Filhos da madrugada

Nasceram em 1974, cresceram em democracia, mas sentem que esta não cresceu tanto como eles. Falam de oportunidades perdidas e de promessas quebradas, mas recusam-se a desistir do Portugal que os pais sonharam.

Naquele «dia inicial inteiro e limpo» da fotografia que lhes serve de cenário, só um tinha nascido já, na noite anterior. Os outros estavam na barriga das mães, trabalhadoras como os pais. Todos fazem 39 anos [40, este ano], como a democracia, e dois anos volvidos sobre o seu nascimento foi aprovada a Constituição da República Portuguesa, tão incómoda nos dias que correm. Enquanto nas ruas ainda ecoava o paz, pão, habitação, saúde, educação, tinham eles três anos, Portugal pediu pela primeira vez ajuda ao FMI. No ano seguinte, estreou a Abelha Maia, na televisão, que só tinha dois canais, do Estado, e através da qual, aos seis anos, ouviram ao jantar a notícia da morte de Francisco Sá Carneiro, comentada pelos mais velhos. Por essa altura, a recente reforma agrária começava a contar os dias para o fim. O segundo pedido de ajuda ao FMI (1983) apanhou-os na terceira classe da escola primária e, estavam eles no ciclo preparatório, quando Portugal entrou para a CEE (1986), momento que hoje reconhecem como marco decisivo na evolução do país, para o bem e para o mal. Cresceram a acreditar que somos livres, somos livres, somos livres de voar e que podiam ser o que quisessem se estudassem, tirassem um curso superior e trabalhassem. Tiraram-no, com maior ou menor esforço da família, ainda antes de Bolonha, quando uma licenciatura tinha no mínimo quatro anos e o mestrado era coisa importante. No final dos anos noventa começaram a trabalhar e fizeram-se à vida, uma vida que, garantem unânimes, tem vindo a perder qualidade. De tal forma que hoje, de entre eles, há quem pense que, como se vai ouvindo por aí, é preciso outra revolução. Não a mesma, que a história raramente se repete. Outra. Que retire Portugal da depressão coletiva em que está mergulhado.

 

Nuno Faleiro Silva Quando era miúdo queria era jogar à bola e fez o percurso escolar regular, até que na adolescência teve uma crise existencial, que coincidiu com o divórcio dos pais. Um ano fora a viajar e a trabalhar, na Suíça, ajudou-a a encontrar-se. «O trabalho sempre foi um valor em minha casa. Quando voltei descobri que a escolha seria entre Sociologia ou Psicologia. Optei pela segunda e não me arrependo.» Logo que acabou o curso, foi trabalhar para o Hospital Miguel Bombarda, onde criou um projeto ímpar em Portugal, a Rádio Aurora Outra Voz, feita por pessoas com doença mental, que hoje dinamiza no Hospital Júlio de Matos, para onde foi transferido com o encerramento do Bombarda.
Nuno Faleiro Silva
Quando era miúdo queria era jogar à bola e fez o percurso escolar regular, até que na adolescência teve uma crise existencial, que coincidiu com o divórcio dos pais. Um ano fora a viajar e a trabalhar, na Suíça, ajudou-o a encontrar-se. «O trabalho sempre foi um valor em minha casa. Quando voltei descobri que a escolha seria entre Sociologia ou Psicologia. Optei pela segunda e não me arrependo.» Logo que acabou o curso, foi trabalhar para o Hospital Miguel Bombarda, onde criou um projeto ímpar em Portugal, a Rádio Aurora Outra Voz, feita por pessoas com doença mental, que hoje dinamiza no Hospital Júlio de Matos, para onde foi transferido com o encerramento do Bombarda.

