A culpa das mães

Tem três filhos. E anda há 12 anos, desde o nascimento do primeiro, a sentir a culpa de não ser perfeita, a supermulher de carreira que é mãe extremosa num corpo de manequim. Falou com dezenas de mulheres, entrevistou psiquiatras, psicólogos e pediatras e escreveu um livro para dizer que, afinal, a perfeição não existe. Mas não faz mal.

 

Porque é que, de todas as dimensões da vi­vência da maternidade, decidiu pegar no tema da culpa?
Porque é um sentimento que predomi­na desde sempre. Chega a surgir antes de se ser mãe, quando se tenta engravidar e não se consegue, até quando não se quer ser mãe. A culpa é um sentimento que parece vir agarrado, sobretudo quando já se é mãe e se quer ser perfeita. Nos dias de hoje te­mos poucos filhos, queremos o melhor pos­sível para eles e investimos muito. Também por causa do que os psicólogos foram dizen­do sobre as crianças: antes, não tinham im­portância nenhuma na família, comiam na cozinha com as empregadas ou sozinhas e ninguém conversava com elas ou se preo­cupava com os traumas que podiam ter. Fe­lizmente isso acabou, mas passámos para um extremo oposto em que tem de se ter mui­to cuidado com as crianças, tem de se brin­car, tem de se ter tempo de qualidade, «tem de se» tudo! Além de estarmos a criar po­tenciais ditadores, porque são objetos raros e preciosos, as mães sentem uma culpa imensa porque já não estão exclusivamente a tomar conta dos filhos, estão a trabalhar.

Não é física e psicologicamente violento o que hoje se pede a uma mãe? É importante refletir sobre isto numa altura em que a maternidade virou competição?
Sim. As mulheres nunca tiveram carrei­ras tão exigentes como agora e, simultane­amente, dá-se lhes o peso da maternidade que é brutal, porque as crianças precisam de tempo, de cuidado, de não serem trau­matizadas. E a competição tem que ver com o facto de haver só um filho ou dois: quer-se fazer o melhor, «o meu é melhor do que o teu, eu faço mais, sou uma mãe mais competente do que tu». A validação enquanto mulher passa muito pela mater­nidade. É espantoso.

As mães insistem em carregar a culpa às cos­tas. Porque é que o pai fica de fora?
O pai está numa fase de ouro em relação à educação das crianças. Nunca os pais estive­ram tão envolvidos na educação dos filhos, no afeto. Antigamente, chegavam a ca­sa, faziam uma festa ao miúdo e ficavam-se por aí. Hoje, fazem tudo o que as mães fazem, eles também já vêm de uma car­reira exigente e participam ativamente, às vezes mais do que as mulheres, na vi­da dos filhos. Estão completamente ili­bados de qualquer culpa. Deviam-na ter sentido quando não faziam absolutamen­te nada. Não digo que não a sintam tam­bém nos momentos mais críticos da vida dos filhos.

E mesmo que as mães não sintam essa culpa­bilidade, a sociedade insiste em lembrar-lha. Há sempre um dedo apontado?
Sempre. Até a mãe do Ruca, aquela figu­ra paciente que nunca perde a cabeça – o Ruca pode pintar as paredes de casa e ela vem com aquela voz tranquila –, é uma for­ma de a sociedade nos esfregar na cara que gritamos de mais e perdemos a cabeça ve­zes de mais. Eles, coitadinhos, estão só a ser crianças. E é verdade! Mas nós somos seres humanos, e uma parede riscada…

Como é que uma mãe aprende a lidar com a culpa? Relativizando?
A ideia do livro é ajudar a perceber que toda a gente passa por isto, ou quase toda a gente. Se bem que também conheço mulhe­res que não sentem qualquer culpabilidade, e não quero agora que sintam culpa por não a sentirem! O livro está escrito com humor nas partes em que é ligeiro, há partes mais duras em que não dá para uma escrita leve­zinha, mas é para as mães perceberem que não estão sozinhas. E os psis, os especialis­tas que entrevistei, ajudam a desmontar e a perceber de onde é que a culpa vem.

Mas os psis também admitem que têm culpa das culpas da mãe?
Sim, principalmente o psiquiatra Jo­sé Gameiro, que diz que os psis foram cru­ciais pela excessiva importância que de­ram às mães na educação dos filhos. Claro que as mães foram importantes, numa al­tura em que os pais não estavam presentes, o que seria dos filhos se não fossem elas! Mas hoje continua a dar-se excessiva importân­cia à mãe quando os miúdos também têm a escola ou os avós. José Gameiro fala de um conceito fascinante: quando ele começou a trabalhar, há 40 ou 50 anos, havia a mãe es­quizofrenizante, a mãe que pode provocar esquizofrenia nos filhos. A criança apare­cia com um problema e a mãe é que devia passar a ir às consultas.

