Educar é definir limites

Pais mais ansiosos, inseguros e permissivos tendem a ter mais problemas na relação com os seus filhos. E estes têm mais alterações de comportamento, dependências e depressão. Educar para a saúde mental também é responsabilizar e definir limites, explica Maria de Lurdes Candeias, uma psiquiatra que ajuda crianças e jovens e os seus pais também.

«Eu estou sempre cá», o título do seu livro, é também a frase com que se despede dos seus jovens pacientes no momento da alta. Porque é que o faz?
Trabalho sobretudo com crianças, adolescentes e jovens e no momento em que lhe dou alta, que significa o fim de uma etapa, gosto de lhes deixar claro que continuarei disponível para eles ao longo do seu percurso de vida, caso sintam necessidade. Com as alterações que ocorreram nos últimos anos, o dia-a-dia das pessoas faz-se entre correrias, mudanças, separações … São coisas aparentemente banais mas sempre geradoras de stress e por vezes traumáticas. Os acontecimentos de vida por vezes conduzem-nos para situações diferentes das que esperamos e os mais novos são particularmente sensíveis.

É pedopsiquiatra há 30 anos. Os problemas que afetam as crianças e os jovens mudaram muito neste espaço de tempo?
Mudou quase tudo. Quando comecei, a maior parte das crianças chegava à consulta por dificuldades de aprendizagem na escola, alterações do sono e perturbações psicóticas (delírios, alucinações e outros sintomas característicos da esquizofrenia), mas em menor número. Também tínhamos as debilidades mentais.

E depois?
Entretanto ocorrem dois fenómenos, que estão relacionados. Um é a valorização da vida profissional das mulheres, que passaram a dedicar mais tempo ao trabalho. O outro é o aumento do tempo em que as crianças estão na escola e nas actividades de tempos livres e, em casa, o tempo que gastam a ver televisão, a fazer jogos electrónicos e na internet. Também se registou um aumento do consumo de álcool e outras drogas.

E o que é que marca os dias de hoje?
Entretanto, começamos a acompanhar crianças e jovens devido a comportamentos agressivos (contra si e contra terceiros), por consumo de substâncias, alcoolismo precoce e as vítimas de abuso sexual. Estas eram situações que não víamos quando comecei a exercer.

As crianças vítimas de abuso sexual não eram acompanhadas pelos pedopsiquiatras?
Não chegavam às consultas. Trabalhei muitos anos no Centro Infantil e Juvenil de Lisboa e não tenho memória de um único caso. Penso que o aumento do número de consultas por este problema surge após o processo Casa Pia. As tentativas de suicídio infantil e juvenil também eram casos muito raros.

O que é que há em comum entre as crianças e jovens de agora e as que acompanhava há vinte e trinta anos?
A necessidade de atenção, presença e afecto perduram no tempo.

A infância é hoje muito mais valorizada do que no passado. É possível que alguns pais se preocupem tanto com os filhos que os super-protejam?
As pessoas são muito inseguras perante a mudança – pode ser de escola, de casa, um exame – e questionam se estão a agir correctamente e que efeitos terá nos filhos. Não sei se é por influência da situação económica e social que vivemos, mas sinto ansiedade crescente nos pais. Uns é porque os filhos não frequentam uma determinada faculdade, outros porque não obtém as classificações escolares que gostavam, outros porque não tem emprego…

Os pais põem muita pressão nos filhos, é isso?
Põem uma pressão enorme… Uma pressão que os pais e as pessoas da nossa geração não conhecem, nem nunca sentiram. Há uma pressão enorme na sociedade.

Os pais vivem no sufoco de ter casa e contas para pagar e filhos para educar…
Os pais das pessoas que nos procuram têm algumas fragilidades – falta de apoio familiar, pressão do trabalho, problemas relacionais – e sentem-se inseguras no desempenho dos seus papéis.

A depressão é o elemento comum a alguns doentes cujas histórias conta no livro. É assim tão comum na adolescência?
Em Portugal, não temos dados sobre a doença mental na adolescência, mas as estatísticas internacionais estimam que entre dez a doze por cento dos jovens sofram depressão.

Numa criança ou num jovem, como é que se manifesta uma depressão?
Varia mas, em regra, os sintomas são uma tristeza profunda e continuada, falta de apetite, alterações no sono, apatia, isolamento, falta de esperança e, em casos muito graves, a ideia de morte e de suicídio. A intensidade e a duração dos sinais é o que nos permite distinguir o normal da doença.

