A moda está na rua

Andar bem vestido e bem calçado não tem nada que ver com dinheiro, marcas ou estatuto social. Para este jornalista, crítico e consultor de moda, mais importante do que ter um armário cheio de roupas caras e sapatos de luxo, é a atitude e o arrojo com que se conjugam peças acessíveis com outras de pedigree.

O que é que os portugueses procuram na moda atual­mente, de um modo geral?
_Os portugueses continuam a procurar estar na moda, mas mais discretamente do que há quatro ou cinco anos. Em 2010, houve uma febre no senti­do de seguir tendências e hoje arrefeceu. Penso que há uma vontade de voltar a valores seguros, sem des­curar o estilo desportivo e prático que caracteriza o homem português e que o distingue do italiano, por exemplo. Já as mulheres querem também uma moda mais revivalista, menos virada para a complexidade de tendências de gosto duvidoso. Por exemplo, os té­nis são o grande grito deste verão e podem ser usa­dos com tudo, roupa mais formal ou do dia-a-dia. Ho­je podemos ir a um jantar, a uma festa com um look mais descontraído, com uns ténis bem conjugados com um fato, e, no caso das mulheres, com uma rou­pa também mais formal. É arriscado, é preciso saber conjugar as peças, mas está em voga.

A moda nacional está ao nível do que se faz lá fo­ra ou ainda há um longo caminho a percorrer nesse sentido?
_O caminho, que é longo e ainda há muito a percor­rer, é o das empresas de designers portugueses. Es­se é o problema: a falta de à-vontade no mercado e a dificuldade em alcançar a internacionalização. Acho inacreditável que, mesmo com o novo proje­to Bloom,de Miguel Flor, que fez um showcase em Londres e tem feito um bom trabalho em Portugal, ninguém conhece o nome e o trabalho dos criado­res portugueses. Eles nem sequer aparecem nas re­vistas britânicas. Portanto, respondendo à sua per­gunta: não, a moda nacional não está ao nível do que se faz lá fora. E estou a referir-me aos grandes no­mes. Por outro lado, os criadores internacionais me­nos renomados, mais «pequenos», que têm a sorte de serem de Antuérpia, Paris ou Londres, têm logo mais destaque. É automático. É um facto.

As pessoas começam a perceber que a moda não é só o que se compra e veste ou este é um fenómeno recente em Portugal?
_Eu, pessoalmente, sempre vi a moda nas atitu­des, na maneira de estar. Por isso mesmo, a mo­da é transversal e não apenas acessível a dez pes­soas neste país. A moda não é ter um casaco Issey Miyake ou uns sapatos Jimmy Choo. A moda é es­tar nos sítios, é revolucionar, é influenciar os ou­tros, mesmo tendo poucos recursos. Isso é a mo­da. A moda está em todo o lado, está na rua e nos clubes, nos jovens, nos festivais, nos concertos… Aliás, não deve haver nada que influencie tan­to a moda como a música. Um dos exemplos mais marcantes dessa influência é o grunge, a tendência saída dos anos 90 e protagonizada por Kurt Co­bain e os Nirvana. Penso que foi uma das últimas têndencias de moda realmente originais e com al­cance mundial.

As mulheres estão sempre a queixar-se de que não têm nada que vestir, embora tenham o armário cheio. De quan­tas peças de roupa precisa efetivamente uma mulher?
_Uma mulher precisa de várias saias-lápis, shift dresses [vestidos curtos, sem cintura], um ou dois ca­sacos de fazenda boa para o inverno, um trench-coat, umas cinco ou seis blusas, um ou dois cardigans de ca­xemira. E, claro, alguns sapatos de salto alto são mais do que obrigatórios. Ténis também – é a grande ten­dência deste ano; aliás, se uma mulher quiser usar um vestido com ténis, toda a gente vai achar o máxi­mo. E uma ou duas malas.

E um homem?
_Num homem são imprescindíveis os fatos de bom corte. Dois chinos, um beje e outro preto, jeans, té­nis (são o grande grito da estação). E pode ter menos pares de sapatos do que as mulheres. No entanto, deve tê-los em número suficiente para poder variar.

