­va romances. Perguntavam-me: «En­tão, o que estás a fazer?» E eu respon­dia: «Estou a escrever um romance.» Claro que nunca ia a mais do que cinco ou seis frases, mas todos os dias escre­via e aquilo fazia-me sentir uma gran­de escritora.
E poesia, quando começou a escrever?
_Aos 14 anos, precisamente. Depois de muito ter interiorizado todos aque­les poetas maravilhosos portugueses, um dia vou com o meu pai, as minhas ir­mãs e a minha madrasta para o Hotel do Buçaco passar dois ou três dias, acordo muito cedo – sempre acordei, antes de toda a gente, até hoje –, saio com papel e lápis e escrevo o meu primeiro poema na mata do Buçaco. Foi uma descoberta incomparável, uma liberdade…
A poesia é-lhe intrínseca?
_É a minha voz natural, aquela que me sai todos os dias, que sara a ferida, que compensa tudo. A poesia ensina a vo­ar, é a liberdade total, perante as pala­vras, perante os ritmos interiores, é a vida mesmo. A partir daque­le momento soube que há sempre aquele lugar, que é o paraíso pa­ra mim, para onde posso ir. Acontecem-me coisas horríveis, mas eu tenho sempre aquele lugar, que é meu.
E a prosa?
_Costumo dizer que eu sou a minha poesia, e para a prosa, para a ficção, vou poeta, levo a minha poesia toda atrás de mim. É essa a mais-valia do poeta. A prosa é um prazer físico imenso porque aí não sou eu diante de mim própria, mas diante da outra, sou eu na conquista de um terreno, que desde pequena achava que era o meu, e para onde vou com todas as histórias que tenho dentro de mim. Sou uma contadora de histórias e quando me sento para escrever um conto ou um romance ou uma novela estou perante o desafio de escrever aquilo que conto habitualmente às pessoas. E aquilo que calo. Este livro, Meninas, é muita coisa que eu calo.
Quem são estas meninas quando não são a Maria Teresa?
_As meninas da primeira parte são eu, as da segunda também têm partes de mim, mas são sobretudo o reflexo da­quilo que se tem feito ao longo dos sé­culos a várias meninas. A violência, por exemplo, em relação a uma Carlota Joaquina que as pessoas habitualmen­te detestam, esquecendo-se de que foi arrancada da sua casa, da sua família, do seu país e da sua língua para vir pa­ra Portugal, um país cheio de missas e de promessas e de rezas que ela não percebia, e casar-se com um monstrinho que era o D. João VI. Essa menina do retrato não tem nada que ver comigo, a não ser no desafio que também senti toda a vida: fazer aquilo que conside­ro que tenho de fazer, doa a quem doer e doa-me a mim também.
«Proíbem-me e eu incandesço.» Esta frase define-a?
_Sim, e aliás isso está num dos contos deste livro, chamado Maria do Resgate, a menina que abre a porta aos anjos. Lembro-me de ser muito pequena e o meu pai, que era médico, chegar do hospital e perguntar o que eu tinha feito durante o dia e eu responder: «Ho­je bateram à porta, fui abrir e era um anjo.» E o meu pai dizer «es­ta menina é estranha». Dizia isso muitas vezes. Mas eu mantinha até ao fim. A Maria do Resgate é a menina que abre a porta aos an­jos e que, desde muito pequenina, quando lhe ralhavam ou a obri­gavam a fazer alguma coisa, incandescia, como eu. Quando me proibem, incandesço, é qualquer coi­sa que só sei explicar assim, porque é de tal maneira luzente dentro de mim. Se me dão uma ordem tenho muita di­ficuldade em não fazer exatamente o contrário, ainda hoje, com esta idade.
Numa das primeiras histórias conta o seu primeiro ato de rebeldia, quando fu­giu a calçar as sandálias que a sua mãe mandou calçar.
_Sim, aquela menina que trepa a pa­rede, no conto Desobediência, sou eu. Aconteceu mesmo. Vinha com a minha mãe e ela disse: «Te­resinha (não Lucinha), calça as sandálias», eu devia ter 1 ou 2 anos, e atravessei a rua toda e a casa toda e trepei a parede, pa­ra não calçar as sandálias. Assustámo-nos as duas, mas só des­ci quando ela disse que já não era preciso calçá-las. Isto ficou-lhe como exemplo de que há outras maneiras de eu fazer o que as pessoas querem, mas nunca mandando-me fazer. Aí incandesço e é terrível, porque de vez em quando custa-me caro.
