E tudo o fado ensinou

A ideia é do fadista Rodrigo Costa Félix e ganhou força através de vários convidados. Mais do que um CD, Brincar aos Fados é um projeto educativo de longo alcance, em que o fado ajuda a explicar assuntos de interesse para o público infantojuvenil. Primeiro tema: o próprio fado.

Rodrigo Costa Félix andava há dois anos a sonhar com um fado diferente. Sempre estranhou ver gaiatos na posse de palavras de que não sabem o significado, a quererem vestir a pele de adultos que não são. «Como pode um miúdo cantar Se eu soubesse que morrendo / Tu me havias de chorar / Por uma lágrima tua / Que alegria, me deixaria matar?», questionava-se. «É maravilhoso, isto, mas não só lhe retira a infância como ele nunca fará a devida interpretação, porque a ideia não lhe diz nada.» Fixando-se nas virtudes de um projeto capaz de explicar o fado às crianças em linguagem acessível, Rodrigo criou o Brincar aos Fados, lançado amanhã para que entendam a saudade, o uso do xaile, os silêncios. «Mais do que um CD, este é um conceito educativo que vem para ficar.» O facto de se cantar agora sobre fado não o impede de, no futuro, querer cantar alguns episódios da história de Portugal, ou sobre monumentos ou geografia.

«Decidi que o fado seria o tema deste primeiro álbum precisamente por perceber que não se pode pedir a uma criança que entenda a saudade como um adulto, que já sofreu várias perdas», conta Rodrigo. Aos seus olhos de fadista, fazia falta um projeto que transmitisse conhecimentos importantes sem ser chato ou professoral, através daquela que é a expressão musical por excelência no país: o fado, seu desde que começou a cantá-lo há 25 anos, tinha então 17. «Uma das coisas de que me lembrei foi que, na geração da minha mãe, os miúdos aprendiam as matérias muito à base de cantilenas e lengalengas. Toda a gente sabia os rios do país de trás para a frente e, não sei porquê, isso perdeu-se. Hoje em dia ninguém faz ideia onde nasce o Mondego.»

Animado com o rumo que este plano educativo tomava na sua cabeça – do fado para instruir para o próprio fado e para uma série de outros temas de interesse junto do público infantojuvenil –, Rodrigo pediu a Tiago Torres da Silva que escrevesse as canções inéditas, algo que o poeta aceitou sem pensar duas vezes. «Uma vez decidido que era o fado o mote do primeiro CD, resolvemos pegar nos temas do fado e vivê-los como uma criança os viveria: porque passou a património imaterial da humanidade e como explicar o universo dos fados tradicionais aos miúdos? Qual a razão de ser do xaile nos ombros? Porque se faz silêncio sem ser porque a mãe obriga? Tudo isto do ponto de vista deles e com ideias que percebam», conta o escritor, cujas letras têm sido cantadas por inúmeros fadistas e cantores brasileiros em mais de 20 anos de carreira.

Entre o acervo de músicas tradicionais que vão sendo sempre usadas pelos fadistas – Tiago explica que o Povo Que Lavas no Rio é o Fado Vitória e já teve 50 letras, Estranha Forma de Vida é o Fado Bailado e já teve 200 –, ambos encontraram a toada certa para apalavrar o que lhes ia na alma, sem aquele peso que não pode existir num fado infantil. «No tema cantado pela Joana Amendoeira digo que saudade pode ser a pena que sentimos por uns sapatos que deixaram de servir, pelas calças preferidas que encurtaram e nós insistimos em usar», adianta o letrista, orgulhoso do resultado. O xaile é o manto de um rei, umas asas de andorinha, as mãos da mãe que aconchegam de noite. «Criei as letras uma a uma, a sofrer muito, indo sempre buscar coisas que eles possam entender.» Rodrigo confirma: «Ele mandava-me os poemas e se eu demorava mais tempo a responder, tipo 27 minutos, tinha logo um e-mail do Tiago, frustradíssimo, a presumir que eu não tinha gostado. Isto foi tudo novo também para nós.»

Se tudo correr conforme esperam, Brincar aos Fados abre passagem a que as crianças não percam a noção da natureza do fado, quaisquer que sejam os fenómenos de assimilação a que estão sujeitos. Decidiram então que tinha que se manter a matriz tradicional, com viola de fado, contrabaixo e guitarra portuguesa (aqui a cargo de Marta Pereira da Costa, mulher de Rodrigo). «Elas até podem pegar nisto e decidir que gostam mais de outras sonoridades. O importante é que saibam que esta é a essência e que isso não se perca», sublinha o fadista, lembrando que o tema de Celeste Rodrigues diz isto mesmo: não é por tocar bateria que uma geração derruba o que fazia a anterior. «Se às vezes é tão difícil os miúdos interessarem-se por algo, porque não usar a música para transmitir conhecimento?» Os próximos álbuns versarão sobre acontecimentos da nossa história, antigas profissões de Lisboa, monumentos, regiões de Portugal e outros que possam espicaçar o interesse de quem canta e quem ouve.  «De certeza que com fado aprendem melhor. Os mais novos e os pais.»

