Anatomia de um lutador

Em dia de Maratona de Lisboa, o atleta – e ex-boxeur- Jorge Pina lançou-se numa prova ainda mais dura: correr o país em dez dias, num total de 700 quilómetros. Uma corrida inédita para um homem único. A aplaudir de pé no final.

O ar abafado e as sacudidelas das voltas de­pressa esgotam quem vê de fora, mas ele não para. Parece que o corpo sobre as pernas não pesa, não o suficiente para lhe fazer doer os músculos após quatro horas de corrida no Estádio Universitário, em Lisboa, a juntar a outras tantas à tarde e nos dias anteriores. Jorge Pina diz que quem corre por gosto não cansa e nós acreditamos: só assim é possível fazer maratonas como quem respira e percorrer agora 700 quilómetros de norte a sul do país, em dez dias, para levar a bom termo o projeto Jor­ge Pina Corre por Mais Portugal, de ajuda a dez associações de apoio humanitário. O atleta invisual arranca hoje de Viana do Castelo e até dia 15 vai correr o equivalente a duas maratonas diá­rias. «É um desafio, mas é o que me faz mover: saber que pos­so fazer a diferença na vida de outras pessoas. É essa a minha ga­solina», conta o atleta de 38 anos, preparado para testar os limi­tes nesta «prova louca» nunca antes experimentada. «No dia da Maratona de Lisboa, eu parto numa corrida mais dura, pessoal, que começa em Viana e termina em Sagres.» Jorge passará por Porto, Aveiro, Figueira da Foz, Ourém, Torres Vedras, Santa­rém, Lisboa, Grândola, Sines, Odemira e Vila do Bispo, seguido de perto pelos guias Paulo Ramos, António Pinheiro e Sérgio Silva, que se revezam para acompanhá-lo. «Todos eles têm mui­ta experiência. O Ramos e o Sérgio já foram medalhados para­olímpicos com invisuais e estão preparados para me levar aon­de quero. Até à meta.»

Foi em 2004 que o antigo pugilista perdeu a visão e se lançou em velocidade no atletismo. Tinha então 28 anos. Estava em Es­panha, a preparar-se para disputar o Mundial de Boxe, quando começou a ver umas bolhas que sugeriam que algo não estava bem. «Não levei pancada nenhuma, não tinha nada no olho es­querdo e via aquilo. Fui ao médico e ele disse-me que tinha de vir para Portugal descansar, mas não me elucidou da gravida­de do problema», recorda. Sem saber do descolamento da reti­na, Jorge continuou a treinar como de costume. Fez um comba­te na Polónia e outro no Algar­ve, as coisas agravaram-se. «Perto do Natal, fui a uma clí­nica onde me operaram de ur­gência e deixaram-me a retina com um vinco. Das várias ci­rurgias que fizeram para ten­tar emendar acabei por perder a vista esquerda.»

No coração do pugilista, vários anos campeão de Portugal e o único com três títulos em diferentes categorias, a tensão torna­va-se mais intolerável a cada desaire que sofria. «Disseram-me que tinha de ser operado também à outra vista senão ficava ce­go, e eu perguntei porquê. Pois se conseguia ver e escrever normalmente…» Avançaram, ainda assim. O seu mundo ficou de vez às escuras, reduzido a dez por cento da capacidade do olho direito. «Podia ter-me revoltado contra Deus, mas preferi acre­ditar que Ele me deu outra forma de ver as coisas, me pôs num caminho diferente por alguma razão. Aceitei a minha condição e pronto. Dali em diante só podia melhorar.»

Jorge estava precisamente numa consulta no Hospital de Santa Maria quando o amigo Nuno Magalhães lhe ligou a sa­ber se queria experimentar o desporto adaptado. «A corrida já fazia parte da minha prepara­ção física no boxe. Costumá­vamos ir correr ao domingo, ele sabia que eu gostava», con­fessa, agradecido pela revi­ravolta. Em poucos minutos atravessou a estrada entre o hos­pital e o Estádio Universitá­rio, onde conheceu o treinador de atletas invisuais José Santos. Combi­naram que voltaria no dia seguinte para se juntar ao grupo e começou logo a tra­balhar os tempos para ir ao Campeonato do Mundo no Brasil, sem saber então que aqueles mínimos seriam a sua primeira conquista. «Fui duas vezes combater aos EUA e ganhei. Ia disputar o título mun­dial quando me aconteceu isto aos olhos. Saí praticamente do ringue para a pista de atletismo e para a estrada. Arrumei as luvas e calcei os ténis, foi uma troca.»

Em 2008, representou Portugal nos Jogos Paraolímpicos de Pequim e conquistou a medalha de ouro na Maratona de Pa­ris, que lhe valeu a prata dois anos mais tarde. Foi campeão na­cional nos 1500 metros em 2011 e já tem mínimos para a ma­ratona dos Jogos Paraolímpicos do Rio de Janeiro, em 2016. O maratonista costuma dizer que depois de um mau momen­to se limpam as lágrimas, curam-se as feridas e parte-se para outra corrida, e foi o que fez: «Limpei as lágrimas, curei as fe­ridas do meu amor pelo boxe e parti para a corrida.» Apesar de o boxe continuar sempre presente na sua vida: «Dou aulas co­mo personal trainer no Holmes Place, porque gosto e para pagar as contas. E há dois anos fundei a Associação Jorge Pina para trabalhar com crianças em risco, onde a primeira modalidade criada foi o boxe», diz.

Da mesma forma que o desporto lhe deu um rumo desde os 11 anos, o atleta acredita nesse potencial para responsabilizar, disciplinar e motivar os mais novos e as pessoas com deficiên­cias físicas e psicomotoras (a associação arrancou agora com a primeira escola de atletismo adaptado com a Rexona, além de fomentar a integração através do desporto, da música e da ar­te). Uma parte de si ainda tem pena de não ter podido ser como o ex-pugilista norte-americano Muhammad Ali, seu herói de miú­do. Mas tem conseguido ser um campeão na vida noutras áreas, lutando sempre até às últimas consequências, sem de­sistir. Quanto mais alguém lhe diz que não é capaz, mais ele se empenha em afastar esses demónios interiores para se superar.

«Tal como não posso culpar ninguém pelos meus erros, sou responsável pela história que quero para mim no futuro. Já fui toxicodependente e alcoólico, um grande bandido. Ainda a ca­minho de ter a minha segunda filha [tem três, de mães diferen­tes] eu não era esta pessoa espiritual, que começa as manhãs a meditar em silêncio.» Jorge não sente vergonha das maluquei­ras passadas, faz tudo parte do homem completo que é agora. E agradece a metamorfose: «Há quem pense que corro pelo ou­ro, mas todos os dias trago o ouro dentro de mim e esta minha riqueza interior está a crescer», diz.

O Carlos Lopes tornou-se um exemplo tão bom como Ali ao vencer a maratona de 1984, em Los Angeles, com 38 anos – a ida­de que Jorge Pina tem agora e lhe lembra que não está velho pa­ra correr mais e melhor. «A minha vida é uma maratona e eu gosto dela assim. De fazê-la bem devagarinho para não perder nada das suas cores.»

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