«Às vezes apetece-me largar o apito»

(Artigo publicado originalmente a 9 de junho de 2014)

O mais bem-sucedido árbitro português de sempre já partiu para o Brasil, onde será um dos 25 juízes do Campeonato do Mundo de Futebol. No dia anterior casou. Dois dias antes deu esta entrevista, onde falou das empresas de que é dono, da pressão antes dos jogos, da vida para lá do futebol, de política e do que a arbitragem lhe deu – e lhe tirou. Há quem garanta que Pedro Proença é um dos candidatos a arbitrar a final. Ele diz que, seja qual for o jogo, o último do campeonato será também o último da carreira de 26 anos.

Tem 43 anos, 26 de carreira como árbitro. Pensa muito no passado? E no futuro? Por exemplo: como se vê com 80 anos?
_Se chegar a essa idade, espero continuar a ser uma pessoa que faz aquilo de que gosta. Acima de tudo isso.

Felizmente, sou um privilegiado, não na minha carreira de árbitro, mas naquilo que sou como pessoa. O Pedro é muito mais do que a parte visível do futebol dá a conhecer às pessoas.
Certamente já estará reformado.
_Nunca tive espírito de função pública. Assim a saúde me permita, irei estar sempre em atividade. Tenho muita coisa que gosto de fa­zer fora do futebol. Tenho uma carreira académica, sou neste mo­mento proprietário de duas empresas, técnico oficial de contas e administrador de insolvências. Por uma escolha que fiz, que tem que ver com o futebol, deixei muitos projetos em stand-by e, quan­do a minha carreira terminar, quero retomar esses projetos, no­meadamente na carreira académica. Gostava de estudar um pou­co mais, nunca pude ir estudar para o estrangeiro e ainda gostava de fazê-lo.

Estudar o quê?
_Sou do curso de gestão e gostava, eventualmente, de fazer um mestrado nessa área.

Vamos ter, portanto, um idoso hiperativo…
_Sim [risos]. Neste momento, tenho quase cem pessoas a trabalhar comigo. Felizmente – e digo isto com muito orgulho e autoestima elevada – o futebol é a parte visível da minha vida, mas onde efe­tivamente me sinto confortável e realizado é profissionalmente. Tem sido muito difícil conciliar tudo. Tenho conseguido, mas há muitas coisas que quero fazer, nomeadamente nestas duas em­presas que tenho: uma de gestão de resíduos e outra de produção metalomecânica.

Tem uma filha de 4 anos. Nessa altura, ela poderá já ter-lhe dado netos. O que se vê a contar-lhe?
_Eu guardo muito pouco na memória. O passado está feito, nun­ca o fiz para ser recordado e para que as pessoas tivessem orgu­lho. Fi-lo simplesmente por realização pessoal e não tenho a pre­tensão de que o meu passado sirva de modelo ou história para quem quer que seja, nomeadamente a minha filha ou netos. Até porque alguém que entre nos meus espaços, na minha casa ou nas mi­nhas empresas, a última coisa que perceberá é que tenho algum elo de ligação ao futebol.

A sua casa não tem quaisquer referências a futebol?
_Nada. Não entra uma camisola ou sequer uma bola de futebol. Há só um compartimento com os equipamentos de árbitro, porque preciso de­les para trabalhar. Aliás, a minha filha Joana, de 4 anos – e que já sabe a diferença entre um joga­dor e um árbitro – diz que o papá aparece às vezes na televisão, mas não entende ainda bem porquê. Claro que há determinados valores que quero que ela tenha em mente: ser uma pessoa hones­ta, trabalhadora, cúmplice dos seus compromis­sos e com espírito de equipa. Sou de uma gera­ção pró-liberdade, os meus pais viveram inten­samente o 25 de Abril. São esses valores que eu gostava que a minha filha referenciasse quando olhasse para mim. Em relação ao futebol, é uma imagem bonita, que não posso negar, fui um privilegiado, consegui o que nenhum árbitro português con­seguiu, mas tenho a noção de que não o fiz sozinho. Fiz com o traba­lho de muita gente, aproveitei algumas oportunidades que me foram criadas por outros.

