Cacilhas é cool

Rua de tascas, tabernas e burricadas no início do século XX e de restaurantes e comércio decadente no final deste, a Cândido dos Reis, em Cacilhas, é hoje a rua mais cool de Almada e arredores. A decisão de a tornar pedonal causou polémica, mas revelou-se transformadora. E os novos projetos que foram dar vida a espaços fechados, degradados e vazios estão a ter um sucesso que espanta até quem ali arriscou tudo.

O Estaminé 1955 é um dos mais recentes espaços da Cândido dos Reis. Aberto em agosto, justifica filas de gente à porta, à espera de mesa, sobretudo às sextas e sábados, ao jantar, mesmo quando o clima não está de feição. Hamburgueria gourmet é como se apresenta a aventura de Linda Ribeiro, 38 anos, e Miguel Marques, 37. Habitantes da margem sul, ele trabalhava em turismo, ela com o pai, entretanto falecido. Sempre quiseram ter um negócio a que pudessem chamar seu. Um bar era a ideia, até porque a mãe de Linda teve dois, um no Bairro Alto e outro nas Janelas Verdes, mas os horários noturnos não se coadunavam com os de um filho pequeno. A rua, que viu nascer a mãe de Linda, atraíu-os. «A minha mãe, que foi miss Almada, é muito querida aqui. Desde que a rua foi fechada ao trânsito tornou-se muito apetecível, teve melhorias incríveis, as crianças podem correr à vontade, a onda é boa. Quando vimos as montras deste espaço apaixonámo-nos», conta Linda. A luz e o balcão de leitaria antiga foram decisivos. Miguel e Linda deitaram mãos às obras de recuperação e à criação do conceito e num ano abriram o Estaminé 1955. «Estaminé porque é o nosso canto, 1955 porque é a data de construção do prédio. O sr. Brito, dono da leitaria que depois se adaptou a taberna e que aqui esteve 50 anos, até se emocionou com o que aqui fizemos. “Não estraguem a loja do sr. Brito”, diziam-nos as pessoas. E não estragámos. Só recuperámos.» A carta, que ainda esteve para ser de sushi, casa hamburgueres com a boa e tradicional cozinha portuguesa e para a apurarem tiveram a ajuda de Noémia Garcia, que trabalhou na cozinha do Hotel da Lapa, e da mãe de Linda, «excelente cozinheira» e grande apoiante deste projeto. «Passámos um ano em experiências até chegarmos à oferta que temos hoje. E não está terminada. Ainda há segredos por revelar», desafia Linda. Venham eles.

A Cândido dos Reis, que outrora se chamou Rua Direita, começa no Largo de Cacilhas, onde aportam os cacilheiros que fazem a travessia do Tejo, ligando Lisboa a Almada, e acaba no antigo Largo do Poço, onde fica o atual posto de Turismo, sendo uma das portas de entrada da cidade. No início do século XX era rua de comércio movimentada, com tascas e tabernas, estalagens e cocheiras, mercearias e drogarias. Da sua história reza que, no dia do terramoto de 1755, alguém, de entre a população em pânico pelo maremoto que se avizinhava, correu à ermida de Santa Luzia, no início da rua, onde é hoje a Igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso, e levou a imagem da santa, perante a qual as águas revoltosas do rio amainaram. Ainda hoje, todos os anos, a 1 de novembro, uma procissão celebra o milagre. Os burros, que transportavam mantimentos e pessoas vindos de Lisboa, são outra das memórias que o tempo não apagou e que estão associadas a esta rua de Cacilhas. Os estaleiros da Lisnave e o seu desmantelamento também deixaram marcas e na primeira década do século XXI, a Cândido dos Reis era pouco mais que uma rua de passagem, onde o comércio decaía, lojas fechavam e restaurantes sobreviviam. Há pouco mais de dois anos, no entanto, a concretização da, então polémica, decisão da Câmara Municipal de Almada de a requalificar, fechando-a ao trânsito, tornando-a pedonal e recuperando o edificado, foi transformadora, ao contrário do que vaticinavam os que se opunham, entre os quais alguns comerciantes sobreviventes. Temiam que fosse o fim.

