Cozinhar para não esquecer

Maria Lawton escreveu, nos Estados Unidos, um livro de receitas açorianas a pensar nas filhas luso-americanas. Resultado: 18 mil fãs no Facebook, mais de dez mil exemplares vendidos, um segundo livro e um programa de televisão na calha.

Foi na cozinha que Maria Lawton encontrou uma maneira de manter a mãe viva. Quando Adelina Medeiros morreu, a açoriana decidiu que ia começar a cozinhar os pratos preferidos do pai. «A minha mãe era uma grande cozinheira e ele sempre adorou a sua comida», diz Maria. «Cozinhar foi a maneira que encontrei de tentar compensar a sua ausência.»

José Medeiros queria açorda de hortelã, abrótea guisada, massa sovada e Maria, mesmo sem saber cozinhar estes pratos, ia tentando satisfazer os desejos do pai. «Nunca tinha tentado cozinhar nada português, só sobremesas. Uma pessoa não compete com a sua mãe. O meu pai ia dizendo que estava tudo muito bom, mas eu sabia que não estava como a comida da minha mãe», lembra.

Manuel morreu três anos depois da mulher. Quando Maria limpou o apartamento dos pais, em New Bedford, Massachusetts, encontrou um caderno de argolas. Inscrito nas páginas amareladas, descobriu a caligrafia da mãe. Em português, a açoriana tinha anotado apenas listas de ingredientes – nunca as receitas completas, com as quantidades e os pequenos truques que fazem o sucesso de um prato. Durante alguns anos, ela tentou reconstituir as receitas. «A determinada altura percebi que tinha de fazer mais do que experiências na cozinha.» Fez então uma lista de todos os pratos que queria aprender a cozinhar. Virou-se para o marido, norte-americano, e disse: «Vou duas semanas para os Açores aprender a cozinhar.»

REGRESSO AOS AÇORES
Foi assim que, há cinco anos, Maria aterrou no aeroporto de Ponta Delgada, conduziu até Nossa Senhora do Rosário, na Lagoa, em São Miguel, e mostrou a lista aos tios. «Preciso de aprender a fazer estes pratos», disse. «Os tios ensinam-me?» Os familiares concordaram e começaram de imediato a cozinhar, mas queriam Maria bem longe da cozinha. «Diziam que eu era convidada. Tive de explicar que queria mesmo cozinhar, que tinha vindo para isso, e eles perceberam. Foram maravilhosos», conta Maria.

A primeira receita que aprendeu foi abrótea guisada, o prato que a mãe cozinhava para os jantares de sexta-feira. Viu a tia Maria Inês alourar a cebola, o alho, as malaguetas e o tomate em banha de porco, viu-a repousar as postas de peixe e batatas às rodelas no refogado e, finalmente, encher a panela com água e temperar com salsa, hortelã e azeite. «A cozinha cheirava exatamente como a da minha mãe», diz. «Foi como se ela estivesse comigo de novo.» Começou a chorar. A tia explicou-lhe por que os cheiros eram tão familiares: Adelina não sabia cozinhar quando casara com José, que pediu à sua mãe que ensinasse a mulher a cozinhar. «Tivemos todas a mesma professora», explicou Inês: «A minha mãe.» Maria percebeu, então, que também podia aprender. «Achei sempre que nunca conseguiria, mas depois pensei: meu Deus, eu consigo fazer isto.»

Maria saiu de São Miguel com 6 anos. Em 1967, quando chegou a New Bedford, a cidade de Massachusetts acolhia dezenas de milhares de emigrantes açorianos. Maria cresceu no seio da comunidade, numa casa com três apartamentos. No primeiro andar, vivia a sua família. Maria, a mais nova de três irmãs, chegava da escola e a mãe já estava na cozinha. «Mas a cozinha era muito pequena e uma das minhas irmãs estava sempre a ajudá-la», explica Maria, que dava um beijo à mãe e ia ter com o pai, que estava na horta, e lhe ensinava a podar a vinha ou a colher agriões. «O meu pai também cozinhava, fazia umas iscas de fígado maravilhosas e peixe grelhado», conta. Noutros dias, seguia para o segundo andar da casa, onde vivia a avó, que fazia sobretudo sobremesas e pão. «A minha avó era uma grande doceira, com quem aprendi a fazer muita coisa.»