O psicólogo clínico Nuno Faleiro Silva é um deles. Nascido a 8 de Maio, em Lisboa, de uns pais de esquerda que lutaram pelo fim da ditadura – herança de que se orgulha – e viveram o 25 de abril com «entusiasmo e utopia, partilhando daquele sonho colectivo», não tem dúvidas de que o que faz falta é animar a malta. «Não sou pessimista, por decisão existencial, e acho que somos um país cheio de oportunidades se não começarmos todos a emigrar e tomarmos consciência de que existir exige a capacidade de correr riscos, de lutar e de assumir compromissos. Aprendi-o com a minha família, mas parece que há uma espécie de esquecimento coletivo relativamente a isso.» E é para avivar memórias, ou construi-las, que Nuno pugna por um novo 25 de Abril, que na sua perspectiva não é só um momento na história, mas também uma experiência individual. «Em vez de “onde estavas no 25 de abril?”, deveria talvez peguntar-se “quando é que estás em 25 de abril?” Porque há pessoas a quem nunca chegou a acontecer. Estão por todo o lado e é fácil reconhecê-las. São aquelas que não olham o outro com o respeito devido, que sentem a diferença como uma ameaça, que têm tendência à censura, à crítica destrutiva, à delação. E o que eu gostava de ver era um 25 de abril a acontecer dentro de cada um. Só assim se transformará o país.»

O dele aconteceu logo à nascença, quando a mãe, que trabalhava numa seguradora, tinha 28 anos, e o pai, que trabalhava num banco, tinha 31. A banda sonora lá de casa incluía Zé Mário Branco, Zeca Afonso, Fausto, mas também Chico Buarque, e desde que tem memória lembra-se de participar em manifestações. Um espírito de compromisso com o bem comum que lhe faz todo o sentido transmitir às filhas, uma com 17 anos e outra por nascer. Política foi coisa que sempre se discutiu em família e ainda bem, considera, porque é no berço «que se constroi a cultura democrática. Em minha casa, por exemplo, havia uma hipervalorização da democracia e do direito a votar e por isso é com muita surpresa que constato a “normalidade” dos 40 por cento de abstenção em Portugal».

 

Nelson Lopes Como tantos da sua geração, os pais de Nelson viveram em função do filho e deram-lhe tudo o que estava ao seu alcance, sobretudo educação e a liberdade de escolher os seus próprios caminhos. Apesar de tudo indicar Letras como a direção certa, a falta de uma vocação específica e o espírito do contra levou-o a seguir Gestão. «Tomei a decisão não escolher o caminho mais fácil e fi-lo de forma muito consciente porque achei que isso me faria crescer e aprender e me poria à prova. Quando estava a acabar o curso, havia dois sectores em que não queria trabalhar: banca e seguros. O meu primeiro emprego foi no BPI.» Hoje, é diretor-geral de uma seguradora.
Nelson Lopes
Como tantos da sua geração, os pais de Nelson viveram em função do filho e deram-lhe tudo o que estava ao seu alcance, sobretudo educação e a liberdade de escolher os seus próprios caminhos. Apesar de tudo indicar Letras como a direção certa, a falta de uma vocação específica e o espírito do contra levou-o a seguir Gestão. «Tomei a decisão não escolher o caminho mais fácil e fi-lo de forma muito consciente porque achei que isso me faria crescer e aprender e me poria à prova. Quando estava a acabar o curso, havia dois sectores em que não queria trabalhar: banca e seguros. O meu primeiro emprego foi no BPI.» Hoje, é diretor-geral de uma seguradora.