Eles próprios só se deram inteiramente conta dessa verdade ao trabalharem no projeto discográfico, quando mostravam o resultado a amigos e viam espanto. Perceberam aí que os adultos também se comoviam, surpreendidos com a leveza lúcida das palavras. «Há temas que podiam ser cantados por qualquer pessoa, como o do xaile, da Katia Guerreiro, ou o do Jorge Fernando sobre a origem do fado. Às tantas começámos a definir isto como um projeto familiar, mais do que uma coisa dos seis aos 12 anos», concede Rodrigo Costa Félix. Se foi difícil chegar a este equilíbrio? «A Amália dizia que cantar ou é fácil ou impossível e eu penso o mesmo da escrita», desmistifica Tiago Torres da Silva. Preocupava-o ser leve sem se tornar superficial, mas até nisso foi bem-sucedido: «As crianças que escutarem isto agora vão-se lembrar, daqui a 30 anos, de como ouviram falar da saudade a primeira vez.»

Os dois vão também lembrar para sempre a vez em que Camané chegou para cantar, cansado de uma noite mal dormida, e começou a aquecer a voz, a acordar. Após três ou quatro gravações do seu tema Brincar aos Fados (a manter em todos os discos cantado por diferentes artistas), estava tão divertido que se pôs a dançar no estúdio, efusivo. Foi o mesmo com os outros fadistas – Mafalda Arnauth, Katia Guerreiro, Ricardo Ribeiro, Joana Amendoeira, Celeste Rodrigues (acompanhada na guitarra portuguesa pelo bisneto Gaspar Varela, de 11 anos), Carlos Leitão, Jorge Fernando, Maria Ana Bobone, Cristina Branco. Vieram todos sem os vícios de carreira, inspirados, à procura daquela forma pronta de se contar histórias aos miúdos.

«Coube-me dizer-lhes que não é obrigatória a solidão, a dor ou a tristeza para se cantar o fado e senti leveza nisso», reconhece Mafalda, de volta à adolescência em termos de interpretação: «Muitas vezes vale a pena concentrarmo-nos na essência e voltar às bases, a minha expressão já tem fado que chegue.» Joana não tinha imaginado que pudesse ser tão simples, e tão bonito, explicar-lhes a saudade: «A abordagem na interpretação de um fado para os mais novos foi nova para mim e muito gratificante. O disco vai chegar ao coração das crianças e será uma base muito importante nos alicerces da aprendizagem do fado.» Ricardo adorou cantar sobre os poetas populares, reconhece que «fazia falta uma coisa assim, estruturada e educativa». Celeste enterneceu-se com o bisneto, cantou para ele e para os bisnetos de outras pessoas: «Foi muito bom vir dizer-lhes que o fado é o grito que o povo carrega consigo.»

Nas longas horas que levaram a criar, Rodrigo e Tiago pesaram o nome do projeto, mediram-no. Viraram-no do avesso de todas as maneiras possíveis e concluíram que ninguém de boa-fé podia levar a mal este Brincar aos Fados. «Isto chama-se assim mas nós não queremos, de todo, brincar com o fado», avisam. Como podiam gozar com um assunto sério que os apaixona a ambos? «Não estamos aqui a negar nada, não estamos contra nada do que já se fez. Estamos apenas a acrescentar uma coisinha ou, pelo menos, a tentar fazê-lo.» Não há como duvidar da ideia quando Amália era a primeira a clamar que tudo o que existe é fado.

MÚSICAS NO CORAÇÃO

A partir do momento em que Brincar aos Fados lhes surgiu diante dos olhos, claro como se estivessem a vê-lo num ecrã, Rodrigo Costa Félix e Tiago Torres da Silva souberam que o projeto iria muito além de um simples CD – era uma questão de o ajudarem a crescer, levado pela mão, para torná-lo forte no seu propósito educativo. «Haverá este disco e muitos outros, concertos, talvez até um livro, mas uma vertente fundamental será a dos workshops nas escolas», revela o fadista, entusiasmado com esta abrangência que vai permitir à dupla contar às crianças as histórias do fado que hoje os trazem a este ponto. «Fiz duas tournées recentes nos EUA (uma o ano passado e outra este ano), visitei várias escolas e percebi na reação dos miúdos que havia abertura para isto logo que conseguimos interagir com eles», conta. Tiago acredita que se eles se sentirem próximos da mensagem – e hão de sentir –, vão gostar: «Escolheremos alguns fados e vamos falar de como nasceram aquelas melodias tradicionais, por onde andaram, quem as cantou, qual era o significado delas, entre outras coisas.» No fundo, algo que contextualize o facto de não terem caído ali de paraquedas. Rodrigo partilha desse sentimento à luz do que viveu lá fora: «Quando conseguimos criar essa ligação e envolvê-los na história, eles começam a divertir-se. E divertirem-se com o fado é meio caminho andado para gostarem. E se ao gostarem perceberem o que é, então fizemos bem o nosso trabalho.»