Irmãs caçadoras de tesouros

Quando eram miúdas, a tia Mimi proibia-as de chegar perto do requintado serviço de chá. E como o fruto proibido é o mais apetecido, tornaram-se umas apaixonadas por tudo o que é vintage. Paixão que transformaram agora em negócio.

Ana Carolina Mendonça adora receber telefonemas sobressaltados pedindo viagens ao passado. «Preciso com urgência de acessórios dos anos 1970, o que tens?» ou ainda «Arranjas-me uns óculos de aviador dos anos 1920?» são perguntas que pingam de vozes stressadas do outro lado da linha. Amigas e conhecidas habituaram-se a ter por perto o talento de caçadora de tesouros desta socióloga de 35 anos, que nunca recusa uma missão. Há pouco tempo, conseguiu convencer a irmã Patrícia Jorge, colecionadora ávida como ela de peças e acessórios vintage, a entrar na aventura de criar uma loja.

Nasceu assim a Cata-Vento, que é do Porto, mas foi gerada em Madrid, para onde Ana levou a irmã em viagem, como prenda de Natal. «Estávamos as duas sozinhas e eu aproveitei, foi como um pedido de casamento», conta. Patrícia, formada em Relações Internacionais e com uma carreira na área da gestão de projetos, e-learning e formação, resistia a dedicar-se mais intensamente à sua paixão. Era assídua nos amanheceres da Vandoma, a famosa feira de velharias da Sé do Porto. Gostava de acompanhar a irmã nas suas compras e vendas numa marca que criara antes (a Brilhantes Diamantes), sentia uma atração fatal por cerâmica portuguesa antiga, mas foi o desemprego que levou esta mãe de uma menina de 4 anos a considerar usar o seu faro de forma mais intencional.

Em boa hora o fez. Patrícia imprimiu organização e método na acumulação criativa da irmã, a quem custa muito separar-se daquilo que encontra aqui e ali, nas feiras de velharias ou nas suas idas a vários lugares, à conta da investigação em Sociologia. «Quase tudo o que compro é para mim, tenho muita dificuldade em desfazer-me das coisas», admite Ana, por essa razão sentindo especial prazer em vender a pessoas conhecidas, para poder vê-las passear os seus tesouros. «Fico sempre muito contente quando me cruzo com alguém a usar um vestido ou uma carteira que eu encontrei.»

O que move as irmãs Mendonça é comum a quase todos os que cresceram nos anos 1970 e 1980: a pura nostalgia das cores, formas e padrões dessa época. «Comecei a comprar todos os objetos que me lembravam a casa dos meus avós paternos», recorda Ana, que fez a sua primeira aquisição vintage na feira da Vandoma, em 2007. Foi um serviço de louça de Sacavém, uma vingançazinha carinhosa da tia-avó Mimi, que não as deixava aproximar da mesa posta com o melhor serviço de chá. Era uma modista afamada de Oliveira de Azeméis, com o nome artístico de Ma-ria de La Sallete Costa.

«A tia Mimi era uma modista de prestígio e todas as senhoras dos lugares à volta iam lá», recordam as irmãs, que passaram boa parte da infância nessa casa onde viviam os avós. A sala de costura era um lugar fascinante, porém de acesso restrito. «Havia pessoas que chegavam com tecidos e rendas para fazer vestidos de noiva e nós não podíamos aproximar-nos.» Quando a tia modista recebia clientes, as meninas ficavam a lanchar na cozinha, espreitando deslumbradas a mesa posta com o serviço de chá para as visitas e sortido fino. Na casa da Ana, um apartamento amplo e luminoso no centro do Porto que serve de armazém e montra da Cata-Vento, é possível perceber o quanto dessas meninas deslumbradas ainda permanece nas irmãs.

Está decorada com alma e paixão, há tesouros expostos por todo o lado: quadros e publicidades antigas nas paredes, máquinas fotográficas numa vitrina, livros espalhados por mesas e prateleiras, jarras e vasos sobre os aparadores antigos, uma casa toda ela vintage, de paredes brancas e dezenas de pontos coloridos, carregada de texturas e feitios. Abrindo as portas de armários charmosos, há chávenas e mais chávenas de chá ou serviços completos Vista Alegre, Raul da Bernarda (Alcobaça), Secla, Sacavém – um aprumo de cerâmicas redondas e coloridas, pintadas com flores de cores vivas ou com altos e baixos-relevos vidrados.