Talvez Nelson Lopes, também de Lisboa, diretor-geral da seguradora April Portugal, e pai de dois filhos, se isto fosse um debate, pudesse explicar ao Nuno por que é que há quem tenha desistido de votar. Nascido na noite de 24 de Abril, costuma brincar dizendo que a par da Grândola Vila Morena também ele foi uma espécie de sinal da revolução da madrugada que se seguiu. E sim, para os pais que, com 25 anos, o eram pela primeira vez e nunca mais viriam a ser, Nelson foi uma revolução e foi nele que se concentraram todas as atenções, apesar de o que acontecia no país ser há muito desejado por este casal fixado em São Vicente de Fora, ela caixa de supermercado na Manutenção Militar, ele conferente marítimo no Porto de Lisboa. «Embora a minha casa não fosse um forum de discussão política partidária, os meus pais sempre foram de esquerda e lembro-me bem da velha sigla da APU e do FMI, do José Mário Branco, que o meu pai ouvia constantemente, entre Cliff Richard e Abba. É engraçada esta memória porque eu ouvia aquilo como se fosse o Fungagá da Bicharada, e, quando há uns tempos reeditaram o álbum, comprei-o e e senti uma espécie de arrepio, como que um back to the future. Faz todo o sentido hoje.» Nelson que já esteve em manifestações, mas considera um exagero dizer que participou, e com os amigos joga uma espécie de jogo do contra, vestindo tanto a pele do personagem de esquerda como de direita, conforme o interlocutor, confessa-se apartidário de tal forma que deixou de votar. «Não me revejo em nenhum partido e o distanciamento tornou-se tal que votar passou a ser aborrecido. Não é um desrespeito para com o direito conferido pelo 25 de abril, mas colocar a cruz em alguém para representar os meus interesses sabendo de antemão que está muito longe da realidade e das necessidades das pessoas, custa-me. Quando oiço um político, oiço tudo menos o que é relevante para mim e para a minha família e não alinho em exercícios de retórica vazios.»

 

Rita Duarte Sempre teve muitos livros em casa e devorava-os a todos. A sede de conhecimento era imensa e chegou ao 10º ano ansiosa por ter filosofia. As aulas não lhe encheram as medidas, mas na altura de escolher o curso não hesitou, consciente de que não era esse o melhor passaporte para emprego certo. Seguiu Filosofia por amor à sabedoria. Depois da licenciatura fez o mestrado e continuaria a estudar não se desse o caso de querer ser financeiramente independente e constituir família com o companheiro Inácio Rodrigues, diretor de projeto na Y Dreams, com quem teve o Guilherme, o Gustavo e o Leonardo. O ensino foi a única saída e o primeiro ano como professora foi afinal revelador. «Adoro dar aulas, pôr os miúdos a pensar e ajudá-los a crescer como livres pensadores.» Há treze anos a contrato, não sabe se no próximo ano letivo terá aulas para dar.
Rita Duarte
Sempre teve muitos livros em casa e devorava-os a todos. A sede de conhecimento era imensa e chegou ao 10º ano ansiosa por ter filosofia. As aulas não lhe encheram as medidas, mas na altura de escolher o curso não hesitou, consciente de que não era esse o melhor passaporte para emprego certo. Seguiu Filosofia por amor à sabedoria. Depois da licenciatura fez o mestrado e continuaria a estudar não se desse o caso de querer ser financeiramente independente e constituir família com o companheiro Inácio Rodrigues, diretor de projeto na Y Dreams, com quem teve o Guilherme, o Gustavo e o Leonardo. O ensino foi a única saída e o primeiro ano como professora foi afinal revelador. «Adoro dar aulas, pôr os miúdos a pensar e ajudá-los a crescer como livres pensadores.» Há treze anos a contrato, não sabe se no próximo ano letivo terá aulas para dar.