O testemunho dos especialistas foi im­portante para esclarecer que a culpabili­dade existe mas muitas vezes não tem fundamento?
Sim. A psicóloga da Maternidade Alfredo da Costa contou-me a história de uma grá­vida que tinha perdido a mãe. Estava de lu­to e sentia-se culpada pelos sentimentos de tristeza que estava a passar ao bebé. Isto é estar a assumir a postura de supermulher! E outra, que perde o filho às 40 semanas e se culpa, diz «nem na minha barriga consi­go proteger um filho, que mãe é que sou?» Mas que culpa é que ela tem? Nenhuma. A mãe cuja filha bebeu lixívia podia real­mente ter alguma culpa porque estava em casa mas não conseguimos estar cem por cento do tempo a olhar para eles! Consegui­mos compreender que deve ser horrível, as­sim como a mãe que deixou que o filho com­prasse a moto com que teve um acidente. Se ele comprou a moto com o dinheiro dele, ela ia fazer o quê? São culpas que as mulheres carregam sem ter.

Entrevistou muitas mães para este livro, quais eram as culpas mais comuns?
Primeiro, chegar tarde a casa, porque nas empresas em Portugal há esta mania de fi­car até tarde. A mulher que sai pontual­mente às seis da tarde é «a mãe». Se for a úl­tima, aquela que apaga a luz e fecha a porta, ótimo, mesmo que esteja lá no Facebook. No Norte da Europa, quem fica no traba­lho depois da hora é que é malvisto! Depois do chegar tarde a casa, é o estar tão cansa­da que a última coisa que apetece é brincar. E perder a cabeça com os filhos.

A culpa é sempre má?
Não. Quem não sente culpa nunca de nada do que fez ou do que pensa é um bocadinho psicopata, tem um certo tra­ço assustador. A culpa é uma bitola, uma maneira de nos equilibrarmos: «Hoje fui péssima, não brinquei, dei-lhe uma pal­mada» e no dia seguinte tentamos com­pensar e fazer melhor. A culpa mais «nor­mal» é uma boa culpa, é um fiel da balan­ça. O excesso da culpa é que é péssimo e não ajuda ninguém.

As mães escondem a culpa?
Sim! Quando uma mãe quer ser perfeita não pode assumir, nem para si própria, que está a falhar e a sentir-se culpada. E depois, por causa da competição entre mulheres, ninguém diz entre amigas «sou péssima mãe». É raro dizer-se isto. Há sempre uma tendência para galvanizar esta coisa da maternidade, é tudo maravilhoso, as crianças são maravilhosas, é tudo espetacular. Não é nada! Não é verdade, às vezes não gostamos deles, há momentos em que não queremos estar com eles, era ótimo se pudessem desaparecer só um bocadinho. E isto não se diz, é feio, não fica bem. Coitadinhas das crianças, vão ficar traumatizadas, têm uma mãe horrível que quer ver-se livre delas. E Deus até pode castigar e trazer uma doença má que lhe leve o filho para ela ver o que é bom para a tosse. Ou então devia ter uma criança deficiente como aquela amiga! Se tem
crianças saudáveis, o que é que pode querer mais? Isto é tramadíssimo. É verdade que se a pessoa do lado tem uma criança com problemas é estupidez estarmos a queixar-nos. Mas estamos cansadas e temos direito a extravasar.

E os filhos percebem estas culpas das mães? Aproveitam-se delas?
Claro. Por causa da culpa, as mães dão tudo para compensar e há uma geração de criancinhas que corre o sério risco de se tornar prepotente. Não sei se não vejo já laivos disso em alguns miúdos a chegar aos empregos para estagiar. Há uma geração de «reizinhos», de ditadores, que está a surgir e vai continuar, porque só vamos continuar a ter um, dois filhos, e a querer compensá-los de todas as nossas falhas da pior maneira possível, com poucos nãos e poucas regras. E não estou a excluir-me. A minha mãe era tão dura comigo e eu sou tão benevolente. Não vai ser bonito.

 

SÓNIA MORAIS SANTOS
Jornalista desde 1993, passou pelo Rádio Clube de Sintra, fez parte da equipa fundadora
do DNA, extinto suplemento do Diário de Notícias, integrando depois a redação do jornal. Foi editora executiva da Time Oute atualmente é freelancer. É autora do blogue Cocó na Fralda, a partir do qual publicou um livro em 2012. A Culpa não É sempre da Mãe é o segundo livro.