Homenagem ao professor* que não tive

Notícias Magazine

O meu liceu era bonito, tinha torre sineira com planisfé­rio em azulejos, muros altos, encimados por tijolos vazados para se ver o mar. No começo dos anos 1960, chegou um professor de olhos brincalhões. Disse chamar-se Robin Williams e vir de Chi­cago. O mulato Galinha, o descarado da turma, perguntou-lhe o que fazia ali, em Luanda, um cowboy. Ele respondeu que tinha en­contro marcado com outro liceu (emendou, «de facto, um clube, o clube dos poetas mortos!»), mas que isso só seria mais tarde. Por enquanto, concluiu, andava pelo mundo. «Daí, eu estar aqui!», dis­se, saltando para o tampo da secretária do Carlos Pacheco, cam­peão de natação e o mais sisudo de todos nós. A turma inteira fi­cou mais perplexa do que encantada.

Encantada ficou depois. O professor avisou querer ser tratado por «Ó capitão! Meu capitão!» Porquê? Ele ficou calado uns momentos, levou o indicador aos lábios e disse-nos para o se­guir. Fomos pelos corredores (ele mimava passadas grotescas quando passava pela porta das outras turmas), descemos a esca­daria central e saímos. Fez-nos virar para as quatro colunas do portão de entrada, subir o olhar até ao friso e ler: «Liceu Nacional Salvador Correia». E disse: «O capitão é esse, o capitão que veio do mar e vos fez falar o português que falam.» Voltámos à sala de au­la (no corredor ele tornou a dar passadas esquisitas que alguns de nós já imitavam). Na sala disse: «Mas capitães há muitos. Há ou­tro que morreu no alto mar, num baleeiro de New Bedford. Puse­ram-no de conserva num barril de uísque para chegar a terra. De­sembarcaram-no em Luanda, na ilha do Cabo, e está lá enterrado com o barril e tudo…» Disse-nos isto de costas, virado para a jane­la, a olhar a ilha. Mandou-nos procurar o capitão do brigue.

Nesse fim de semana, encontrei vários colegas na ilha, à volta de uma cruz enferrujada. Fizeram-se fotos, um desenhava a carvão, a Isabel fez um poema, eu apanhei bagas da casuarina mais próxima (cheiravam a uísque, convenci-me e aos outros). Na terça, trouxemos os despojos da caça para a aula. O «Ó capitão! Meu capitão!» não os levou para casa para corrigir, viu-os logo, um a um e pausadamente, sentado à sua mesa. As fotos, o poema, a ba­ga de casuarina (que levou ao nariz), o desenho, dois contos… De vez em quando, levantava os olhos para o autor, sem nada dizer. No fim, foi para janela e disse-nos, sempre de costas: «Agora já sa­bem. A vossa cidade tem alma.» Tocou a campainha e saímos da aula, que se passou quase toda em silêncio e foi aquela que mais nos ensinara até então.
Na aula seguinte, o capitão entrou a assobiar uma modinha. Podia ser distração, mas ele sentou-se e continuou a assobiar. Afinal, aquilo era a aula. No fim perguntou: «O que é isto?» O Garcia Neto, negro do Bairro Operário, pôs o dedo no ar: «Não sei, mas a banda do velho Luís Sambo tocava isso. É brasileiro?» O «Ó capitão! Meu capi­tão!» abanou a cabeça: «Não, é uma rebita da vossa terra. Fala da von­tade das bessanganas em dançar com o Dr. Troni.» Depois, falou-nos de Alfredo Troni, o advogado que nasceu em Coimbra e renasceu em Luanda a dançar com as mulheres de panos. Fiz um brilharete: «Aquele sobrado ao lado da Casa Americana era do Alfredo Troni», disse. A Isabel gostou e o professor lançou: «Quem sabe porque fala­mos?» Três ou quatro de nós: «Para comunicarmos.» E o capitão: «Pa­ra encantar as raparigas.» A Isabel ficou vermelha.

Nova ordem para sairmos em bicos de pés. Descemos a ladeira do liceu e, no jardim fronteiro, o professor pôs-nos à volta do busto do poeta Tomás Vieira da Cruz e declamou-lhe N’gola Flor de Bronze: «Neta de soba que acabou chorando/ Filha de branco que morreu lutando/ E duma preta tristemente linda.» Nós rimo-nos, os versos pareciam-nos ridículos. O «Ó capitão! Meu capitão» dis­se-nos um misterioso: «Carpe diem.» Colhe o dia de hoje como se não houvesse amanhã… Nós não sabíamos que não haveria.

*Robin Williams (1951-2014), professor em O Clube dos Poetas Mortos.