Como quando escreveu o Minha Senhora de Mim [1971, poesia erótica]?
_Sim, o Minha Senhora de Mim foi apreendido pela PIDE, ameaça­ram a Snu Abecassis de lhe fecharem a editora se publicasse mais al­guma coisa minha, recebia telefonemas em casa às tantas da manhã a insultarem-me, n’A Capital, onde trabalhava, a telefonista tinha de fazer a triagem das chamadas, foi um período terrível, fui espanca­da na rua. E quando aqueles homens me estão a bater e dizem «é para aprenderes a não escrever como escreves» é determinante. Ai, escre­vo, escrevo. É daí que nascem as Novas Cartas Portuguesas [com Ma­ria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa].
Nunca teve medo?
_Claro, antes do 25 de Abril todos nós, que nos opúnhamos ao fascismo e lutá­vamos pela liberdade, tínhamos medo, mas uma coisa é ter medo, outra é, por causa disso, ficarmos fechados em casa, sentadinhos e bem comportados e não fazermos nada. O medo era inerente ao nosso trabalho. Todos os exemplos de lu­ta que tenho daquela altura, mesmo es­critores, como a Natália [Correia], a So­pia [de Mello Breyner Andresen], o Ur­bano [Tavares Rodrigues], todos tinham medo de ser presos e torturados pela PI­DE e de ir parar a Caxias e ficar lá a vida toda, mas não fazer nada seria uma co­bardia, e isso não se nos punha sequer. A primeira coisa que me define é ser uma lutadora pela liberdade. É aí que se inse­re-se o feminismo.
Maria Teresa Horta é sinónimo de femi­nismo em Portugal. Mesmo quando ou­tros se demarcaram, manteve-se firme. Ainda há muito por fazer?
_Eu já nem respondo quando me per­guntam se o feminismo ainda é preci­so. Não tenho paciência. Ai não é preci­so? Todos os dias as mulheres perdem os empregos e não é preciso? Continuam a receber menos pelo mesmo trabalho e não é preciso? Apanham pancada e não é preciso? São mortas e não é preciso? Os homens querem determinar-lhes a se­xualidade e não é preciso? É óbvio que é preciso. Na luta das mulheres anda-se quatro passos para a frente para se recu­ar três e meio. É muito difícil.
Houve alguns avanços, apesar de tudo.
_Pois, a história das universidades. Cla­ro que estão cheias de mulheres, porque agora já podem entrar, com um atraso de séculos. Por exemplo, as mulheres chegaram à literatu­ra a pulso, aldrabando, mentindo, chamam-lhes as ladras das pala­vras porque as palavras são dos homens. Para escrever tinham de ter pseudónimos de homens. E ainda hoje continuam a existir espaços da literatura que são proibidos às mulheres, não fica bem. O erotismo é um deles, as mulheres que escrevam poesia ou contos ou roman­ces eróticos incomodam. E isso acaba por atingir a própria mulher. É difícil, é preciso ter muita persistência. A minha poesia erótica in­comoda. A família alargada quase nunca fala nisso. O meu livro Des­tino foi um sucesso familiar, toda a gente me felicitava, estranhei, mas depois percebi: tem menos poesia erótica. É impressionante.
Nunca hesitou?
_Toda a minha vida tive medo de ter medo. Talvez seja muito incons­ciente, mas o que sempre temi foi que o medo me pudesse impedir de fazer o que quer que fosse. Quando chego à Minha Senhora de Mim e percebo que não, não é aquilo que tenho escrito até agora que quero, o que quero é encontrar a minha linguagem, a minha palavra, o meu discurso, a minha poesia muda. «Ah, mas isso as mulheres não fa­zem.» Não me interessa, e apanho e sou insultada, mas vou em frente. Isso é a de­sobediência natural em mim. Sou uma mulher desobediente, sempre fui.
E vem de onde, ou de quem, essa rebeldia?