Se a sua filha se deparar com páginas de jornais ou imagens televisivas on­de é criticado, maltratado ou ofendido, como pretende explicar-lhe isso?
_Que o pai também tem uma parte de pouca coerência racional e, por­tanto, também teve os seus momentos de catarse e loucura. Era aí que ele deitava cá para fora os seus stresses emocionais. Espero que, nessa altura, ela tenha a capacidade de perceber que o pai o fazia também co­mo um desafio. Porque, na arbitragem, a todo o momento nos desafia­mos. Mesmo dentro dessas ruelas sinuosas, tentamos percorrer o nos­so caminho, incólumes aos ruídos que se fazem. E isso, muitas vezes, é que nos dá gozo. Chegar ao fim da linha e dizer: fomos capazes, con­seguimos, mesmo com todas as adversidades. Em momento nenhum infletimos em relação àquilo em que acreditamos.

Começou a carreira de árbitro com 17 anos. São 26 anos de adversidades?
_Sim. De grandes adversidades.

É preciso gostar muito.
_É verdade, mas também é preciso perceber que não foram só adversidades. Tenho uma vida ligada à arbitragem que me deu um dos meus melhores amigos, o árbitro Duarte Gomes. Deu-me a conhecer muita gente boa, que me abriu portas a determinadas circunstâncias, que me formou enquanto homem, que me fez ver a diferença entre o certo e o errado e tentar, naturalmente, sem­pre optar pelo certo.

Um árbitro de primeira categoria recebe 1272 euros por cada jogo que apita na I Liga e 6000 euros por um internacional. A arbitragem tam­bém lhe deu dinheiro.
_Sim. Mas há uma frase que costumo dizer: perdi muito dinheiro com a arbitragem. Se calhar, se me tivesse dedicado à minha ou­tra vertente profissional, tinha ganho muito mais dinheiro.

De certeza?
_Absoluta. Quando tenho uma empresa que fatura cinco milhões de euros, se calhar estamos a falar de pingas de água em oceanos. É óbvio que, hoje em dia, as remunerações de um árbitro de elite – e percebendo o país em que esta­mos – são bastante confortáveis para uma vida que não é de exclusividade. E digo isto com muito orgulho. Felizmente os árbitros hoje têm carreiras profis­sionais que lhes permitem estar em patamares elevadíssimos ao nível das organizações.

Quando lhe perguntava, há pouco, como iria ex­plicar à sua filha as críticas e os insultos de que é alvo, referia-me também ao Pedro Proença que mantém sempre um sorriso na cara, que aparente­mente nunca se chateia ou nada o afeta. Às vezes até dá para pensar até que ponto o árbitro Pedro Proença não é um pouco plástico…
_Chateio-me tantas e tantas vezes! Mas isso a que refere, acredito que seja uma parte teatral que nós temos. Quem me conhece, sabe que sou uma pessoa muito emocional, envolvida e de compromisso. Ainda há pouco me emocionei na minha empresa, quando recebi uma prenda de casamento de trin­ta pessoas que se juntaram – pessoas que ganham pouco mais do que o salário mínimo nacional, que têm grandes dificuldades e fa­zem aquilo por acharem que, efetivamente, têm um líder à frente que dá tudo por eles. Senti-me emocionado e as lágrimas caíram-me na cara. Sou uma pessoa de sorriso fácil, mas também de me aborre­cer quando é preciso. Agora, é evidente que o futebol nos obriga a de­monstrar os sentimentos de forma diferente. Somos atores de um es­petáculo e temos de demonstrar frieza.

É um ator que faz sempre o papel de mau da fita. Faz lembrar, em senti­do contrário, o britânico Hugh Grant, que desempenha sempre aqueles papéis fofinhos de comédias românticas.
_Todos fazemos isso no nosso dia-a-dia. Muitas vezes, enquanto pais, temos de ser inflexíveis com os nossos filhos, porque acha­mos que é o certo, e tomar atitudes que não nos apetece. Às vezes também me apetece largar o apito e ir embora do campo.

Neste momento está a representar a dar-me esta entrevista? É um ator?
_Tenho de ser. Não estou a dizer aquilo que quer ouvir. Nes­te momento já estou numa fase de maturação em que, um bo­cadinho como os doidos, digo aquilo que me apetece. Só lhe dou esta entrevista porque eu quero e por ser quem é. Se as­sim não fosses, não daria. Dei apenas três entrevistas a ante­ceder este Mundial. Estou numa fase em que posso selecio­nar, só falo com quem quero e me diz alguma coisa. Não es­tarei agora a atuar, mas em todos os momentos da nossa vida somos mais ou menos defensivos. Mas não me faço passar por uma pessoa que não sou.

