Como ter uma super memória

Não precisamos de ser como Ramon Campayo e Miguel Angel Vergara, campeões do mundo de memorização rápida, mas todos podemos aperfeiçoar e desenvolver o cérebro. Tal como o corpo, a mente precisa de «ir ao ginásio» para se manter saudável e ativa durante muitos anos.

Quantas vezes já chegou ao carro e teve de vol­tar a casa porque se es­queceu das chaves em cima do móvel da en­trada? Ou foi da sala ao quarto para ir bus­car algo e, chegando lá, não se lembrava o que era? E os conhe­cidos que encontra na rua e cumprimenta amavelmente sem, contudo, se lembrar do nome? Nessas alturas, a tendência é para pensar que a idade começa a pesar e a me­mória já não tem a frescura de outros tem­pos. Mas isso é pouco provável.

Esses pequenos esquecimentos – entre as milhentas tarefas diárias e a catadu­pa de informações que nos bombardeia a toda a hora – têm muito mais a ver com distração e stress do que com a perda de fa­culdades mentais. Estas podem manter-se perfeitamente intactas até idade avan­çada, especialmente se as mantiver ativas e lhes der exercício.

Se há alguém que sabe falar do tema é Ramón Campayo, o único homem de que há registo no mundo a conseguir memo­rizar 23 200 palavras, ouvindo-as apenas uma vez, e reproduzindo-as, depois, exa­tamente pela mesma ordem. Este espanhol, de 48 anos, decora cem números em 50 segundos. Ou 17 em ape­nas meio segundo de visualização. Tem todos os recordes mundiais de memoriza­ção e leitura rápida e já são mais de uma centena. Este ano, em Lisboa, perdeu, pe­la primeira vez em oito anos, o título mun­dial de speed memory [memorização rápi­da] para outro espanhol, Miguel Angel Vergara, de 31 anos, que foi seu aluno. Os Campeonatos do Mundo de Memória Rápida [Speed Memory] realizam-se des­de 2007 por iniciativa de Ramón Campayo, que, aos poucos, foi cimentando a nova va­riante das competições mundiais de me­mória, já existentes de forma sistemática desde 1991. Ou seja, o recordista espanhol acrescentou velocidade e, por isso, mais emoção, às tradicionais provas de memó­ria. Em vez de estarem uma hora a decorar números, o espanhol desafiou os concor­rentes a concursos de um e quatro segundos, testando a rapidez com que a informação é captada e absorvida pelo cérebro.

Atualmente, os campeonatos do mun­do disputam-se ao longo de dois dias e in­cluem seis diferentes provas. Este ano, o mundial realizou-se em Lisboa. A próxi­ma edição acontecerá em 2015, em Lon­dres. Qualquer pessoa pode inscrever-se, bastando que obtenha e instale o softwa­re oficial da competição. Segundo Ramón Campayo, o sexo masculino tem domina­do a modalidade. «Há ainda poucas mu­lheres a concorrer. Precisamos de mais», desafia. Remontam à Antiga Grécia as pri­meiras técnicas para treino da memória, tendo estas sido consideradas, duran­te tempo, parte importante na educa­ção dos jovens.

Foi a Academia de Sobredotados do Ins­tituto da Inteligência – uma divisão da agência inglesa de divulgação científi­ca MPS, dirigida por Nelson S. Lima, que organizou recentemente o Campeona­to do Mundo de Speed Memory em Lisboa. «Os praticantes de memorização rápida aprendem e treinam, de forma intensiva, técnicas para apurar a concentração, de­senvolver a rapidez do processamento da informação e controlar a ansiedade», ex­plica Nelson S. Lima, professor universi­tário de neurociência no Brasil e Estados Unidos, para além de membro efetivo da Associação Britânica de Escritores Cientí­ficos. Mas, apesar disso, também eles po­dem esquecer-se de pequenas coisas em situações da vida real se estiverem sob stress ou simplesmente distraídos. «Dado o treino adquirido e a prática permanen­te da memorização rápida, é natural que mantenham um alto desempenho no que respeita ao registo de informação nova», explica o organizador.

COMEÇAR A IR AO GINÁSIO

Ao darem entrevistas e divulgarem as suas atividades, os dois campeões espanhóis pretendem alertar todas as pessoas pa­ra o facto de ser tão importante exercitar o cérebro como o corpo. E isso vai refle­tir-se nas pequenas coisas do dia a dia e numa maior longevidade intelectual. «Exercitar a memória fez que ganhasse também maior segurança e autocontro­lo, passei a fazer tudo com mui­to mais tranquilidade, porque sei que tenho capacidade para reali­zar qualquer tarefa», diz Miguel Angel Vergara, o novo campeão mundial de memorização rápi­da. «Praticar desporto mental vai ter repercussões em tudo na vida. É como ter um físico mais forte e trabalhado.»

