Do ar para o céu

Terá sido a primeira vez no mundo que um padre começou uma missa assim: «Bem-vindos a bordo, welcome a board…» Mas este não é um padre comum. Paulo Duarte, 34 anos, pertenceu à aviação civil antes de se decidir pela vida religiosa. Daí a graça com que deu início à sua primeira missa, celebrada a 26 de julho, em Portimão.

Estava à pinha, a Igreja Matriz da terra que viu nascer o padre. Todos queriam ver, ao vivo e a cores, o menino que muitos seguraram no colo.
«Conheço-o desde que nasceu… sempre foi um bom menino», dizia uma senhora, de mão no peito e olhar em alvo. Ainda assim, e apesar da familiaridade da missa, poucos riram do gracejo do ex-comissário de bordo. Talvez não exatamente por falta de sentido de humor mas mais por estarem pouco habituados a comentário tão pagão em terreno santo. Mais uma vez, é bom que se acostumem. Para Paulo Duarte será sempre assim. A vida tal como ela é tem de entrar na homilia, no sermão, na confissão. E a vida tal como ela é mistura o sagrado e o profano, o humor e as palavras sérias, a poesia, a arte em geral, a dor. Não se vê num pedestal, a falar num tom moralista e cinzento, como se fosse dono da verdade. Mas já lá vamos.

Paulo Duarte nasceu a 26 de outubro de 1979, em Portimão. Filho único, mãe e pai ligados à hotelaria, Paulo cresceu a querer ser veterinário, especializado em cetáceos. A família era católica pouco praticante, tirando a avó Constança, uma alentejana de Odemira que estava sempre a rezar: «Foi uma mulher que me marcou muitíssimo. Era uma velhinha viúva (o meu avô morreu quando eu tinha 4 anos), de lenço na cabeça, que não sabia ler nem escrever mas tinha um humor extraordinário. Teve 11 filhos, morreram 8 e impressionou-me sempre muito a sua força, a sua serenidade e a sua alegria, apesar de toda a perda que já tinha sofrido. Quando lhe dizia ‘ó vó, está sempre a rezar?’, ela respondia: ‘então, filho, é o que eu sei fazer!’»

Paulo era um miúdo tímido (uma vez mais, quem diria?). Na escola sofreu na pele por essa introspeção. As crianças, pouco permeáveis à diferença, achavam que ele era «esquisito» por ser tão calado, por preferir estar sozinho do que em grandes grupos, por escolher a biblioteca em vez dos jogos de bola. Foram quatro anos de bullying, numa altura em que não havia ainda nome para a crueldade das crianças. Foi preciso chegar a adulto e a estudante de Teologia em Madrid para começar a fazer terapia e compreender de que modo o bullying lhe tinha marcado a alma, muito mais do que o corpo.

Muitos anos antes da terapia, porém, e de soltar os fantasmas presos no baú, Paulo revelava já a sua inteligência emocional. Deixou-se de introspeções, talvez para superar o tormento que tinha vivido e, na adolescência, tornou-se o oposto do que sempre tinha sido. Tornou-se extrovertido, popular, fez grandes amigos que ainda mantém.

A morte de uma grande amiga aos 15 anos num acidente com um carrinho de choque, aliada ao fervilhar de dúvidas típicas da adolescência, faz o primeiro clique: afinal, quem é Deus? Quem é esta entidade que tem o poder de tirar a vida à minha amiga? «Houve como que uma explosão de questões. Acabei a integrar um grupo de jovens. Fiz a primeira comunhão com 16 anos e também a profissão de fé. O crisma aos 18.» Nessa altura, uma passagem do Evangelho ficou a bailar-lhe na consciência: «A messe é grande e os operários são poucos.» Sempre que a lia ou escutava sentia como que uma agitação interior que não sabia explicar. Mas era cedo. Tinha ainda muito por onde se distrair. No 11.º e 12.º anos meteu-se em tudo o que havia para fazer: ginástica acrobática de competição, teatro, era delegado de turma. Nessa altura de grande hiperatividade, concorreu à TAP mas foi eliminado por roer as unhas. Deixou de roer.

Mesmo sem ter entrado para a TAP, as notas sofreram com a sua multiplicação de interesses e Paulo acabou por não conseguir entrar para o curso de Medicina Veterinária. Optou por Ergonomia: «Não tem nada que ver mas era um curso muito diversificado. Como é a ciência que estuda o homem no local de trabalho, tínhamos anatomia, fisiologia, bioquímica, psicologia… e eu gostava de todas essas áreas do conhecimento do ser humano.»