Ainda há algo que o ponha nervoso? O seu casamento, por exemplo, depois de amanhã, na véspera de partir para o Mundial?
_Não direi nervoso, antes emocionado. Já não é muito normal uma pessoa casar-se aos 43 anos, mas isso foi um dos custos de oportunidade e um dos prazeres que o futebol me tirou. A deter­minada altura disse: já não dá mais! Tenho deixado muita coisa para trás. Quero recuperar também a área familiar. Há momen­tos para tudo e o meu momento de gozar a arbitragem, e o futebol em concreto, terminará no último apito que fizer no Campeonato do Mundo, eventualmente antecipando o final de uma carreira que considero ter sido extremamente estimulante e gratificante. Mas ainda tenho de refletir sobre isso.

Como assim? Fala como estando a decisão já totalmente tomada.
_É algo que estou a ponderar seriamente. Se as coisas me corre­rem como eu as planeei e projetei, então depois restam-me pou­cos desafios. Apitei muitos jogos importantíssimos em Portugal, a final da Liga dos Campeões, a final do Campeonato do Europa. E no Campeonato do Mundo, se conseguir fazer algo que me dei­xe satisfeito, será o momento de terminar a carreira.

E se não for nomeado para a final?
_Terei de ponderar se, nessa altura, ainda existirão desafios que motivem.

Sente-se saturado da arbitragem?
_Não. Sinto-me agradecido. Sinto que, se calhar, é momento de fazer outras coisas. É um momento de maturidade.

Casar-se na véspera de partir para o Brasil foi propositado?
_Sim. Normalmente as minhas coisas são muito planeadas. Ca­so-me em Évora junto dos meus amigos e familiares. Será uma coisa muito natural, onde só entrarão amigos.

Muitos?
_Cerca de duzentas pessoas. Todas, em momentos diferentes da vida, foram importantes para aquilo que sou como pessoa: desde o colega de quarta classe, passando pelos do liceu e da universida­de aos amigos da arbitragem.

Vão ao seu casamento colegas da escola primária?
_Sim. Sou uma pessoa de muito compromisso e cumplicidade. Às vezes as pessoas podem pensar que não, mas é nessas amizades fortes que vou ganhar forças para muitas das coisas que tenho passa­do. São verdadeiros amigos. Há partes da mi­nha vida que sempre achei não dever expor, até para proteger as pessoas que estão comigo. Es­te último ano, que pode coincidir com o fim da minha carreira de árbitro, foi aquele em que abri mais a porta à faceta familiar, porque acho importante que as pessoas percebam que isso faz parte da nossa vida.

Vítor Pereira, Presidente da Comissão de Arbitra­gem da Federação Portuguesa de Futebol, falava há dias de uma nova geração de celibatários: dizia que, para além dos muitos divórcios, eram cada vez mais os árbitros que não se casavam.
_Atualmente se queremos chegar a determina­do nível, temos necessariamente de tomar essa opção. Os árbitros trabalham muito mesmo para chegar ao fim de semana e arbitrar, às vezes mal, mas aquilo que fa­zem é para tentar reduzir ao máximo o erro e as contestações de que são alvo. O que nos é exigido – os treinos, os jogos e a sua preparação – a forma semiprofissional com que estamos no setor rouba-nos muito tempo para aquilo que o cidadão normal faz: ir ao cinema, namorar, estar com a mulher. Mas chegamos às finais da Liga dos Campeões, somos elogiados internacionalmente, as pessoas olham para nós e dizem que somos bons, e isso é bom para a autoestima.

Compensa as críticas e ameaças?
_Claro que sim. Porque os elogios vêm de pessoas que têm conhe­cimento de causa. Qualquer árbitro português sente-se honrado quando entra na sede da FIFA e vê imagens suas ou de colegas re­ferências e modelos a seguir. Isso, para a nossa geração de árbi­tros, que tantas vezes é enxovalhada, é importante.