Há evidências de que a roupa surgiu na Pré-História. Es­te terá sido um dos raros momentos da história do ves­tuário em que cumpriu de facto a função de proteger?
_Penso que sim. Só na Pré-História é que a roupa, efetivamente, cumpria a função de proteger sem a preocupação com os cortes, as cores e os tingimentos. Depois dessa época começou a adquirir simbolismos. Mesmo nas tribos africanas, os padrões surgem algures.

Como é que aquilo que se veste passa a ser símbolo de estatuto? O que mudou?
_Se tiver um vestido e uns sapatos da marca Prada e os levar para o escritório, sim, é símbolo de estatu­to. Mas é muito mais divertido tirar partido do esta­tuto da moda pela criatividade, pela inovação, pelas novas maneiras de usar a roupa, enfim, pela atitude que uma pessoa assume quando conjuga caro e ba­rato. Tendo uma peça de família, uma joia, um reló­gio. Há várias maneiras de transmitir estatuto, que neste caso é o mesmo que dizer distinção. Mas nada mudou nos últimos tempos. Se formos até aos anos 20, aí sim, tínhamos estatuto com a roupa, mas ho­je essa ideia está um pouco em desuso. O melhor é uma pessoa sentir-se confortável e bem arranjada para estar bem em todas as ocasiões.

Porque é que as mulheres (sobretudo elas) têm dificulda­de em resistir a uma peça de roupa nova? Será o desejo de ter mais coisas e diferentes e não tanto pela necessi­dade de comprar um vestido ou uma camisa?
_Andar às compras sem precisar é o epítome de Era do Vazio de Gilles Lipovetsky [filósofo francês e autor de vários livros sobre a sociedade pós-mo­derna marcada, segundo ele, pelo hiperconsumo desregrado]. É o deambular pelos centros comer­ciais ou pelas calçadas mais famosas da cidade à procura de alguma coisa que não sabemos o que é, mas que não é a peça de roupa. De todo. Temos de reaprender a procurar a roupa de forma prática e não simbólica, sob pena de continuarmos a sen­tir o tal vazio.

«Diz-me o que vestes, dir-te-ei quem és.» É verdade esta máxima? Pela roupa pode traçar-se um perfil de quem a veste?
Penso que nos jovens é mais fácil definir um esti­lo através da roupa: uns adotam um tipo mais surf, outros mais gótico, mais rockeiro, mais isto ou mais aquilo. E o que vestem está geralmente de acordo com o resto. Mas em relação aos adultos, não é tão claro traçar um perfil com base no seu armário de roupa. Tenho visto muita gente bem vestida, mes­mo muito bem vestida, cuja personalidade é uma desilusão – digamos que o discurso não combina nada com a indumentária tão bem aprumada que gostam de ostentar. É das coisas mais curiosas e que me intrigam bastante: como é que alguém tão bem vestido acaba por não dizer nada que acrescente? De facto, o dinheiro não é tudo e não diz tudo de uma pessoa. Mas o bom gosto também não.

Considera que os grandes eventos de moda em Portu­gal, como a ModaLisboa ou o Portugal Fashion, contri­buem realmente para divulgar a melhor moda do país? Ou, pelo contrário, são feiras de vaidades para criado­res e convidados?
Nem um evento nem outro conseguem fazer de Lisboa uma capital de moda mundial. A ModaLis­boa é apenas um acontecimento social para con­sumo interno, não tem repercussão internacional, embora esse seja um dos propósitos a que se propõe. Mas como poderia ter repercussão lá fora sem a pre­sença da imprensa internacional? Da ModaLisboa não saem looks para as principais revistas estran­geiras de moda, o que é uma pena, porque isso se­ria uma via verde que daria visibilidade lá fora ao que se faz por cá. Quanto ao Portugal Fashion, pe­ca pela falta de equílibrio e de aproveitamento de oportunidades, porque apesar de ser realizado com a ajuda de fundos comunitários, apenas realiza um showcase das coleções de alguns criadores, o que é manifestamente insuficiente.

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QUEM É MIGUEL ÂNGELO MATOS
Depois da licenciatura em Ciências da Comunicação na Universidade Autónoma de Lisboa, foi para Inglaterra tirar uma pós-graduação em Moda no London College of Fashion, University of the Arts. Desde então, tem tido uma carreira intermitente como jornalista na imprensa nacional e em sites de moda, além de ter trabalhado como consultor de moda em instituições de formação para licenciados.