Mudou-se de Portimão para Lisboa, alugou um quarto, adaptou-se à faculdade como peixe na água, fez novos amigos, envolveu-se na associação de estudantes. Também continuou na sua busca pela espiritualidade e acabou por entrar num grupo de universitários católicos (GRATIS: Grupo Reunido na Amizade e Todos Invocando o Senhor). João Delicado, o amigo que conheceu no GRATIS, falou-lhe então do CUPAV (Centro Universitário Padre António Vieira), dos jesuítas, e Paulo começou a ir à missa no Campo Pequeno. Simultaneamente, o bichinho dos aviões tinha-se-lhe colado à pele e, no segundo ano do curso, concorreu à Portugália (PGA). Passou todas as provas e acabou por ser um dos 20 selecionados. Quando recorda esse tempo, em que andou nas nuvens, Paulo Duarte tem um brilho especial no olhar. Não é o mesmo que se lhe acende quando fala do presente e da sua entrega a Deus e ao sacerdócio. São brilhos distintos mas, ainda assim, brilhos inegáveis.

Foi numas férias da Portugália que decidiu participar numa peregrinação organizada pelo CUPAV. «A ideia que tinha de uma peregrinação era velhos de joelhos. E foi com surpresa que me deparei com 200 pessoas da minha idade, a rir, a rezar, a cantar, a partilhar coisas da vida. No ano seguinte, aproveitei de novo as férias e fiz parte da organização. Lembro-me de haver um momento de profunda comoção. Chorei uma tarde inteira e a ideia de vir a ser jesuíta, de vir a ser padre começou a ganhar forma e espaço. Lembro-me de pensar: ‘Tenho uma vida ótima, ganho bem, faço o que gosto, estou a viajar… o que é que se passa?’»

Para perceber o que se passava, Paulo Duarte foi fazer o discernimento, um exercício tipicamente inaciano (Santo Inácio de Loyola foi o fundador da Companhia de Jesus) que permite compreender se existe, de facto, uma vocação e ajudar na tomada de decisão. E quando finalmente decidiu, tinha ainda pela frente dois difíceis momentos: contar aos pais e despedir-se da Portugália. «2003 foi o verão mais quente da minha vida. Quando disse aos meus pais que ia ingressar na Companhia de Jesus entraram em choque. E eu senti-me perdido com a reação deles. Mas, por outro lado, foi importante para perceber que aquilo era mesmo o que eu queria. Porque, se não fosse Deus e a minha vocação, perante a desilusão e tristeza do olhar dos meus pais eu teria desistido.» Os pais sentiam que perdiam o filho único, como se a vida religiosa fosse uma espécie de buraco negro por onde se desaparece sem deixar rasto. «Foi muito difícil para eles, muito difícil para mim.» Hoje esse sentimento de perda está sanado. Os pais aprenderam a sentir orgulho da escolha do seu único filho e da força da sua entrega. Mas foi preciso dar-lhes tempo.

Na Portugália entregou a carta de despedimento à chefe. Ela ficou incrédula (ele acabara de se tornar efetivo). «Vais para a TAP?» Paulo sorriu: «Não, vou para outra companhia. Para a Companhia de Jesus.» Depois das despedidas, o futuro padre entrou para o noviciado, em Coimbra, onde ficou dois anos, só saindo para passar o Natal com a família e apenas mais três ou quatro dias de férias no verão. É um período de muita oração, conferências, trabalho apostólico. «É uma fase de redescoberta da vida em comunidade, de um recomeçar da relação com Deus, de viver com horários rígidos em comunhão com 20 pessoas.»

Paulo Duarte, então já estudante de Filosofia na Universidade Católica, fez os votos no dia 1 de novembro de 2005. Dias antes, a avó Constança, mulher central na sua vida, tinha sido internada. Quando a foi visitar, teve a clara noção de que se despediam: «Ela perguntou-me se eu estava feliz. Pedi-lhe a bênção e ela, surpreendentemente, também pediu a minha bênção. E disse-me para ser sempre feliz, que só assim poderia fazer os outros felizes.»