Maria lembra a mãe sempre a cozinhar – «nunca percebi como tanta comida saía de uma cozinha tão pequena» – mas, entre a casa da avó e a horta do pai, chegou à idade adulta sem aprender a cozinhar.

COZINHAR, COMER, ESCREVER
Depois da visita aos Açores, Maria regressou a sua casa em Dartmouth e ao trabalho de todos os dias, num escritório de advogados. Durante quatro anos, trabalhou no livro aos serões e fins de semana. Junto de cada receita, foi contando a história da família e partilhando memórias da infância, que recolhia em visitas semanais à tia Lília e ao tio João, que vivem em New Bedford. «Cozinhava, escrevia e comia. E chorava. Fazer este livro foi também um luto, pela perda de pessoas de quem era muito próxima.»

Maria, que tem três filhas, Erica e as gémeas Rebecca e Sarah, diz que escreveu o livro a pensar nas filhas e nos sobrinhos. «Todos eles nasceram cá, mas têm muitas memórias ligadas à comida. As melhores memórias que temos são à volta de uma mesa. Não queria que passassem pelo que passei.» Enquanto escrevia o livro, Maria criou uma página do Facebook. Azorean Green Bean, que hoje tem perto 18 mil fãs, foi uma forma de a autora partilhar o que ia fazendo, de se organizar e de encontrar motivação para ir produzindo novo material.

Em junho do ano passado, o livro estava pronto. Maria começou a distribuir uma edição particular pela sua família. Em pouco tempo, começaram a chegar os pedidos de amigos, depois de amigos de amigos e, finalmente, de estranhos. Os fãs do Facebook também queriam uma copia. Maria pôs o livro à venda na Amazon e em livrarias locais. Uma, duas, três edições esgotaram.

DA FAMÍLIA DE MARIA PARA A SUA
Passados uns meses, chegou o telefonema da Union Park Press, uma editora de Boston. «É raro um autor que se publica a si próprio ser escolhido por uma editora», explica a responsável pelo marketing e publicidade da editora, Caitlin Cullerot. «É algo especial.» A editora fez algumas revisões, tirou novas fotografias e teve a ideia de incluir fotografias dos Açores, incluindo algumas da infância da autora, como a preferida de Maria, em que é bebé e está sentada ao colo do avô.

Azorean Cooking: From My Family Table to Yours chegou às livrarias em janeiro deste ano. Depois dos portugueses e luso-americanos de segunda e terceira geração, o livro começou a chegar ao público norte-americano. «São pessoas com amigos portugueses ou outros que seguem recomendações. Os americanos adoram a nossa comida e querem aprender a fazê-la», garante Maria.

Além dos Estados Unidos, Portugal e Canadá, as encomendas chegam também da Argentina, Austrália, Noruega e Índia. Na internet, há dezenas de críticas a agradecer o trabalho de Maria. Sue escreveu na Amazon: «Os meus pais morreram há muito tempo. O meu marido é canadiano e não tenho qualquer ligação com a comunidade açoriana ou qualquer pista sobre as receitas da minha mãe. Apenas memórias. Você trouxe os Açores de volta para minha casa, foi tão emocionante.» AMB disse que a obra «é mais do que um livro de receitas, é uma passagem de tradições e memórias para as próximas gerações.»

Com a ajuda do livro, Maria garante que as filhas já são boas cozinheiras de pratos açorianos. «E sei que também vão ensinar os seus filhos», diz. São agora críticas como as da Amazon que a motivam para um segundo livro, de sobremesas. «É uma loucura», diz a açoriana. «Nunca pensei que isto pudesse acontecer. As pessoas escrevem-me a dizer: lembro-me da minha mãe fazer isto, ou esta era a receita da vovó que eu adorava e nunca aprendi a fazer. Agora sei, finalmente. Obrigado.»

UMA RECEITA DA MARIA

LICOR DE LIMÃO À MODA DOS AÇORES

Ingredientes:
_ Quatro chávenas de álcool
_ 800 gramas de limões biológicos
_ seis chávenas de água
_ 4 chávenas de açúcar
Corte a pele (só a parte amarela) dos limões e mergulhe-os completamente no álcool durante 14 dias. Retire as peles do álcool e use um filtro para coar o álcool. Numa panela, ferva a água, acrescente o açúcar até dissolver. Deixe arrefecer até à temperatuda ambiente. Acrescente o álcool. Ponha em garrafas e aguarde uns meses até ficar um licor suave, que deve beber gelado.