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Não foi. Aliás, para muitos foi o princípio. Para Célia Guerreiro, 40 anos, e Sérgio Correia, 39, por exemplo. O casal, ele pasteleiro, ela empregada numa ervanária, foi dos primeiros a perceber o potencial da nova rua. E largou tudo para, há dois anos, em junho de 2012, abrir o Chá de Histórias (na foto), onde em tempos tinha funcionado uma mercearia e taberna. O sonho era antigo e o namoro àquele estabelecimento fechado há tantos anos também. Queriam um espaço onde acontecesse muita coisa. E conseguiram-no. Com uma decoração vintage, onde pontuam um telefone dos antigos, uma máquina de escrever, um ferro de engomar ou um gira-discos, criaram um ambiente acolhedor, tanto lá dentro como cá fora, na esplanada, onde não faltam as mantinhas para os dias de inverno ou as noites frias de verão, os jogos de mesa e os livros para miúdos e graúdos. Os chás e os bolos inventados pelo Sérgio são a especialidade da casa, mas aqui nunca se para de criar e por isso a carta é interminável, entre tostas e tapas, saladas e hamburgueres, ovos mexidos e crepes, sumos e cocktails, gins e cervejas. E depois há as tertúlias, a poesia que sai à rua, os filmes da vida de cada um nas noites de cinema. «A ideia é termos de tudo, como numa mercearia, mas alargando o conceito de tudo. No espaço aqui ao lado, onde antes existia uma taberna, começámos por criar um atelier de atividades para crianças. Agora, estamos a remodelá-lo para o tornar mais versátil e fazer cafés-concerto à noite. Não desistimos dos mais pequenos, queremos fazer a hora do conto e outras atividades, mas assim temos mais margem de manobra», explica Célia. Sérgio concorda. «As ideias vão surgindo e nós vamos atrás delas. O que queremos é que as pessoas se sintam bem aqui, como em casa.».

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Em casa está o vizinho da frente, João Birra (na foto), 30 anos, almadense de gema, orgulhoso de poder dizer que nasceu no hospital velho da cidade. Formado em Gestão de Empresas, pela Universidade Autónoma de Lisboa, o trabalho como comercial num banco não lhe enchia as medidas e há cerca de um ano dedidiu arriscar tudo e, com as suas poupanças e as da família, abrir a Birraria, mistura do seu nome, que em italiano significa cerveja, e birreria, cervejaria ou fábrica de cerveja no mesmo idioma. «Foi tudo uma feliz coincidência: a minha paixão por cervejas, a oportunidade de adquirir este espaço e a percepção do potencial de negócio que estava a nascer nesta rua. Há que dar os parabéns à Câmara Municipal de Almada que enfrentou todas as resistências e oposições e avançou com este projeto de fechar a rua aos carros e pô-la ao nível do que existe nas grandes cidades europeias. A aposta está ganha.» A de João Birra também. Com uma vasta oferta de cerveja artesanal, nacional e internacional e, não querendo perder a onda do momento, com uma carta de gins invejável, o bar Birraria tornou-se paragem obrigatória das noites cool de Almada. «A ideia é atrair gente gira, que gosta de estar a conversar à volta de um copo. Por isso, não caímos na tentação de vender shots. Queremos ser um espaço confortável, de convívio, com boa onda.» O sucesso tem sido tal que lhe permitiu abalançar-se noutro projeto: o de criar um hostel no primeiro andar. O número de estrangeiros que todos os dias via entrar por esta porta da cidade que é a Cândido dos Reis fez soar a campainha. Com dois quartos, 12 camas em beliche, casa de banho, sala e cozinha comuns, o Birraria Hostel abriu em agosto e é a menina dos olhos de Birra. «É um orgulho poder dizer que Almada, a minha cidade, já tem um hostel.»