Rita Duarte, professora de filosofia de Almada, também não alinha, mas isso nunca a fez deixar de votar, ainda que seja em branco. «A democracia é frágil e votar é zelar por ela. Mais do que um direito, para mim, é um dever.» Nascida a 1 de Agosto, num verão paradoxalmente menos quente do que o do ano seguinte, chegou, no entanto, ao mundo em circuntâncias ilustrativas do ambiente que se vivia. À meia-noite daquele dia tinha-se iniciado a primeira greve de médicos em Portugal e a Rita nasceu cinco minutos depois, numa Maternidade Alfredo da Costa à beira do caos. Os pais eram estudantes, de 18 e 19 anos, acabados de casar e de entrar para a universidade, o pai para engenheria no ISEL, a mãe para Educação Física, no ISEF, estudos interrompidos pela revolução, que transformou as aulas em serviço cívico obrigatório, e não concluídos pelas voltas que a vida deu. Na família da Rita, que tem como patriarca o avô materno, homem da direita liberal, mas que sempre cultivou o debate de ideias e o livre pensamento, há gente de todos os quadrantes e quando se juntam os cinco filhos e os muitos netos invariavelmente desemboca-se em acesas discussões políticas. Rita, que hoje se situa mais à esquerda, não pode, no entanto, deixar de confessar que, nas suas brincadeiras de miúdos, os bons eram da AD e os maus eram da APU. O que não impediu que tivesse uma educação «muito de abril» e diferente da que os pais tiveram. «Muita coisa me era permitida, era uma pessoa na família, merecia explicações, podia fazer escolhas, emitir opiniões, e isso foi muito importante.» Tenta dar aos filhos Guilherme, 11 anos, Gustavo, 9 e Leonardo, 5, a educação que recebeu e o mesmo acesso à cultura, ao lazer e a atividades extracurriculares. Consegue, mas sente que hoje, apesar de a oferta ser maior, é mais difícil para a classe média a que pertence, e a que sempre pertenceram os pais, proporcionar estas coisas aos filhos. «A verdade é que a maioria da nossa geração vive a crédito. E sem rede. Uma sociedade que era relativamente equilibrada, com alguma regulação e intervenção por parte do Estado, tem vindo a deixar que seja o mercado a decidir da vida das pessoas. Quando eu era pequena e a Lisnave fechou, lembro-me de ter muitas amigas cujos pais ficaram desempregados, mas existiam mecanismos de apoio que amorteciam a queda até as pessoas voltarem a arranjar emprego. Hoje o apoio do Estado vai para os bancos. Às pessoas convidam-nas a emigrar.»

 

Sara Oliveira O que Sara Oliveira sempre quis ser, e ainda não desistiu, foi arqueóloga. E como nos sonhos de miúda era jornalista da National Geographic, que juntava o útil ao agradável, acabou por tirar o curso de Comunicação Social na Escola Superior de Jornalismo do Porto, que concluiu em 1997. Fo estagiar no motor de busca AEIOU e, graças ao boom da internet, ficou. Até 2008, ano em que, apesar da classificação de «excelente profissional» foi uma dos oito «felizes contemplados» com um despedimento coletivo. De então para cá não voltou a conseguir emprego, integrando o imenso contingente de precários free-lancers. [em junho do ano passado, dois meses depois da publicação desta reportagem, foi convidada para trabalhar na XXXX
Sara Oliveira
O que Sara Oliveira sempre quis ser, e ainda não desistiu, foi arqueóloga. E como nos sonhos de miúda era jornalista da National Geographic, que juntava o útil ao agradável, acabou por tirar o curso de Comunicação Social na Escola Superior de Jornalismo do Porto, que concluiu em 1997. Fo estagiar no motor de busca AEIOU e, graças ao boom da internet, ficou. Até 2008, ano em que, apesar da classificação de «excelente profissional» foi uma dos oito «felizes contemplados» com um despedimento coletivo. De então para cá não voltou a conseguir emprego, integrando o imenso contingente de precários free-lancers. [em junho do ano passado, dois meses depois da publicação desta reportagem e graças às ideias que defendeu na NM foi convidada para trabalhar na JP Sá Couto].