_Não sei, mas sempre fui assim e nunca fiz nada para deixar de ser. Houve mui­tas coisas em mim que achei que podia e queria mudar, mas essa desobediên­cia, essa chama, que é o âmago de mim e que tem que ver com a minha literatu­ra e com a minha vida, nunca quis mu­dar. Nunca tiro a escrita da minha vida. A mulher que vai para a luta política é es­critora, é poeta. A menina que sobe a pa­rede já é a menina que vai escrever a Mi­nha Senhora de Mim um dia. E a menina que vai escrever a Minha Senhora de Mim é a que escreve As Luzes de Leonor e as Meninas. Não há grandes diferenças en­tre a poetisa e a mulher, a amante e a es­critora. Sou uma única.
Para muitos deve ser estranho que uma mulher assim, que escreve o amor e o ero­tismo como a Maria Teresa, seja casada com o mesmo homem há 50 anos. Como é a sua história de amor com o Luís?
_Como é esta história de amor? Sou uma mulher apaixonada, mas para me apai­xonar assim, o homem teria de reunir várias caraterísticas que nunca acredi­tei que pudessem existir num homem só. Até conhecer o Luís, fugi, recuei, ele também. Eu tinha 25, ele tinha 22. Mas foi impossível. Foi uma paixão e a paixão não se explica. Ele é aquilo que eu pre­cisava, é aquilo que me convoca, que me entontece, que me dá vertigem, ainda hoje. É uma paixão, não é um amor.
E como é que se faz durar uma paixão tanto tempo?
_Não sei, comigo não passou e não é uma ideia, é verdade. Posso es­tar muito serena, mas se de repente penso que perco o Luís fico lou­ca, ensandeço, é estranho, não tenho controlo, fico apavorada. É co­mo se me perdesse a mim. Há qualquer coisa nele que me enlouque­ce. Toda a poesia de amor que escrevo é para ele e é sempre diferente e nunca digo o Luís tal como ele é, nunca digo tanto quanto sinto por ele, por isso volto sempre a tentar dizer e fica aquém passados 50 anos.
A Leonor, marquesa de Alorna, também era uma mulher apaixonada, cultíssima, volunta­riosa, política, escritora, poeta, revolucioná­ria, feminista, teimosa, desobediente, indo­mável. Era uma mulher muito à frente do seu tempo. Consegue imaginá-la hoje?
_Consigo. Sonhava muitas vezes com ela, sempre sem rosto, aqui nesta sala, em con­traluz, e quando acabei as Luzes de Leonor tive um sonho em que a vi e falei com ela. Eu estava no computador a tentar enviar o li­vro para a editora sem conseguir e a Leonor aparece, com as suas saias antigas, e diz: eu levo-te. Saímos as duas, ela mete-se no car­ro e é ela que guia. É a autorização dela para entregar o livro. E diz muito sobre ela, que é mentora, que é minha avó e que, com as suas saias antigas, é desta época.
Quando é que começa a sua história com a Leonor?
_O meu pai tinha uma biblioteca magnífi­ca, mas não tinha nenhuma mulher entre os autores, e eu um dia, pequenina ainda, per­guntei à minha avó e à minha mãe se as mu­lheres não escreviam. E a minha mãe res­pondeu logo: «Então, não escrevem, queres ver?» E mostrou-me um livro sobre a mar­quesa de Alorna, que tinha um retrato dela. Foi a primeira mulher escritora de quem vi o rosto e de quem li os poemas. Começou aí o meu caminho até ela. Quando comecei a escrever o meu romance da Leonor, a minha mãe deu-me esse livro, que foi um marco da minha infância. Havia uma grande vontade de me unir àquela avó, com quem me identi­ficava tanto, de a ir buscar onde ela estava e trazê-la para a vida outra vez.
Passou 14 anos com ela e começou a escrever o livro pouco tempo depois de ter tido um cancro. Foi também uma afirmação sua de vi­da? Mais uma rebeldia?
_Tive cancro da mama há 18 anos. Sim, talvez tenha sido então que começo a pensar na Leonor. Foi um apoio, sim, para passar aqueles anos. A ideia de escrever sobre a Leonor, sabendo que me tomaria tanto tempo, já era uma promessa a mim própria de que ia conseguir. E consegui. Foi capítulo a capítulo, cada um deles enviado pelo Luís para a editora porque eu não era capaz de me separar dela assim. Quando seguiu o primeiro capítulo, sentei-me e pus a cabeça no colo e tapei os ouvidos como se não quises­se ouvir nem ver.
Leu o livro depois de escrito?
