A corte do nosso rei-sol

Notícias Magazine

Comecemos com um teste: Quem afastaríamos mais depressa? Alguém que nos desse palmadinhas nas costas ou alguém que nos dissesse a verdade?

Hipoteticamente, será fácil escolher. Todos sabemos que nos é mais vantajoso ter por perto alguém que nos ajude a ver as coi­sas como são e não como queremos que sejam. A objectividade é mais credível vinda de fontes externas do que vinda de fontes inter­nas. E as decisões que tomamos, sendo bem informadas, terão maio­res probabilidades de virem a ser bem-sucedidas. O problema come­ça quando se deixa o hipotético e se entra no campo do antitético.

Sabemos em teoria o que é melhor para nós, mas quan­do chega a hora de o pormos em prática, escolhemos a opção que havíamos dado como incorrecta e gravitamos em torno dos que nos fazem festas ao ego. Atenção: não se está a querer dizer que os que nos apoiam incondicionalmente sejam uma má influência. Seria tonto fazê-lo, até porque se existe algo que precisamos nes­ta vida é de sentir que, para lá de todas as asneiras que façamos, teremos sempre aquela ou aquelas pessoas que estarão lá para nos ajudar a ultrapassar os piores momentos e, sobretudo, para nos dar colo quando nos sentimos destroçados.

Não, não se fala destas pessoas. Até porque essas nos dirão quando estamos errados. Fala-se das outras pessoas, aquelas que apenas existem nas nossas vidas para nos dar a pro­verbial graxa e nos dizer aquilo que queremos ouvir, porventura com o objectivo de obter proveitos próprios.

Escolher que grupo de pessoas queremos perto de nós revelará certamente uma postura perante nós e o mundo. Por nos sentirmos uns heróis de mão-cheia aos olhos de uns quantos, preferimos muitas vezes não abdicar dessa ilusão de nós mesmos. Mantemos a corte junto de nós e afastamos os grilos falantes, as vo­zes da nossa consciência que falam cá dentro ou lá fora. É um aborrecimento descer do pedestal onde cuidadosamente nos colocámos a nós próprios para ouvir o que dizem os outros, lá em baixo, que gritam para que os ouçamos a tempo de evitar um tombo maior.

Sendo uma questão de ego, é, sobretudo, um proble­ma de vaidade, não fosse o orgulho um dos sete pecados capitais e aquele em que mais facilmente qualquer um de nós soçobra em algum momento das suas vidas. É tão mais difícil assumir as fra­gilidades, expondo-nos ao julgamento imparcial dos que nos que­rem bem, do que perseverar numa ideia idílica de nós próprios.

Não digo que sejamos todos cabotinos, procurando re­presentar mais do que aquilo que somos. Mas que, de certa forma, a cultura que se constrói nos encaminha nessa direcção, nos refor­ça positivamente essa imprecisão, em virtude de uma ascensão rá­pida e contundente. Quer nos círculos sociais físicos quer nos digi­tais, mostrar-se mais do que aquilo que se é rende mais do que man­ter-se a parcimónia quando se faz auto-avaliação.

Não sei contra quem competimos, quando nos pro­pomos jogar este jogo, se contra nós, se contra os outros. Mas sus­peito que a única competição que pode levar a bom porto os nossos intentos é aquela que fazemos connosco de forma generosa, não agressiva.

Querermos ser o melhor que conseguimos é um ideal que pode ser inatingível, mas pelo qual vale a pena lutar. Tudo o res­to transformar-se-á em moinhos de vento, erguidos à imagem de um eu que ainda não existe e que persiste em querer ir por atalhos onde só eventualmente se chega depois de muito caminhar.

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA

[Publicado originalmente na edição de 9 de novembro de 2014]