Miguel Angel Vergara é polí­cia em Vilanova i la Geltrú, perto de Barcelona. Em 2007, ainda em Albacete, sua terra natal, pas­sou por uma livraria e chamou-lhe a atenção um livro de Ramón Campayo com o título Desenvolva Uma Mente Prodigiosa [editado em Portugal pela Esfera dos Livros e a Editorial Planeta]. Comprou-o e ficou fascinado. «Mudou a minha vi­da por completo. Comecei a praticar os exercícios que ele propunha», relata o agente da Polícia Nacional, que, todos os dias, passa uma hora e meia no ginásio das passadeiras, bicicletas e máquinas de musculação, e outra hora e meia naqui­lo a que chama de «ginásio mental». Só há três anos é que Miguel Angel Verga­ra decidiu começar a competir e garante que não preciso ser-se um génio para fa­zê-lo. «Qualquer pessoa pode participar nos nossos campeonatos. Eu, por exem­plo, tenho um quociente de inteligência (QI) absolutamente normal e o que fiz foi começar a treinar a mente tal como já fa­zia com o corpo.»

No caso de Ramón Campayo, para além de demorar metade do tempo de uma pes­soa normal a percecionar e processar os estímulos exteriores, recebidos pelos sen­tidos – já foi submetido a vários estudos científicos – tem também um QI muito ele­vado. O valor médio é de 100, o espanhol tem 194, ao nível da genialidade. «Mas são capacidades distintas», ressalva o recor­dista.

AS IMAGENS E ASSOCIAÇÕES MENTAIS

Nos campeonatos de memorização rápi­da, os concorrentes são submetidos a vá­rias provas: decorar o máximo de núme­ros, de zero a nove, em um ou quatro se­gundos de visualização; decorar números binários, só zeros e uns; e decorar ainda fi­guras geométricas com cores. Não há pro­vas de palavras, porque não seria justo pe­rante concorrentes com nacionalidades diferentes.

«A nossa memória tem dificuldade em registar dados isolados, que não estejam associados a outras informações. Assim, para nos ajudar, criamos imagens men­tais, fotográficas. A memória visual é a mais forte das nossas memórias. Fazemos associações de palavras, elaboramos his­tórias, e a informação será tanto mais fá­cil de memorizar quanto mais imaginati­va, mal comportada ou inverosímil for. É como se criássemos um filme na nossa ca­beça. É fácil esquecermo-nos do que é ba­nal, mas facilmente recordamos um epi­sódio insólito, extravagante ou divertido», explica Ramón Campayo.

E um segundo dá para isso tudo? «Um segundo é um mundo, dá para pensar muitas coisas», responde Miguel Angel Vergara, que, ainda hoje, segue as téc­nicas e os exercícios propostos pelo seu mestre: treinar especificamente a memó­ria de curto ou de longo de prazo, também chamada de retenção. Em ambos os ca­sos, a concentração é fundamental e essa é também uma das faculdades que é tra­balhada e melhorada com o tempo. «Ao princípio, parece impossível. Mas com o treino, o cérebro começa a agilizar-se, tornando-se mais rápido e eficaz», ga­rante Miguel Angel Vergara, pedindo um número de telefone e repetindo-o logo em seguida, para exemplificar uma ou­tra técnica de memorização que necessi­ta de algum tempo de aprendizagem mas, afiança o campeão, é muito eficaz: a do al­fabético fonético, em que os números são associados a fonemas. «Associei 91 a bo­ta, 22 a bebé, 68 a sacho, 36 a mesa e 3 a fumaça.»

NEUROFITNESS E A FUGA AOS AUTOMATISMOS

Treinar especificamente para este género de competições torna-se um desafio para os limites da mente humana. Mas não é pre­ciso chegar tão longe para prolongar a saú­de do cérebro e, em particular, a memória. «O exercício intelectual exigido por ativi­dades como ler, escrever, informar-se, con­versar e conviver com outras pessoas é efi­caz na preservação e até no melhoramento da capacidade de aprendizagem», diz Nel­son S. Lima, aconselhando todas as pesso­as «a procurarem novas áreas do saber e a estudá-las, a informarem-se de forma crí­tica, evitando a passividade e a aceitação de tudo o que lhes é transmitido, a recordarem antigos saberes, relendo livros ou revendo aprendizagens ou a trocarem ideias e co­nhecimentos com outras pessoas».