_Nunca leio, porque imediatamente acho que o erro vai aparecer e desespero porque já não posso fazer nada. Já li pedaços. Se me perguntar qual é o capítulo da Revolução Francesa, digo-lhe que é o dezassete porque é perfeita ficção. A Leonor está em Marselha e deixa para trás o marido e os filhos, aliás, como fez toda a vida, e vai para Paris. Isso sabe-se. Mas não há uma palavra dela sobre isso. Ninguém sabe o que ela fez lá. Sabe-se que assistiu a tudo, des­de a tomada da Bastilha, sabe-se que conheceu a Olympe de Gou­ges, a Théroigne de Méricourt, mas não se sabe mais nada, e esse é aquele espaço vazio que o ficcionista adora.
Mas ela tinha diários e escrevia cartas e havia os poemas.
_Sim, a Leonor queria a posteridade, era a palavra dela. Carta sim, carta sim, lá está a palavra posteridade. Os dois testamen­tos que faz nada mais são do que testamentos para a posterida­de, não lega nada a ninguém, só fala e diz coisas, o que fez e acon­teceu, o que pensa da vida. No fundo, toda a vida dela está do­cumentada, deixou tudo escrito e espalhado para que houvesse vários caminhos para chegar até si. A Revolução Francesa foi único momento em que estaria tão distraída e deslumbrada que nem se preocupou em registar. E eu fui pelo Michelet, que é um ficcionista daquele momento histórico. É ele que me leva para dentro da Revolução Francesa. Foi um dos momentos de maior prazer daquele livro.
O seu primo Fernando Mascarenhas, marquês da Fronteira, desa­parecido recentemente, era conhecido como o marquês vermelho. A Maria Teresa é uma mulher de esquerda, feminista, foi militante do PCP. Foi essa a herança de Leonor?
_Provavelmente será, pela admiração que tínhamos por ela. O Pa­lácio [de Fronteira] é o lugar das minhas origens, foi lá que passei a minha infância. Não tentei ignorar isso, mas não me interessava que as outras pessoas soubessem. Sou Maria Teresa Horta por al­gum motivo. Escolhi o nome do meu pai e não o Mascarenhas, que só vem ao de cima com a Leonor, e isso teve que ver com a constru­ção do ideal da liberdade e do trabalho. Aquele lado da minha fa­mília trabalhava pouco. O lado do meu pai é o lado do trabalho e da cultura. O meu pai era um homem cultíssimo, adorava ler, e o que me passou não foi a rigidez e o la­do mais duro que tinha, mas os instru­mentos do trabalho e da vida, os prin­cípios, da liberdade, da igualdade, da lutar por aquilo em que acreditamos, a consciência de que estamos aqui pa­ra alguma coisa. Daí não me ter chega­do a obra escrita, eu tinha de fazer algu­ma de real, de físico, lutar por uma cau­sa, mas a sério.
Daí a sua militância no PCP?
_Sim, e quando entrei queriam pôr-me nos intelectuais e eu disse que nem pen­sar, era jornalista, queria trabalhar, não queria discutir. E fiz tudo, colei carta­zes, distribuí o Avante!, trabalhei, fiz tu­do. Há um lado físico meu que é mui­to importante, mesmo na construção de um ideal. A Natália Correia pergun­tava-me: «Mas porque é que a Teresa, uma mulher da liberdade, vai para o PCP?» Porque precisava de construir qualquer coisa real. Sou uma mulher da liberdade, sou uma poetisa, mas que­ria mais do que isso, queria ação, queria que combater pela liberdade fosse mes­mo combater pela liberdade e não só as­sinar papéis.
E o afastamento do PCP deveu-se a quê?
_Tem que ver com a ideia e com a reali­dade. O PCP teve uma importância pri­mordial na nossa libertação. As pessoas falam do 25 de Abril, mas este só acon­teceu porque houve um trabalho para trás e esse trabalho foi feito sobretudo pelo PCP, não venham dizer que não. E era muito perigoso aquilo que o parti­do fazia. Portanto, tenho uma admira­ção enorme pelo PCP, o problema é que de vez em quando a realidade fica aquém do que se idealiza. E teve também que ver com a luta das mulheres, em relação à qual acho que o partido ficou muito parado. Mas não saí zangada, foi uma coisa natural. Agora, se me perguntar se mais alguma vez vou para um partido, digo-lhe que não. E este é o momento em que a Natália Correia diria: «Vê como eu tinha razão?»