 

Ser árbitro e, neste caso, uma figura pública, é meio caminho andando para ser mais assediado pelas mulheres?
_Nunca senti que fosse uma vantagem ou desvantagem. Natu­ralmente um conjunto de pessoas que levita à volta do futebol em geral e que costumo denominar de parasitas. Mas tenho a perfei­ta noção de que, no dia em que deixar o futebol, desaparece.

Nunca teve fãs femininas que o perseguissem?
_Já tive duas ou três situações mais complicadas e que me cria­ram alguns problemas, inclusive com a companheira com que estava no momento. Quando começamos a ser figuras públicas, não estamos preparados para isso, nem preparamos as pes­soas à nossa volta. É difícil justificar a quem está connosco o facto de começarmos, de repente, a receber emails ou cartas desta ou da­quela; ou porque alguém tirou meia dúzia de fotos e foi colocar na caixa de correio eletrónico da minha namorada, dizendo que eu estava com outra.

Mas isso aconteceu-lhe?
_Sim. Aconteceu, acontece. Acho que todos, mais ou menos expos­tos, temos situações sórdidas destas a certa altura das nossas vidas. Obviamente, tenho alguns cuidados em termos de exposição.

Evita locais públicos?
_Há momentos em que evito, nomeadamente depois de jogos que corram menos bem, a mim ou a um colega meu, porque temos um espírito muito corporativista. Há momentos em que estamos vedados da nossa liberdade de comum mortal.

É um preço que sempre esteve disposto a passar?
_Sim.

Se a sua vida fosse um daqueles gráficos circu­lares, em forma de queijinho, que fatia dava à arbitragem?
_Hoje, cerca de vinte por cento da minha vi­da. Neste momento, a fatia pessoal é a maior.

Estar na final do Mundial será a cereja no topo do bolo de uma carreira única na arbitragem portu­guesa. Já disse que abdica disso para ver Portugal na final. Mas é mesmo assim?
_É a primeira vez na arbitragem nacional em que um árbitro português é apontado como um dos cincos possíveis para a final de um Mundial. Só isso já me deixa absolutamente convencido de que tudo isto valeu a pena. Obviamente que gostava muito de estar na final e sei que não de­pende de mim. Mas antes disso, sempre fui um espetador acérrimo de futebol e repito: gostava que a nossa seleção fosse campeã do mundo.

Está a ser politicamente correto… Portugal terá mais Mundiais pela frente e você não, visto que só poderá arbitrar até aos 45 anos.
_É verdade que é o politicamente correto. É difícil de comparar porque há o meu sentimento coletivo e o meu sentimento indivi­dual e não quero que uma coisa se confunda com outra. Gostava muito que Portugal fosse campeão, devemos olhar para a floresta e não só para a árvore. Não sei se, em situações futuras, eu até não colheria frutos de a nossa seleção ser campeã do mundo.

Quando voltar vai gozar a lua-de-mel?
_Quando voltar terei um mês de trabalho para pôr em dia tudo o que deixei de fazer e depois, calmamente, vou pensar nisso. Está decidido que iremos à Tailândia, só falta saber quando. Será uma forma de compensar a pessoa que está ao meu lado, tem sido ab­solutamente fantástica.

Em miúdo tinha alguma alcunha?
_Era Pedro. Ou PP.

Ouvi dizer que era muito rebelde. Levou muitas palmadas dos seus pais?
_O normal para corrigir um miúdo arisco como eu. Era brinca­lhão, nunca fui um excelente aluno, mas fazia o suficiente para o objetivo e, nesse sentido, fazia as minhas traquinices como outro qualquer. Chegava a casa à noite e entrava pé ante pé, à espera que o meu pai não percebesse que chegava tarde. Nunca fui de beber, por uma questão de opção desportiva. Fazia as parvoíces normais.

A que gostava de brincar em criança?
_Com a bola de futebol. Ainda não existiam PlayStations, sou do tempo do ZX Spectrum. Brincava muito na rua, algo que, hoje em dia, as crianças não fazem. Não é bom nem mau, é o que é! Sempre tive muitos amigos, sempre gostei muito de conviver.

Lembra-se de alguma «maldade» que tenha feito em miúdo?
_A minha mãe ainda hoje não sabe disto. Uma vez, ainda sem carta de condução, roubei ao meu pai as chaves do carro do meu avô e fui, com mais dez amigos dentro do carro, da Pontinha à Praça do Chile, em Lisboa, para comer bolos quentes. Deviam ser umas duas ou três da manhã. Tinha 16 anos. Hoje, se a minha fi­lha fizesse isso, se calhar iria ter problemas [risos].