Um convite que põe Sara Oliveira, formada em jornalismo e sem emprego certo desde 2008, à beira de um ataque de nervos. Tripeira de gema, da freguesia de Santo Ildefonso, nasceu a 6 de Setembro, tinha o pai, engenheiro electrotécnico, 29 anos e a mãe, professora primária, 34. Viveram o 25 de Abril com paixão, pelo fim da guerra colonial, pela conquista da liberdade, pelo fim da ditadura. A infância e adolescência felizes que teve, com viagens ao estrangeiro nas férias do verão, deixa-lhe hoje uma sensação de angústia quando pensa que não poderá dar o mesmo aos filhos, Carolina, de 5 anos e Pedro, de um. «Não é que seja o essencial, mas é uma revolta a acrescentar às outras. À de ver a destruição do Sistema Nacional de Saúde que salvou a vida do meu filho, que nasceu de 26 semanas, e da minha mãe, que teve uma doença terminal. À de assistir à desintegração do Estado Social. À de ver o aumento brutal de impostos sempre para os mesmos, eliminando o conceito de justiça social. À de sofrer na pele o desemprego e a falta de alternativas e constatar o incentivo ao não trabalho, quando a recibos verdes para se receber migalhas, se pagam balúrdios. A mim, que sempre apostei na minha formação e nunca me encostei a subsídios, que lutei e trabalhei e acreditei que teria um emprego e casaria e teria filhos e poderia dar-lhes o mesmo que os meus pais me deram, choca-me que me mandem emigrar. Eu fico porque ainda não me mataram a esperança. É preciso arregaçar as mangas e a minha filha diz que eu sou a melhor arregaçadora de mangas do mundo. Ninguém me manda embora do meu país.» Não foi fácil explicar à filha, que levou às duas últimas manifestações do Que Se Lixe a Troika, juntamente com o avô, que votava PSD e está hoje, nas palavras de Sara, «um radical de esquerda», porque é que se tinha juntado ali tanta gente de cabelo branco. «Disse-lhe que estávamos a lutar pelo futuro dela e do irmão, mas confesso, nunca imaginei estar com a minha filha ao colo a cantar a Grândola. Bom, também nunca pensei chegar a esta idade e ver um país que conseguiu fazer o 25 de Abril sem sangue chegar a este ponto.» A melhor arregaçadora de mangas do mundo acredita que é na união da sociedade civil e na sua intervenção que está a chave da mudança.

 

Raquel Rocha Desde miúda que quer ser o que é hoje, professora de biologia. Apesar de ter estudado em colégios privados, é uma acérrima defensora da escola pública e é nesta, pese o período conturbado que atravessa, que gostaria de educar os seus filhos, o Gonçalo e o Dinis. Integra o quadro da Escola Secundária de Ponte de Lima, pelo que o seu posto de trabalho não está ameaçado, mas tem razões de queixa: nos últimos dois anos o rendimento familiar reduziu substancialmente, uma vez que o marido também é professor [de história].
Raquel Rocha
Desde miúda que quer ser o que é hoje, professora de biologia. Apesar de ter estudado em colégios privados, é uma acérrima defensora da escola pública e é nesta, pese o período conturbado que atravessa, que gostaria de educar os seus filhos, o Gonçalo e o Dinis. Integra o quadro da Escola Secundária de Ponte de Lima, pelo que o seu posto de trabalho não está ameaçado, mas tem razões de queixa: nos últimos dois anos o rendimento familiar reduziu substancialmente, uma vez que o marido também é professor [de história].