Evitar automatismos também é uma forma eficaz de se muscular e agilizar o cérebro. Recentemente nasceram os con­ceitos de neuróbica e neurofitness. Ati­vidades que contrariam aquilo que está aprendido e rotinado. Por exemplo, são bons exercícios lavar os dentes com a mão não dominante, tomar banho de luz apa­gada, mudar o caminho para o trabalho ou usar o relógio no outro pulso. «Reconstituir a infância, estimular sen­tidos como o paladar e o olfato, aprender uma língua, música, pintura e informáti­ca – tudo isto ajuda a ginasticar o cérebro e, consequentemente, a memória.» «Praticar jogos intelectuais como o xa­drez, dar azo à criatividade e trabalhar pensamento analítico. O sono também é essencial: dormir pelo menos oito horas por noite ajuda a manter a memória ativa, pois enquanto dormimos o cérebro grava o que aprendemos durante o dia. A prática regular de exercício físico e uma alimenta­ção equilibrada são fatores que contribuem igualmente para manter a memória em forma”, acrescentou o cientista.

10 EXERCÍCIOS PARA O CÉREBRO

» Lave os dentes com a mão não dominante.

» Tome banho de luz apagada.

» Mude o caminho para o trabalho.

» Use o relógio no outro pulso.

» Reconstitua um momento da sua infância.

» Aprenda de cor uma música nova.

» Comece a pintar.

» Jogue xadrez.

» Durma bem – pelo menos oito horas por noite.
 
» Pratique exercício físico e uma alimentação equilibrada.

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NELSON LIMA

«PODEMOS MUDAR A NOSSA CAPACIDADE DE MEMORIZAÇÃO»

O que é a memória?
_Numa perspetiva biológica, é um processo central dos organismos vivos que os dota da capacidade de sobreviverem e adaptarem-se ao meio ambiente através do registo contínuo de informações. Nos seres humanos, a memória é multifocal, isto é, decorre em diferentes planos e de forma variada. Podem ser memórias de curto e de longo prazo; memórias de trabalho, autobiográficas, de saberes adquiridos ou de aptidões aprendidas e automatizadas. A memorização é um processo contínuo consciente e intencional – como na atividade de estudar – ou não consciente, através dos estímulos externos e internos, que chegam ao sistema nervoso a todo o instante.

Que parte do cérebro se ocupa da memória?
_Praticamente quase todo o cérebro participa no processo de memorização, já que envolve diferentes áreas, especialmente as diretamente implicadas nas atividades de aprendizagem, adaptação e sobrevivência.

No todo que representa o ser humano, qual a importância da memória?
_É vital. Basta imaginarmos o que seria uma pessoa nascer sem capacidade de memorização. É um recurso determinante não apenas para o conhecimento do meio ambiente como para o próprio autoconhecimento. Uma pessoa que perdesse todas as suas memórias e a capacidade de adquirir novas informações seria praticamente incapaz de viver. Somos, em boa medida, aquilo que aprendemos através da memória e dos processos biológicos que lhe permitem funcionar.

Todos nascemos com a mesma capacidade de memorização?
_Idealmente, sim. Mas verifica-se que por motivos biológicos, ambientais – sociais, culturais, entre outros –, as pessoas têm diferentes capacidades de memorização ao nascer. Mas podem ser modificadas, dependendo dos estímulos.

Há animais com uma memória próxima dos humanos?
_Os animais são dotados, obviamente, de memória. Os primatas são os que se aproximam mais do ser humano e está provado que alguns, como os chimpanzés, têm memória de si mesmos e dispõem de autoconsciência.

Há recordações que apagamos de forma inconsciente por serem más?
_As memórias de acontecimentos emocionalmente significativos tendem a perdurar por longo tempo. Mas é verdade que, por vezes, mecanismos de defesa abafam memórias traumáticas. Isso não quer dizer que elas não fiquem registadas e não produzam efeitos nos nossos comportamentos e até na saúde ao longo da vida.

Quais os desafios que tem pela frente como investigador?
_É objeto dos meus estudos a evolução da mente humana e a aplicação da inteligência artificial na criação de próteses cognitivas que venham a servir a humanidade no futuro próximo. O que mais me atrai é a inteligência criadora do homem e a sua evolução nos próximos milénios.