A Natália Correia foi uma figura importante na sua vida. Foi a única que teve coragem de publicar as Novas Cartas Portuguesas.
_Foi. Havia três editores na minha sala à espera do livro e ela foi a única que disse logo que sim. Os donos da editora não queriam e ela disse que se não publicassem saía. E eles publicaram. Com muitas peripécias pelo meio, mas publicaram. Pensavam que ti­nham sido cortadas imensas passagens, mas a verdade é que gra­ças à Natália saiu tudo tal como escrevemos. De maneira que a censura apreendeu, fomos a julgamento e foi a história que se sa­be. E ela em tribunal assumiu a culpa toda, mas eles estavam-se nas tintas, queriam era as autoras e foram dois anos daquele pro­cesso terrível. Mas ao mesmo tempo empolgante. Havia uma luta e eu preciso sempre de uma boa luta.
Nunca se cansa?
_Como diz o Luís, eu acordo de ma­nhã a reclamar e deito-me a reclamar. Sou uma reclamadora nata. O Luís, co­mo está apaixonado por mim, nota, mas aguenta, para os outros deve ser um bo­cado cansativo. Eu e o Luís é outra his­tória. Eu muito faladora, ele muito ca­lado. Completamo-nos. A minha vi­da sem ele seria o caos e a vida dele sem mim seria um aborrecimento. É isto.
O Luís ainda trabalha?
_Não, agora é só meu. Estamos jun­tos o dia todo e às vezes pensamos: por­que é que não tivemos isto mais cedo? A voragem, no pós-25 de Abril, da lu­ta política, das reuniões… houve mui­tos casais que se separaram, nessa al­tura. Nós ficámos juntos e isso também implica uma sabedoria e a consciência da importância de não deixar escapar o amor.
Era isso que perguntava há pouco, um amor de 50 anos não implica uma cons­trução, uma decisão?
_Sim, mas há paixão. Nunca acreditei naquela história de que o amor passa e fica a amizade e muito menos de que a paixão não dura. Sempre acreditei que se morria de amor. Se calhar por causa da literatura. E digo isso num poema: «Morrer de amor é a morte que eu me­reço». Acredito no amor eterno. Mor­ro amando, porque a eternidade acaba quando morro. Tudo o resto é a posteri­dade, por que ansiava a Leonor.
É feliz, a Teresa?
_O que é isso da felicidade? Mas sim, acho que sim, seria muito injusto dizer que não. Tenho o homem que amo ao meu lado e que me ama, te­nho um filho que é da condição dos anjos e uma filha única, a mi­nha nora, que me apareceu à porta tal como eu gostaria que ela fosse, tenho os meus netos maravilhosos, escrevo e tenho um pra­zer imenso em escrever, tenho uma editora fantástica que me atu­ra tudo porque eu sou intratável como autora, tenho amigas que são o doce da vida, e até vivi para ver o meu país livre. Portanto, sim, sou feliz.

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SE CALHAR FALEI DEMASIADO DE MIM»
Há meses que lhe pedi a entrevista, mas faltava o gancho. Esperei e aparecem as Meninas. Ideal para falar com a mulher que entrevistei há anos para uma reportagem sobre feminismo em Portugal e que acabou por ter como fio condutor as «três Marias». Li dela as Novas Cartas Portuguesas, as Luzes de Leonor, poesia erótica aos pedaços. As Meninas chegaram apenas um dia antes da entrevista e não sei ler na diagonal. Li-o por metade, mas bastou para a conversa correr e nem se dar pela passagem do tempo. Duas horas e tal. Falámos de tudo. Do livro, da poesia, da prosa, da Leonor (Marquesa de Alorna), do feminismo, de política, do país, da família, de abandonos, de amor, de sexo, de prazer, de paixão, da Maria Teresa, do Luís. O Luís. O espanto que é uma paixão assim. Cinquenta anos. O espanto que é a senhora de 77 anos com quem conversamos transformar-se, à medida que fala, numa miúda. Há pessoas que não envelhecem. Maria Teresa Horta (ao centro, na fotografia, com Maria Isabel Barreno, à esquerda, e Maria Velho da Costa, à direita) é uma delas. «Se calhar falei demasiado de mim», disse, à despedida. Não.
Catarina Pires