NM1159_Padre02

Paulo fez os votos de pobreza, castidade e obediência, num importantíssimo passo de entrega da sua vida. Uma festa linda e comovente. Constança morreu nesse mesmo dia, no final da cerimónia. «Esperou por mim e partiu.» Da avó só quis a aliança (que traz pendurada num fio, sempre encostada ao seu peito) e a chave de ferro grande e pesada da sua casa, lugar de tantas memórias de infância.

Fez o curso de Filosofia e, paralelamente, começou a ter aulas de dança. Sentia que o corpo precisava expressar todas as transformações por que a alma passava. «Passei a ser o jesuíta bailarino, o jesuíta que dança. O “diferente”. Mas gosto! A partir daí a dança começou a acompanhar-me e nunca mais me largou.» Depois, veio o Magistério. Dois anos a dar aulas em Cernache, no colégio dos jesuítas. E foi então que teve uma nova provação para resolver. Apaixonou-se. «Foi um dilema grande. Tive grandes conversas com o meu diretor espiritual e percebi qual era o meu caminho. Costumo dizer que o meu primeiro ano em Cernache foi de morte, o segundo foi de ressurreição. Nós, homens da Igreja, somos só homens de carne e osso. Temos fraquezas, como qualquer ser humano. Não nascemos mergulhados em certezas. Temos dúvidas. Não somos infalíveis. Não é sequer bom negar a nossa realidade, a nossa dimensão humana. Esse é o perigo maior.»

Antes de se tornar padre, Paulo esteve ainda três anos em Madrid, a estudar Teologia e está, neste momento, a fazer o mestrado em Teologia Fundamental em Paris. O dia da Ordenação (5 julho de 2014, em Coimbra) foi dos mais felizes da sua vida. Ao entrar na Sé Nova foi vendo os rostos das pessoas da sua vida, como se um filme da sua existência se desenrolasse perante os seus olhos. Talvez um dos momentos mais fortes tenha sido o do prostar: «Deitamo-nos no chão e ali ficamos, a invocar a corte celestial. Chorei um vale de lágrimas. Começaram a chegar-me à cabeça os nomes dos ‘santos’ da minha vida. E a oração que me veio foi: ‘Senhor, que eu seja sempre terra fecunda ao Teu serviço.’ A fecundidade vem do estrume e o estrume tem que ver com os nossos podres, que todos
temos mas podemos transformar em fecundidade, em fruto proveitoso.»

Dias depois, rumou a Fátima, onde foi confessar centenas de pessoas. As suas penitências espantavam quase todos: «Hoje vai chegar a casa, vai olhar para o espelho e dar a si própria um grande abraço» ou «a sua penitência são dois dias de descanso» ou ainda «vai fazer um jantar especial e dizer que gosta muito de si». Para quê mandar rezar ave-marias e pai-nossos a quem só precisa de um pouco de amor próprio e capacidade de se livrar das culpas?

Foi também com este profundo sentido de fé na renovação do ser humano, e na conversão do mal em bem, que Paulo Duarte fez a sua homilia, na primeira missa em Portimão. Citou Marguerite Yourcenar – «Quando se gosta da vida gosta-se do passado, porque ele é o presente tal como sobreviveu na alma humana» – e pediu aos presentes que nunca reneguem a sua história, ainda que ela tenha episódios negros, porque são todos parte de nós.

Na homilia, que (coincidência ou providência?) foi celebrada no Dia dos Avós, o jovem padre não podia deixar de trazer as memórias da avó Constança, pilar da sua vida. E até houve um momento de dança, protagonizado pela bailarina Maria Luísa Carles, grande amiga e professora. Entre os presentes, espanto e comoção. Houve até quem se pusesse de pé nos bancos, na parte de trás da igreja matriz, para ver melhor o momento: «Que bonito… nunca tinha visto isto numa missa!», ouvia-se.

No final, Paulo Duarte recebeu palmas, um presente da comunidade paroquial (um iPad), e centenas de beijos e abraços de todos os que queriam desejar toda a sorte do mundo ao novo padre. «Andei com ele ao colo… quem havia de dizer que seria um homem de Deus?», perguntava uma senhora. «E que bonito que é!», respondia a outra. Se as ouvisse, o senhor padre teria gracejado com elas. Porque, para ele, a sua entrega não significa um despojamento da sua humanidade, com todas as qualidades e defeitos. E, por isso, haverá sempre lugar para as palavras sérias, as metáforas bonitas, o humor, a comoção, a arte. A Igreja ganhou um padre diferente. Bem-vindos a bordo!