Sempre foi uma pessoa com autoestima elevada?
_Não. Era muito introvertido em determinados aspetos. Por exemplo, tinha muita vergonha se um professor me mandava ler um texto, era muito envergonhado. À medida que fui vivendo, com o evoluir dos estudos e das conquistas, fui tornando-me mais autoconfiante. A arbitragem foi determinante. Conheci meio mundo mais depressa do que os outros.

No liceu era o puto giro e fixe que todas as miúdas gostavam?
_Nem por isso. Sempre estive ligado muito ao desporto, era pra­ticante de andebol na altura, não ficava muito tempo na escola.

Qual a melhor nota que teve?
_Sei lá! Talvez 18 ou 19 valores numa disciplina qualquer em que devo ter cabulado ou copiado por alguém [risos]. Havia disciplinas que gostava muito, das matemáticas, daí ter tirado o curso de ges­tão. Também por influência do meu pai que era economista. Brin­cava muito com ele a cálculos mentais e aos concursos de televisão.

Como surgiram as suas empresas?
_A empresa de metalomecânica era do meu pai. Licenciei-me com 23 anos, entrei para uma grande empresa de auditoria, a KPMG. Estive lá cinco anos. Depois fui para diretor financeiro de uma agência de publicidade e, a seguir, saltei para a área dos segu­ros. Em 2000 era diretor financeiro de uma empresa alemã e pas­sava 40% do meu tempo em Colónia. Nessa altura subi à primei­ra divisão de futebol e tive de fazer uma opção. Um colega meu, que trabalhava no tratamento de resíduos, não tinha dinheiro, eu também não tinha, os fundos comunitários andavam em voga e apresentámos um projeto à União Europeia. Sem grandes expectativas, calhou-nos uma verba muito grande. E abrimos, então, uma empresa em Leiria, chamada Natureza Verde. Tinha três funcionários: um motorista, o meu sócio na área logística e eu na área administrativa e financeira.

Como é a relação com os seus colaboradores?
_Costumo dizer que sou mais um no meio deles. Não há portas lá dentro.

Estão proibidos de falar de futebol?
_Não estão proibidos, mas não falam, acho que por respeito. As­sim como não falam comigo da minha vida pessoal.

À segunda-feira sente que alguém o trata de maneira diferente por estar melindrado consigo por causa de uma decisão sua durante a jor­nada do fim de semana?
_Não. Quem me conhece, sabe que a tendência é para sentir as minhas feridas. Como é possível dizerem mal do Pedro e acha­rem que não é uma pessoa séria? É mais assim que reagem. Não entram de cara feita, porque marque bem ou mal um penálti, sen­tem a minha dor.

Tem pesadelos? Sonha muito com futebol?
_Zero. Nada. Preocupa-me efetivamente chegar ao final do mês e não ter dinheiro para pagar aos meus funcionários. Ou que a mi­nha filha esteja doente.

O futebol já não o preocupa?
_Acho que faço pelo futebol aquilo que o futebol, se calhar, não merece que eu faça. Eu esgoto-me a preparar as coisas bem, es­tou seis ou sete horas a preparar cada partida, a fazer o scouting dos jogadores. E faço-o sozinho, rouba-me muito tempo. Se os jo­gos não correm bem, tenho pelo menos a consciência tranquila. Dei tudo o que podia.

Há dez anos falava assim?
_Há o futebol do dia e futebol do dia seguinte. E eu não tento dis­cutir o futebol do dia seguinte, porque esse não é o meu futebol. Eu não tenho as câmaras, não tenho as televisões e as repetições, não tenho nada. O futebol que vivo dentro de campo, esse aborrece-me e chateia-me bastante às vezes. Tento procurar as razões de ter to­mado certa decisão. Basta ver um jogo meu e vejo tantos erros…

A câmara é a sua pior inimiga?
_Dá-me uma perspetiva que não tenho. Existem 14 ou 15 câma­ras a filmar o jogo, aquilo não é o que eu vejo. A câmara não é uma inimiga, é um jogo verdadeiramente diferente. Hoje, as pessoas quando veem um lance a olho nu, já não formulam a opinião da­quilo que veem, ficam à espera da repetição do outro ângulo. Eu faço o mesmo como telespetador. Mas enquanto árbitro tenho de decidir pela minha primeira opinião, é um outro jogo. Por isso sou grande defensor dos meios tecnológicos, porque atualmente o futebol é sobretudo um espetáculo televisivo.