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Por vezes os olhos estrangeiros veem melhor. Foi o que aconteceu com o clã encabeçado pela matriarca Dália Trindade (ao centro, na foto), engenheira civil de 65 anos. O genro Georg (à direita, na foto),  alemão que teve um bar em Lisboa, 46, vivia com a filha, Catarina Dias (ao lado de Georg, na foto), 34, joalheira, na Cândido dos Reis, e quando deu conta de que um edifício em ruínas estava a ser recuperado para se transformar num prédio de pequenos modernos apartamentos viu ali uma oportunidade de negócio. Foi há um ano e meio. «Reunimos o conselho de família», conta João Dias (à esquerda na foto, com a mulher Pollyana), 37 anos, fotógrafo e editor de cinema, «e de comum acordo entrámos juntos nesta aventura de criar uma pequena unidade hoteleira: o Cacilhas Guest Apartments. Juntámos as poupanças de todos, sendo a fatia maior da minha mãe, claro, e fizemos uma proposta ao senhorio, de arrendar todos os apartamentos – oito.». O primeiro ano correu tão bem que avançaram para mais sete, no edifício em frente, em parceria com o mesmo senhorio, cujas obras estão em fase de acabamento. «Cacilhas está a descolar em relação ao turismo e a especulação imobiliária vai disparar. Era agora ou nunca». A Cacilhas Guest Apartments é uma unidade hoteleira sui generis, com dois edifícios a meio da rua e a recepção no nº126, onde são servidos os pequenos-almoços dos hóspedes e que funciona também como cafetaria aberta ao público, com saladas e sanduíches e brunchs e por aí fora. «Esta dispersão cria um relacionamento mais orgânico com a rua e o bairro e isso resulta numa vantagem que encaixa no tipo de hóspedes que recebemos: famílias com filhos e curiosidade, sobretudo os estrangeiros, de entrar em contacto com a população local. A ideia de ir de cacilheiro para Lisboa, à hora de ponta, quando as pessoas vão para o trabalho, é para eles fantástica. E acaba por nos aproximar da capital» Com uma decoração irrepreensível, fruto do bom gosto e talento da irmã Catarina Dias, os soalheiros apartamentos, com nomes de praias da Costa de Caparica, têm um quarto, sala com kitchenette e uma casa de banho. «E depois o 126 também começou a correr muito bem», diz João Dias com ar de desalento logo transformado em gargalhada: «é que não está a ver o trabalho que tem sido, o empenho e dedicação exigidos. Isto tomou proporções que nunca imaginámos.» Proporções que, além dos quatro membros da família já referidos e de Pollyanna, 30 anos, artista plástica e mulher de João, levaram, há quatro meses, à contratação de mais cinco pessoas.

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Um pouco abaixo outro espaço sui generis. No Mundo Fixie são as bicicletas quem mais ordena. Oficina de um lado, da responsabilidade de Luís Pereira, 32 anos, um dos quatro sócios, todos da mesma idade. Aqui arranjam-se, restauram-se, reinventam-se ou personalizam-se bicicletas, tornando-as únicas. Do outro lado, bar lounge, à frente do qual está Tiago Jesus, onde o ambiente, lá dentro ou cá fora, funde bicicletas com mobílias de casa dos avós. «Podíamos ter decorado com móveis do Ikea, mas preferimos reciclar, reaproveitar e dar um cunho pessoal, criando o conforto de uma sala de estar», diz Bruno Candeias, o sócio que tem o «pelouro» das finanças e da comunicação e que se juntou ao projeto em janeiro deste ano, quando a loja física abriu. O conceito que começou por ser desenvolvido online nasceu do gosto e experiência de três amigos – Luís, Tiago e Sérgio Pereira, designer, que quando estava a tirar o curso em Londres, era bike messenger nas horas vagas (ou seja, fazia entregas de bicicleta), – na área das Fixed Gear’s. Todos da zona de Almada, queriam dar à cidade um espaço diferente e daí até passarem do mundo virtual para o real foi um passo. O crescimento da tendência para usar a bicicleta como meio de transporte urbano foi o estímulo e esta rua, tornada pedonal, o spot ideal. «Esta rua é não só um ponto de passagem para os almadenses que vão trabalhar para Lisboa de bicicleta – e há cada vez mais pessoas a fazer isso – como o ponto de encontro perfeito para ciclistas, sejam habitantes locais, sejam turistas. À medida que os meses passam percebemos que foi uma boa aposta.»

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Outra boa aposta está no fim da rua. Ou princípio, depende se a descemos ou subimos. É a Amor Gelado, projeto de Gonçalo Malafaia (na foto), 41 anos. Pedreiro da construção civil e depois funcionário da cadeia Leroy Merlin, viu-se no desemprego em 2012. Mas não baixou os braços. Diante da dificuldade em arranjar trabalho, rumou à Alemanha, onde a cunhada portuguesa e o cunhado italiano tinham uma gelataria. Não conseguiu convencê-los a virem para Portugal abrir com ele um negócio de gelados artesanais, mas saiu de lá com um trunfo: o segredo da receita artesanal do cunhado, que tanto sucesso fazia no país de Merkel. Ao mês intenso de aprendizagem a fazer gelados juntou uma formação em empreendedorismo oferecida pelo Centro de Emprego e daí resultou uma das poucas gelatarias em Almada, aberta em julho e cuja qualidade, desenvolvida à porta fechada no laboratório de gelados, justifica a visita. E o regresso. Com uma oferta que se alarga aos crepes, taças compostas, batidos e cocktails gelados, Gonçalo já tem plano B para o inverno: apostar no conceito de salão de chá.

Em época de crise, não é estranho tanto negócio a abrir numa pequena rua de Almada, e com sucesso? «Desde que exista qualidade e os negócios tenham conceitos bem definidos, quanto maior a oferta melhor. A vida, as coisas boas e o dinamismo atraem as pessoas, atraem toda a gente.». A resposta é de João Birra, da Birraria.