Opinião partilhada por Raquel Rocha, professora de biologia, que já foi eleita do PSD na junta de freguesia de Nogueira, Viana do Castelo, onde nasceu a 20 de Novembro, mas que hoje não vê como não estar desiludida com o desempenho do governo apoiado por este partido. Quando se deu o 25 de abril, a mãe, de 23 anos, era assistente social e o pai, de 25, era administrador da empresa familiar de construção civil. Receberam a notícia em Viana, sem saberem ainda os contornos da ação militar desencadeada em Lisboa, mas a apreensão transformou-se em alegria quando perceberam que era do derrube da ditadura que se tratava. Raquel ainda guarda na memória os primeiros 1 de Maio em que participou, no Porto, com os pais e a irmã Joana, bebé de colo. Reconhece que teve uma infância e juventude privilegiadas, em Gaia, onde cresceu, e apesar de querer manter o otimismo, sente há hoje um contrato social que é quebrado constantemente. «Portugal entrou em espiral recessiva há sete anos e desde então tudo o que demos como certo deixou de o ser. O maior problema é que não existem medidas consequentes e de longo prazo. As regras do jogo estão sempre a mudar, as medidas são avulsas e imediatas, cortam-se subsídios, aumentam-se impostos e isso não tem quaisquer efeitos, a não ser a instabilidade, a diminuição da qualidade de vida e o empobrecimento. Por exemplo, a minha irmã e o meu cunhado, ambos engenheiros, viram-se de repente os dois sem emprego. Já para não falar nas situações a que assisto todos os dias na escola, de miúdos que chegam sem pequeno-almoço e que vão sem perspetiva de jantar. Gostaria que se avaliassem melhor as reformas que têm sido tomadas.» Como Sara, Raquel vê na intervenção da sociedade civil o único caminho e tem até algumas ideias sobre como levá-la à prática: «Da mesma maneira que se fizeram as presidências abertas, por que não promover governos abertos? É preciso que a classe política se aproxime das pessoas e oiça o que elas têm a dizer. A democracia participativa tem muitas potencialidades.» Recusa-se é a aceitar que se continue por um caminho que pode vir a hipotecar o futuro dos filhos, hoje com 3 e 4 anos, e do país. «Nós tivemos o percurso facilitado. Todos os meus colegas de escola seguiram os estudos superiores e encontraram emprego. Os miúdos hoje acabam o curso e continuam a estudar, prolongando ad eternum a dependência dos pais. É insustentável. Temos que dar a volta de alguma maneira e não é emigrando. Se este modelo político está esgotado, experimente-se outro.»

 

Maria Manuel Costa Os pais fizeram um grande esforço para que ela e a irmã pudessem dar corpo aos seus sonhos. Maria Manuel veio de Grândola para Lisboa estudar Teatro, na Escola Superior de Teatro, em detrimento da Engenharia Térmica, em que também entrou. Acabado o curso começou a trabalhar. Embora passe recibos verdes há quase vinte anos, nunca deixou de lutar. Viveu 16 anos em Lisboa, foi atriz no Teatro Nacional D. Maria II e numa companhia de teatro independente, fez cinema, entrou numa novela e deu aulas. Há dois anos voltou para Grândola, onde continua a dar aulas, tem um projeto pedagógico na Quinta de Educação e Ambiente, na Lagoa de Santo André, dinamiza oficinas de teatro na Ludoteca de Grândola e colabora com uma associação local de teatro amador. Agora está a fazer o mestrado em Arte e Educação, porque continua a acreditar que a formação conta.
Maria Manuel Costa
Os pais fizeram um grande esforço para que ela e a irmã pudessem dar corpo aos seus sonhos. Maria Manuel veio de Grândola para Lisboa estudar Teatro, na Escola Superior de Teatro, em detrimento da Engenharia Térmica, em que também entrou. Acabado o curso começou a trabalhar. Embora passe recibos verdes há quase vinte anos, nunca deixou de lutar. Viveu 16 anos em Lisboa, foi atriz no Teatro Nacional D. Maria II e numa companhia de teatro independente, fez cinema, entrou numa novela e deu aulas. Há dois anos voltou para Grândola, onde continua a dar aulas, tem um projeto pedagógico na Quinta de Educação e Ambiente, na Lagoa de Santo André, dinamiza oficinas de teatro na Ludoteca de Grândola e colabora com uma associação local de teatro amador. Agora está a fazer o mestrado em Arte e Educação, porque continua a acreditar que a formação conta.