Patrícia confessa que a louça é a sua perdição e que sempre que encontra um serviço que lhe agrada tem de se esforçar por não o guardar em casa. «Os meus olhos ficam com corações sempre que vejo peças dos anos 1960 e 1970 e fui acumulando. Houve um momento em que tive de dizer a mim própria “escolhe o teu serviço, escolhe com qual queres ficar”. Fiquei com aquele que já tinha e comecei a vender os outros.» E Patrícia conseguiu também pôr a irmã «na linha», como Ana refere. Mas até aquela irmã racional tem dias. Há tempos, encontrou um móvel de farmácia a precisar de restauro, mas não lhe resistiu. Era de madeira, de cantos redondos, lá surgiram os corações nos olhos. «Vim a carregar aquilo pela rua acima, a pensar “mas o que é que foste fazer?”.» E é com estes impulsos que se vai ampliando a montra da Cata-Vento.

Já a Ana o que mais custa é não ficar com todas a malas e malinhas para seu uso. Uma mulher com queda por carteiras há de compreender o drama dela mal bata os olhos na enorme estante que ocupa quase uma parede inteira e que um amigo de Ana batizou, com humor, de «malódromo». Há malas e malinhas encaixadas em todas as prateleiras e mais algumas pendendo de um cabide ao lado. Todas de pele, de várias cores, grandes e pequenas, parecendo saídas dos guarda-roupas das nossas avós e mães, que usavam elegantes malas de mão e não os práticos malões que preferimos agora. Há ainda charriots com vestidos e blusas, que se podem experimentar com chapéus, luvas, óculos e bijutaria. A sala é visão quase mística para quase todas as mulheres.

Na primeira tarde de portas abertas na casa Cata-Vento – que aconteceu em maio e é para repetir com frequência –, o «malódromo» foi uma atração e as malas saíram como pãezinhos quentes. Muitas delas foram achados das viagens de Ana, que conheceu até algumas das pessoas que as tinham feito. Comprou algumas a uma mulher que as costurara quando era jovem, e ouviu a história dela. Perseguindo louças, também Patrícia tem aprendido muito sobre cerâmica portuguesa e começou a planear as escapadelas familiares para visitar museus, como o Raul da Bernarda, em Alcobaça, ou o Museu da Cerâmica, nas Caldas da Rainha. «Aprendemos mesmo muito sobre a história industrial de Portugal», sublinha.

Aprenderam também a detetar tendências, como o apetite por móveis dos anos 1950, com pés em agulha, ou a crescente popularidade do design industrial, com os candeeiros de metal que eram produzidos numa fábrica de Valongo, a aparecer em todos os novos bares do Porto. Muitos móveis e objetos que iam para o lixo ou eram tralha acumulada nas garagens, caves e sótãos de muitas famílias passaram a ser coqueluche. «As pessoas da nossa geração que cresceram com essas coisas têm nostalgia. Têm todos casas da Ikea e depois começam a querer alguma coisa diferente e vão buscar os móveis da avó», assinala Patrícia. «E depois há o design, que é muito mais apetecível aos olhos, emoldurado em recordações de afeto», reforça Ana Carolina.

As irmãs aceitam missões de caça ao tesouro, demore o tempo que demorar. Ana tem uma lista de tesouros mais raros, dos quais nunca desistiu. Tem muitos pedidos de acessórios para figurinos de teatro. Continua a tentar encontrar uma urna de uma certa época que lhe pediram há meses. E quando vê alguma peça vintage com star quality nem hesita em comprar, mesmo sem encomendas. Antes vintage a mais do que a menos – é a lição que já aprendeu. Entre os colecionadores, há uma oração que define a maré de azar, aquela que faz que tudo aquilo que se procura seja comprado pela pessoa que chega imediatamente antes. «Costumamos dizer “hoje não é o meu dia” e eu acredito mesmo nisso», diz Ana. O que as irmãs Mendonça «caçaram» nos dias que foram delas estão à mostra de todos na loja Cata-Vento do Facebook (www.facebook.com/ catavento.shop), o único balcão permanente, para já. Seguindo a página, pode ficar a saber-se em que sábados à tarde vai abrir a casa Cata-Vento para visitas das freguesas. A primeira vez foi um êxito e haverá mais ocasiões para conhecer as amabilíssimas Patrícia e Ana no meio dos seus tesouros, cair em adoração diante do «malódromo» e ainda servir-se de chá e biscoitos de uma mesinha posta com esmero. A tia-avó Mimi pode ter gosto no saber receber das meninas.