A pressão de que os árbitros são alvo antes dos jogos, na tentativa de condicionar, já não o afeta?
_Não, porque acabamos por perceber que essa é a lógica. Um clu­be, quando perde, culpa o árbitro. Sabemos que, muitas vezes, as pessoas estão a arranjar desculpas para algumas insuficiências internas. Já não me irrita ou enerva.

Consegue contabilizar o número de horas que passou a preparar este Campeonato do Mundo?
_Um ano de preparação com trabalho diário, a uma média de três horas por dia. Conheço tudo o que se possa imaginar relati­vamente às seleções do Mundial. Tanto eu como os meus auxilia­res, Bertino Miranda e Tiago Trigo, temos tudo muito bem estu­dado e compilado. Temos condições únicas para fazer um gran­de Campeonato do Mundo. A federação deu-nos essas condições.

Como tem visto os protestos no Brasil?
_São justíssimos. Basta chegar ao Rio de Janeiro e ver aquelas fave­las todas e, de repente, aparece um estádio que custou 300 milhões de euros. Só quem socialmente é imune a estas coisas, pode man­ter-se insensível a tudo o que se passa. Obviamente a FIFA não tem culpa, os árbitros não têm culpa, foi uma opção política do país, mas consigo colocar-me no papel do brasileiro, da gente que trabalha dez a 12 horas por dia. Essa gente tem de se sentir revoltada.

Quando a bola começar a rolar, acha que as pessoas vão alhear-se um pouco?
_Não tenho a certeza. Arbitrei o primeiro jogo da Taça das Confe­derações, o ano passado, que foi um torneio de preparação e teste de infraestruturas para o Mundial. Esse jogo foi o Brasil-Japão, a pre­sidente Dilma era para ter discursado e o povo não permitiu, come­çou a associar. Acredito que vai ver-se muita gente a contestar.

Foi votar nas eleições europeias?
_Não.

Por opção ou falta de tempo?
_Por estar num momento de grande revolta com o processo polí­tico em Portugal. Não me revejo nesta gente. É vergonhoso o que estamos a assistir. São sempre os mesmos. Os líderes mudam, mas a plateia que aplaude é sempre a mesma. Ninguém assume res­ponsabilidades, os políticos tratam-nos como meros peões.

Mas sendo o voto a forma que os cidadãos têm de intervir na demo­cracia, não seria sua obrigação ir contribuir para mudar uma situação que o desagrada?
_É uma guerra interna que vivo. Não consigo ver outro modelo organizacional menos mau do que a democracia, mas tem cria­do grandes crostas que não se conseguem eliminar. A nossa so­berania já não é decidida em Portugal. A Europa defende princí­pios corporativistas e depois cobra-nos juros brutais. Quem é que se lembra que, após a Segunda Guerra Mundial, fomos nós, paí­ses da Europa, que demos a mão à Alemanha, a custo zero, para ela se reconstruir?

Ideologicamente, é de esquerda?
_Sou do que acho certo e justo e consigo colher em todos os sí­tios um pouco de bom senso. E os nossos políticos não o têm. Nin­guém pode aceitar que o ordenado mínimo seja 475 euros. Porque ninguém vive com 475 euros. Fala uma pessoa que ganha bastan­te bem, mas tem a noção de quanto custam as coisas.

É tão benfiquista agora como quando era miúdo e pai o levava à bola?
_Sou benfiquista como sou muitas outras coisas. Há coisas em que nunca mudamos. O que mudou nos últimos anos é ter passa­do a ser visto de uma maneira diferente. Hoje vou a um centro co­mercial e as pessoas querem tirar fotografias comigo, o que não acontecia há três ou quatro anos. E pedem-me autógrafos.

Já não são só cabeçadas como aconteceu há três anos no Colombo?
_[risos] Se calhar, isso hoje não aconteceria. Continua a ser o pior que me aconteceu na carreira.