Maria Manuel Costa, atriz e professora de Grândola, é capaz de ter algumas ideias sobre as alternativas a experimentar. Filha e sobrinha de comunistas, tem na família muitos testemunhos vivos de quem lutou na clandestinidade pela queda do fascismo, arriscou a vida ou foi obrigado a viver no exílio. O pai, relojoeiro, era dirigente da Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense que inspirou Zeca Afonso a escrever Grândola Vila Morena, em 1964, depois da participação do cantor no 52º aniversário da revolucionária coletividade e foi naturalmente com muita alegria que a ouviu ser usada como senha para a concretização do seu sonho, dez anos depois. 1974 foi um ano em cheio para o relojoeiro de 31 anos e para a sua mulher, de 25, que trabalhava na União das Cooperativas Agrícolas. Conquistada a democracia, a 3 de Novembro nascia-lhes a filha Maria Manuel, que cresceu a ouvir em direto pedaços de história contemporânea. Ainda miúda lembra-se, de todos os anos, na noite de 24 para 25, sair a banda a tocar a Grândola pelas ruas da vila, e agora é com orgulho que a ouve entoada um pouco por todo o país em sinal de protesto. «Muitas conquistas de abril têm vindo a perder-se, os direitos constitucionais ao trabalho, à saúde e à educação estão a ser postos em causa, e por isso faz todo o sentido cantá-la agora. É preciso repetir a senha.» Não cai na simplificação de dizer que o país está a recuar aos tempos do outro senhor. «Claro que Portugal sofreu uma grande modernização e há melhorias evidentes que não desaparecem assim. Antes do 25 de Abril, vivia-se miseravelmente. No Alentejo, então, era muito duro. Mas há dez anos estávamos melhor. Hoje não temos o mesmo poder de compra, o verão passado durou muito mais tempo, percebi-o nas escolas onde dou aulas. Os miúdos andaram de sandálias até ao inverno porque não havia dinheiro para sapatos, como não há para os lanches. Sim, a fome voltou, como nos anos oitenta quando acabaram as cooperativas agrícolas.» Ainda assim, Maria Manuel inspira-se nos pais quando pensa no futuro do filho, Manuel Pedro, de 4 anos. «Ele vai herdar um país complicado, mas temos que dar a volta a isto. É por isso que eu luto todos os dias. Como os meus pais lutaram e ainda lutam, porque felizmente continuam muito ativos. Quando se acredita não há desilusões que nos façam desistir.»

 

João Madeira Ainda não tinha acabado o curso de Agronomia no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, quando foi contratado para uma empresa de projetos de aproveitamento hidroagrícola, onde trabalhou alguns anos até que esta decidiu reduzir pessoal. Manteve-se como colaborador externo, mas voltou à região de Coimbra, onde pôs em marcha um projeto de agricultura biológica, em Penela – o Verdejar (www.verdejar.pt). Além disso, João Madeira toca viola e a música é uma atividade que sempre desenvolveu em paralelo com a agricultura
João Madeira
Ainda não tinha acabado o curso de Agronomia no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, quando foi contratado para uma empresa de projetos de aproveitamento hidroagrícola, onde trabalhou alguns anos até que esta decidiu reduzir pessoal. Manteve-se como colaborador externo, mas voltou à região de Coimbra, onde pôs em marcha um projeto de agricultura biológica, em Penela – o Verdejar (www.verdejar.pt). Além disso, João Madeira toca viola e a música é uma atividade que sempre desenvolveu em paralelo com a agricultura

João Madeira, engenheiro agrónomo e músico de Coimbra, não tem filhos, mas partilha da preocupação de Maria Manuel com o futuro de Portugal. Nascido na Sé Nova, a 3 de Outubro, e criado na aldeia de Ceira, próxima da cidade dos estudantes, cresceu numa família em que a política não fazia parte da ordem do dia. O pai, funcionário público da Administração Regional de Saúde, tinha 41 anos, quando o teve, a mãe, professora primária, contava 32. A vida seguiu como antes, agora em democracia e liberdade. Encontraram no PS o sentido de voto, embora o filho lhes reconheça ideias e princípios mais à esquerda. Já João, que cresceu em democracia, não conseguiu ainda encontrar um partido com que se identifique a cem por cento – que apresente um projeto de esquerda, defendendo o interesse público e a intervenção do Estado nos setores fundamentais da economia e conferindo-lhe um papel regulador, mas com ambição de se tornar governo. Será esta última parte que falta e que faz falta, na sua opinião. «Entrei para a faculdade no ano em que foram introduzidas as propinas. A luta dos estudantes foi grande, mas a medida manteve-se. Resultado: gradualmente, a par do aumento das propinas, assiste-se a um desinvestimento público, com evidente repercussão na qualidade e nas condições do ensino. Hoje já se fala na sustentabilidade do ensino superior como se devesse ser financiado unicamente pelos estudantes e não tivesse que ser também um investimento do país no seu próprio desenvolvimento. O mesmo se passa com a saúde, paulatinamente entregue a privados, ou com a distribuição da água ou com empresas como a EDP e a GALP, já privatizadas, cujos lucros podiam e deviam ser receita do Estado.» Para arrepiar o caminho traçado pelos sucessivos governos do país, João Madeira vê na tomada de consciência e unidade dos cidadãos enquanto tal e enquanto consumidores e utentes, a única forma de mudar o paradigma, porque, acredita, Portugal pode ser diferente. Para melhor.