Há muitos factores que podem conduzir à depressão. Quais os mais comuns?
A depressão é uma doença multifactorial, tem influência genética, familiar, social e há algumas situações que aumentam o risco de vir a sofrer de depressão – é mais frequente nos filhos de pais deprimidos, alcoólicos, nas crianças nascidas de relações episódicas, e nas que estão institucionalizadas. Alguns episódio ocorridos antes e durante o parto (lesões) e acontecimentos traumáticos inesperados (por exemplo, a morte do pai, mãe, irmãos) também interfere com o desenvolvimento da criança. Depois há os factores individuais, como os traços de personalidade. As pessoas mais introvertidas, menos lutadoras, menos combativas têm maior propensão a desenvolver depressão perante situações adversas, incluindo crianças e jovens.

E quando fala de factores familiares, refere-se a quê?
A vários. A separação dos pais, por exemplo, pode ser traumática ou não. Depende idade, das circunstâncias, do estado emocional e psíquico dos pais… Geralmente, nós vemos as situações que correm mal e que perturbam os filhos.

O que é que trás os jovens aos seu consultório?
Situações depressivas ou de ansiedade, dificuldades de relação com os pais na sequência de separação, algumas perturbações do comportamento alimentar, alguns casos de bullying e dificuldades de aprendizagem, mas menos. Alguns casos de abuso de álcool e outras substancias, mas esporádicos. Não acompanho jovens com toxicodependências, pois essa é uma problemática muito específica.

Nos adolescentes, os consumos de álcool e drogas, mesmo que esporádicos, também aumentam o risco de depressão?
Hoje os jovens iniciam os consumos mais cedo, o que é preocupante devido ao risco de dependência física e psicológica, mas não só. Por exemplo, o álcool é extremamente tóxico para o fígado, rins e células cerebrais e os adolescentes correm um sério risco de diminuição das capacidades cognitivas. E aqui encontro alguns pais que parecem achar natural que os seus filhos de 12 e 13 anos comecem a beber à quinta-feira e acabem ao domingo.

Tem pais que consentem que os seus filhos de 12 anos saiam à noite e bebam?
Sim… Esses são os pais que me dizem, com o ar mais natural do mundo, que todos os miúdos bebem e todos saem. É um fenómeno de grupo. Há o dos que vão levar e buscar e que querem saber com que os filhos estão e há o grupo dos que simplesmente dizem «vai, estás por tua conta». Perante a pressão dos filhos, há pais que não têm a força que é precisa para dizer «não. Os outros podem ir onde quiserem, tu irás quando eu entender.»

Fala de pais que perdem a autoridade sobre os filhos e que são permissivos?
Uma grande parte dos pais que procura ajuda nos consultórios deixa os filhos fazer tudo o que lhes apetece. Têm medo de ser chamados «bota-de-elástico» e cotas. Esta condescendência também se manifesta nas compras – adquirem tudo os que os filhos exigem, seja roupa, brinquedos, tecnologias, nem que para isso tenham que recorrer a empréstimos.

Então são os pais que precisam de ajuda?
Ora bem, ser pai e ser mãe exige uma grande força e alguns pais não a têm ou não a encontram e precisam de ser ajudados. Educar e amar não significa satisfazer todos os desejos dos filhos. Pelo contrário. As crianças e os jovens precisam de saber esperar, de ter regras e limites bem definidos. Precisam de balizas e o que sucede frequentemente é que precisamos de ajudar os pais a ter ou a readquirir autoridade. O que só se consegue com muito trabalho e preserverança.

Como é que se trata a depressão da criança e dos jovens?
Com psicoterapia e sempre com o envolvimentos da família e da escola. Só em casos excepcionais é que se recorre a medicamentos.

QUEM É MARIA DE LURDES CANDEIAS?
É pedopsiquiatra e terapeuta familiar. Chefiou a Clínica da Juventude no Departamento de Pedopsiquiatria do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa. Continua a fazer consulta e trabalho voluntariado em instituições de acolhimento de crianças e jovens. O primeiro livro que escreveu – Eu estou sempre cá, uma edição Planeta – conta as histórias que mais a marcaram em 30 anos de trabalho.