Não partilhando completamente do modelo de sociedade defendido por João, Nelson Lopes considera também que é pelos cidadãos e pelo elevar da exigência que passa a mudança. «Trinta e nove anos para nós é muito tempo, mas para um país não é nada. Talvez ainda estejamos na euforia da festa que acabou ontem e não nos apercebamos que a liberdade exige responsabilidades acrescidas. Não faz falta outro 25 de abril, faz falta é concretizá-lo. Escolher e tomar decisões é uma exigência de quem conquistou a liberdade e talvez tenhamos abdicado de o fazer e deixado que outros o fizessem por nós. Este é o momento de fazer escolhas.» Como podia ter sido antes, com uma gestão diferente da entrada de Portugal para a União Europeia, que deu ao país a capacidade e os instrumentos de progredir e sair de décadas de austeridade e de atraso. «Mas não, desperdiçámos anos, confundimos oportunidade com oportunismo, ousadia com atrevimento, talento com desenrascanço e perdemos um momento na história. Não tivemos à frente dos destinos do país gente com visão. Olho para isto como uma empresa e uma empresa sem um estratega, a pensar a cinquenta anos, está condenada ao fracasso. Olhou-se para o imediato, a cinco anos, o tempo de um mandato.» Mas Nelson é otimista e desistir não faz parte do seu léxico. Portugal tem é que sair da eterna posição subalterna, de aluno bem comportado, de funcionário que diz sim a tudo. «Temos todas as condições para ser mestres. O erro fatal é querer ser bom em tudo e estar em todas. Não, temos é que ser bons naquilo para que temos competências e vocação. E é preciso saber dizer não. Isto ensina-se, não se decreta. Há que educar os gestores e quem vai ter responsabilidades no país a fazer escolhas, a arriscar e a tomar decisões.»

Nuno Faleiro tem uma explicação «clínica» para este medo de escolher e arriscar e decidir. «Quando o futuro nos assusta e não nos inspira esperança e curiosidade, antes nos causa ansiedade e nos remete para o desconhecido mais incerto, alguma coisa correu mal. Não era isso que estava nos planos de quem fez o 25 de abril. Havia uma ideia de direção rumo a uma sociedade mais justa e a atmosfera que se vive não lhe faz jus.» O psicólogo vê nisto um passado mal resolvido. «Falta fazer a elaboração coletiva das feridas do fascismo. Sinto que se passou por cima de 48 anos de ditadura como se pudesse não ter deixado marcas, quando são experiências que atravessam gerações. Vê-se na incapacidade de assumir uma posição crítica, de exercer direitos, de exigir, de confrontar. Creio que isso é sobrevivência intrapsíquica transgeracional de uma cultura de opressão e ditadura que leva ao conformismo e nos impede de transformar as coisas.» Quando este seria o momento de as transformar. Este em que muitos amigos estão desempregados ou numa situação precária, este em que há uma pressão quase silenciosa para a emigração em massa «Acho que estamos a assistir de muito perto à história, estamos dentro dela, e isto é uma convocatória. Os portugueses têm que tomar consciência da sua força e da sua capacidade de transformar. Há uma desilusão coletiva? A questão é que não seja o ponto de chegada, mas o ponto de partida.»

[Publicado originalmente na edição de 21 de abril de 3013]